Dilema

No interior do estado de São Paulo existem bares que são verdadeiros pontos de encontro de especialistas em tudo.

Tem aquele que nunca pisou num estádio, mas sabe tudo de futebol com ele como técnico qualquer time seria vencedor.

Tem o médico que receita sempre “um santo remédio”, tem o compositor dono da música tal, que a dupla tal gravou e que ele vai processar logo que conseguir um advogado que acredite nele.

Tem o melhor motorista, o melhor mecânico Resumindo tem dos bons e dos melhores.

Mas não tem só bares, como todo lugar no mundo lá também tem o cotidiano, que é uma força poderosa capaz de reduzir os mais nobres ideais, as mais grandiosas aspirações a uma reles luta diária por um medíocre padrão de vida, uma luta diária para evitar surpresas e conservar sempre do mesmo jeito uma vida enfadonha onde a pessoa dedica toda sua capacidade a evitar surpresas que possam comprometer mesmo que de leve a suposta segurança que acham que tem.

Nunca houve romance, conto, poesia ou qualquer forma de arte que descrevesse o cotidiano sem acrescentar desfechos inusitados, grandes amores, grandes encantamentos, grandes tragédias, grandes vitórias, grandes dramas, e tudo mais que pode tornar a obra atraente. No entanto no interior de São Paulo numa certa cidade que pediu pra não dizermos o nome, não precisa de nada disso. Basta uma pelada no terreno baldio, um namorico, um churrasco e pronto quebra-se o cotidiano já se tem estória pra contar por uma semana e todos vivem felizes para sempre por alguns dias.

“E tem o “Mané”, “Mané” é dono de um bar na vila nossa senhora, um bairro construído por um programa habitacional do governo, e onde a maior parte dos moradores trabalha nas fábricas de confecção da cidade e possuem um padrão de vida razoável graças aos crediários das lojas que fornecem o mobiliário e os eletros domésticos para que morem confortavelmente. Outro fator é que pela cidade ser pequena, as distancias também o são por isso o local de trabalho é sempre perto de casa isso permite um melhor aproveitamento do tempo e um pouco mais de qualidade de vida.

O “Mané” sabe tudo e tem sempre uma solução perfeita para o que aflige o país.

Mora nos fundos do bar, ou melhor, o bar é que mora na frente da casa dele uma vez que o bar é a antiga e minúscula sala da casa que foi ampliada até os limites da calçada, e ganhou uma porta mais ampla, que abre direto para a rua.

Aposentado, construiu o bar para ter o que fazer. Viúvo, seus dois filhos do único casamento já adultos estão tentando a sorte nas metalúrgicas da grande São Paulo.

O “Mané” é um verdadeiro sabe tudo, mas não é radical porque como qualquer pessoa que sabe tudo e tem clientes em um bar ele sabe que precisa respeitar as diversas opiniões dos mesmos democraticamente para não sofrer represálias financeiramente.

Segundo ele a semente de hoje é a sombra e o fruto de amanhã e como todo filho da democracia o “Mané” é um hábil argumentador na intenção de democraticamente impor suas idéias e desbancar opiniões contrárias sem, no entanto ofender o cliente ou parecer intransigente. Foi no bar do “Mané” que o “Zequinha”, estudioso e erudito, um cara que lê até bula de remédio, durante uma partida de sinuca veio a comentar com o Alípio outro assíduo cliente do “Mané”, uma antiga estória de um cara que achava que as jabuticabas eram insignificantes demais para nascerem em árvores e que deveriam nascer em ramas rasteiras como nascem as abóboras e melancias e essas sim deveriam nascer em árvores, ocorre que o sujeito da estória adormeceu aos pés da jabuticabeira e foi despertado com a queda do fruto da dita árvore que lhe acertou a cabeça.

Mas antes que “Zequinha” pudesse concluir a estória seguida da indefectível moral da estória o “Mané” gritou de lá do balcão: - E se ele estivesse debaixo de uma jaqueira?

Bastou isso para inutilizar uma estória bonita e antiga de uma moral igualmente bonita e antiga, “Zequinha” deu por falecido o reformador dorminhoco que teve a cabeça arrebentada por uma jaca pagou a conta e foi embora.

Em casa, meio entorpecido pela bebida de procedência duvidosa do bar do “Mané” “Zequinha” começou a duvidar da imutabilidade do cotidiano, a descoberta do óbvio, saber que além de jabuticabas e abóboras na receita das estórias poderia ter também jacas, abacates, mangas e muito mais.

Naquela noite sonhou com arvores e frutas. Melancias zumbis saindo de dentro dos túmulos e perambulando pela frente do cemitério.

De manhã murmurou para si mesmo diante do espelho: - E além de tudo a jaqueira é muito mais alta que a jabuticabeira.

Saiu para o trabalho, não parou na padaria para tomar café como todos os dias.

“Zequinha” tem 26 anos namora desde os vinte com a mesma moça com quem pretende casar assim que as coisas melhorarem, naquele dia o trabalho não rendeu, ele estava ali, mas não estava ali: - Então se a simples omissão da existência de uma jaca pode fazer de uma estória um exemplo de perfeição da natureza e da sabedoria divina, o que seria de uma matéria jornalística se trechos de entrevista fossem omitidos ou interrompidos antes de ser concluídos. Editados para caber na página ou no horário, mesmo que não intencionalmente, poderiam passar a ser interpretados de forma diferente da noticia real. Por isso é que às vezes alguma coisa parece incompleta, inconsistente ou pouco esclarecedora, mas mesmo assim mobiliza massas, provoca tumultos e produz palavras de ordem, como a estória que omitiu a jaca e produziu uma moral da estória impecável.

“Zequinha” passou todo aquele dia ruminando dúvidas e desmentindo “verdades absolutas”.

À noite, no bar do “Mané” pediu a cerveja de sempre e começou a conversa:- Eu ouvi dizer que estão para aprovar um novo aumento nas contas de luz? Será verdade?

- Não é bem um aumento, esclareceu  o “Mané”, é uma tentativa do governo de reduzir o consumo de energia criando tarifas maiores para quem consome mais.

_ é, mas só que isso já vem sendo feito desde quando a companhia era estatal, mas ai eu pergunto a você “Mané”, se por um acaso os seus fregueses passarem a beber mais do que o de costume você vai estabelecer cotas de preço diferenciado para a quantidade de bebida consumida ou vai pedir ao seu fornecedor que aumente a quantidade habitualmente fornecida?  E o seu fornecedor por acaso vai achar melhor produzir mais e assim lucrar mais, ou impedir as pessoas de beber?

Não fez questão de ouvir a resposta, pagou a cerveja levantou e foi pra casa contente por não ter dado tempo ao “Mané” de aparecer com outra jaca para estragar essa sua nova tese.