Ao falar da Inconfidência Mineira (sempre vale a pena repetir o lema dos mineiros: “liberta quae sera tamen”!), a excelente Cecília Meirelles referiu-se à liberdade como “palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. A sabedoria de Cecília logrou consagrar em palavras uma história de quimeras e sonhos realizados ou não, mas que jamais deixaram de fazer parte do imaginário do ser humano.

A liberdade transcende a história; seu clamado jamais nasceu e jamais morrerá. Pelo contrário, sobrevoa o curso dos fatos de forma independente como um axioma máximo que exige não ser violado sob quaisquer pretextos. Foi justamente seu caráter abstrato, a despeito de enaltecer a causa liberal, que foi responsável pelo suporte a inúmeros movimentos reacionários e antidemocráticos que se valeram da liberdade como escudo de forma sórdida e despudorada. O grito de Bento Gonçalves não representou senão o interesse de uma classe reacionária e escravista que, por um relance temporal, se pretendeu “liberal” para consolidar os próprios anseios sem qualquer compromisso com os Direitos Humanos e as liberdades individuais (que o comprove o Massacre de Porongos).

Nessa perspectiva, nunca antes uma palavra foi tão banalizada para justificar atrocidades e arbitrariedades. Ouso dizer que foi esse processo o maior responsável pela banalização do mal, em analogia às magistrais palavras de Hannah Arendt. A própria Revolução Francesa tornou-se marco histórico das vis condições humanas ao confundir liberdade e vingança. Uma cruel e amarga vingança contra os inimigos que outrora foram opressores do Terceiro Estado. Sob o manto da Revolução, este tornou-se o opressor e confirmou o forte caráter vingativo dos fluxos históricos.

A empiria comprova serem o idealismo kantiano e rousseauniano infundados. O homem não é bom por natureza. Nem mal. Mas apenas egoísta, como sabiamente nos ensinou Hobbes, cuja obra mostrou-se essencial à construção da sociedade moderna, a despeito de todo o despotismo que por ela possa ser justificado. Agora, saltando trinta e oito anos desde a publicação do “Leviatã”, deparamo-nos com o “Segundo Tratado” de Locke, talvez o maior de todos os iluministas. Quando esse autor defendeu a substituição do estado natural pelo civil, argumentou que o primeiro permitia que cada homem fosse juiz de si mesmo. Aí estaria a raiz das instabilidades da anarquia, já que, para Locke, discordando de Hobbes, os conceitos de bom/mal e justo/injusto nascem juntamente com o homem, e não apenas com o Estado. Em tal exposição, o iluminista corrobora o caráter vingativo da natureza humana e, por conseguinte, do processo histórico. Afinal, quem constrói a História somos nós.

Vis-à-vis todo o exposto, urge a positivação dos direitos que realmente corresponderiam à liberdade. Dos direitos que asseguram liberdade de expressão, livre câmbio e livre circulação de pessoas, mercadorias e informações, liberdade religiosa e à inviolabilidade do próprio corpo (habeas corpus) e da dignidade, por exemplo. Aqui temos um processo longo e apenas concretizado através de uma intensa luta política, a qual, paulatinamente, cristalizou-se através de grandes conquistas como o Habeas Corpus Act (1679) e o Bill of Rights (1689). Chegamos, pois, ao ponto que demonstra a essencialidade do Poder Legislativo, mas também a insuficiência deste. Se o Direito pode ser importante na modificação da vida social, ele, devido à natureza humana, também não é inviolável. Conclui-se, pois, que o Poder Judiciário e o Executivo são indispensáveis para assegurar os direitos de primeira dimensão de cada indivíduo. Dessa forma, não existe incompatibilidade entre Estado e liberdade. São apenas conceitos complementares: o primeiro nasce para efetivar o segundo. Se o primeiro não cumpre sua primordial função, vale dizer, garantir a liberdade, pode-se acusá-lo de ilegítimo e autoritário. E isso apenas se dá à medida que a divisão dos poderes não é bem demarcada, e um se sobrepõe a outro(s).

Após desvendar a ontologia do Estado, cabe agora trazer fatos reais e aplicar a eles a tese. Afinal, a teoria nasce para explicar a realidade. Qualquer desvio dessa função representa arrogância intelectual e descaracterização teórica.

A partir da positivação das liberdades, nasce o Estado Democrático de Direito, o qual se sustenta a partir de dois rígidos pilares: a vontade da maioria (face democrática) e o respeito à inviolabilidade dos direitos individuais de primeira dimensão (liberdades asseguradas por lei). Ambos devem ser harmônicos e comunicáveis. Um sem o outro representa o desmantelamento de toda a estrutura. Enquanto basear toda decisão pela vontade da maioria representa a legitimação da opressão (uma visão utilitarista pura autoritária), desprezar o desejo popular significa um retorno aos desmandos de um absolutismo inconscientemente ainda presente. Portanto, qualquer ação só é legítima à medida que respeita os dois princípios que sustentam tal Estado.

Por isso, devem ser condenados fatos corriqueiros e/ou excepcionais hodiernos que não sejam condizentes com democracia E legitimidade (a conjunção empregada é essencial para a hermenêutica da exposição; ambos os princípios devem ser respeitados).

Golpes de Estado, como o intentado na Turquia, desprezam a democracia, ao visarem à destituição de uma chapa eleita e não condenada pelo Poder Judiciário, e a legitimidade, ao romperem uma ordem constitucional.

Invasões de espaços públicos, como o que ocorre no Brasil em escolas e universidades, representam o desprezo à lei. Apenas citando argumentos referentes ao supracitado, violar o direito individual de cada um a ter livre acesso à educação (essencial à dignidade da pessoa humana e inderrogável, porquanto apresenta-se indissociável da liberdade ao corpo e à dignidade) não pode ser visto como congruente com um Estado Democrático de Direito.

Ademais, toda sorte de criminalidade, que hoje aflige especialmente países politicamente instáveis da América Latina (Honduras, El Salvador, Venezuela e Brasil), representa um grave atentado ao Império da Lei. Enquanto os referentes Estados apresentam-se inchados na atuação econômica e em sua organização burocrática, mostram-se esvaziados em relação à sua função primordial. Estados máximos no que concerne ao patrimonialismo; mínimos na garantia de direitos.

De todo modo, não se pode afirmar que violações à estrutura do Estado Democrático de Direito são devidas justamente à sua atuação. Pelo contrário, explicam-se por uma ineficiência de atuação nas áreas essenciais. Os remédios para a violação da democracia e da liberdade se encerram tão somente no reforço das instituições e da aplicação do Direito. A legalidade é a melhor cura para a ilegalidade. E a democracia o melhor fármaco para o despotismo.

Com serenidade, temperança e prudência, poder-se-á fortalecer a eficiência institucional e, assim, preservar a liberdade de sorte que as quimeras do mundo possam, cada vez mais, tornar-se reais. Como fazê-lo é assunto para outra discussão.