DESESTRUTURAÇÃO FAMILIAR E DELINQUÊNCIA

Domingos Bombo Damião
Licenciado em Psicologia Criminal pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (Angola)

INTRODUÇÃO
A família é a base fundamental da sociedade, porque ela é principal responsável pelo processo de socialização dos indivíduos. À luz do artigo 35º, (no seu nº 1 e 7) da Constituição da República de Angola, a família é o núcleo fundamental da organização da sociedade e é objecto de especial protecção do Estado, quer se funde em casamento, quer em união de facto, entre homem e mulher. [] O Estado, com a colaboração da família e da sociedade, promove harmonioso e integral dos jovens e adolescentes, bem como a criação de condições para a efectivação dos seus direitos políticos, económicos, sociais e culturais e estimula as organizações juvenis para a prossecução de fins económicos, culturais, artísticos, recreativos, desportivos, ambientais, científicos, educacionais, patrióticos, e de intercâmbio juvenil internacional, (CRA, 2010).
Como se pode observar,  a família é responsável pela conversão dos indivíduos em seres sociais por meio do processo de socialização. Neste sentido, importa salientar que muitas famílias angolanas têm se confrontado actualmente com problemas que repercutem directamente sobre a sua estrutura e papel social, e quando as famílias são afectadas por problemas que não conseguem dar conta ou solucionar pode conhecer a sua desestruturação. Em Angola, a questão da desestruturação familiar tem trazido reflexões sobre a sua relação com a má conduta ou desvios comportamentais e a prática da delinquência. Tais reflexões devem-se pelo facto da desestruturação familiar se tornar um problema que tem causado mal-estar para muitas famílias e seus membros e a desestabilização da sociedade. 
Conforme as informações citadas pela Angop e o Jornal de Angola, o número de famílias desestruturadas em Angola tem crescido nos últimos tempos. Esta realidade é cada dia mais comum no país e tem sido influenciada devido a fuga à paternidade, aos crescentes casos de famílias monoparentais, os relacionamentos nada saudáveis entre esposos e esposas, pais e filhos, irmãos e irmãos, etc., a falta de diálogo, de afecto, respeito e obediência entre os membros da família, fuga na prestação de alimento por parte dos progenitores ou tutores legítimos, divórcio ou separação, violência doméstica, consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas. 
Aqui a nossa abordagem concentrar-se-á nos aspectos vinculados à família e suas tarefas, a desestruturação familiar - aos factores que a influenciam e suas consequências para o indivíduo, bem como a sua relação com a delinquência. Nesse artigo, a hipótese levantada é de que existe uma relação entre à prática da delinquência e a desestruturação familiar, pois a desestruturação de uma família acarreta para o indivíduo problemas de privação emocional, má conduta, baixo desempenho escolar, perda de estabilidade social, dificuldades na construção da identidade da criança e do adolescente. Assim, à prática da delinquência perpetrada por crianças, adolescentes e jovens seria uma buscar no meio social de aspectos que não foram incorporados a sua personalidade, devido aos problemas ligado com a desestruturação familiar.
O assunto em abordagem, é analisado com base nos enfoques psicossociais, porque  desestruturação familiar e delinquência são temas que têm sido discutidos pela psicologia e sociologia, uma vez que, que estás áreas do conhecimento têm auxiliado bastante na explicação da relação entre a desestruturação familiar e a delinquência, assim como o comportamento anti-social e a criação de quadrilha. Neste contexto, é importante que as pesquisas a respeito da desestruturação familiar em Angola tornam-se relevantes para produções teóricas e cientificas que ajudem na resolução deste problema. 
DESENVOLVIMENTO
A família é o pilar de qualquer sociedade, é um grupo formado por pessoas em que as relações de parentesco e interacção social são indispensáveis para à manutenção e desenvolvimento da integridade física, social e psicológica dos seus membros. De acordo com Giddens (2009, p.175), uma família é um grupo de pessoas unidas directamente por laços de parentesco, no qual os adultos assumem a responsabilidade de cuidar das crianças. Este grupo de pessoas, que chamamos família normalmente é constituído por indivíduos que vivem na mesma casa, cujas relações são formadas porque estão ligadas pelo vinculo de parentesco resultante do casamento ou mesmo de família natural, em que um deles assume o papel de chefe da família, (Kundongende, 2013). 
A família constitui-se no grupo necessário que garante a sobrevivência do indivíduo na sua função de procriação da espécie humana, a manutenção das classes sociais, assim como, na educação do indivíduo, na reprodução da força de trabalho e o controle social, porque a família desde sempre foi regida por leis, normas e costumes que definem direitos, os papéis de marido e mulher, de pai, mãe e filhos e deveres dos seus membros na sociedade, (Bock, et al., 1999; Lane, 2006). Conforme o entendimento de Aron, (1999) é importante que nas famílias, as relações de parentesco e os laços afectivos entre seus membros se estabeleçam com base na igualdade, entre pais e filhos e entre irmãos, bem como, relações de autoridade, obediência, bondade e veneração entre filhos e pais. 
É fundamental referir que é atribuída a família, funções socioculturais, psicológicas, políticas e económicas. Segundo Bock, et. al. (1999), a função social atribuída à família é de transmitir os valores que constituem a cultura, as ideias dominantes em determinado momento histórico, isto é, educar as novas gerações segundo padrões dominantes e hegemónicos de valores e de condutas. Conforme o estudo realizado por Zanetti e Gomes (2011) cabe aos pais participar na tarefa de transmissão de uma ordenação simbólica que delimite lugares, de modo que a categoria de pais defina directamente a categoria de filho. Cabe ainda aos pais, construir modelos consistentes de exercer as funções paternais, sem confundir a autoridade com autoritarismo e respeitar os lugares e funções de cada um dos membros no grupo familiar, de modo a evitar as relações de fragilização dos papéis parentais hierárquicas dentro da família.   
 A família desempenha funções importantes que contribuem para satisfazer as necessidades básicas da sociedade e para a reprodução da ordem social, procriação e socialização, (Giddens, 2009). Significa que por assumir papel fundamental na sociedade, a família é responsável pela determinação e organização da personalidade dos indivíduos, e de modo particular ela influencia o comportamento individual a partir de acções e medidas psicológicas e socioeducativas adoptadas no seio da família, pois, ela é forte transmissora de valores morais, culturais e ideológicos. 
Actualmente, devido as mudanças nas estruturas familiares, muitos casais não têm conseguido gerir seus lares e cumprir seus reais papéis e, muitos pais não têm conseguido responder às reais necessidades dos filhos no seio da família. Em consequência, surgem os divórcios ou separação e outros problemas associados, e consequentemente, em muitos casos a desestruturação familiar. Como se pode observar, famílias desestruturadas tendem a viver, segundo Leyens e Yzerbyl (1997) uma cultura familiar de violência, onde os conflitos e a violência doméstica entre os seus membros são frequentes no lar, bem como o castigo físico às crianças e maus tratos, o estresse, o álcool e a pobreza. 
Significa que, existem vários factores que contribuem para a desestruturação das famílias, dentre eles podemos referir, os conflitos conjugais, separação ou divorcio, violência, ausência dos pais, ausência de controlo e autoridade, instabilidade de regras e ausência de figuras estáveis de autoridade, isto acarreta muitas consequências para a vida pessoal do indivíduo e da sociedade em geral. Porque nas famílias desestruturadas as pessoas vivem ligados por um vínculo de parentesco, mas que as relações são feitas na desigualdade, ódio, desobediência, maus tratos e desrespeito entre pais e filhos e vice-versa.
Segundo Oliveira (2009) as famílias se desestruturam porque estão mais preocupadas com a estabilidade financeira, a satisfação pessoal e a realização de sonhos individuais, e se esquecem da reciprocidade familiar, daí começam a surgir as dificuldades nas relações familiares. Assim, temos como consequências da falta de reciprocidade e dificuldades, famílias cujos papéis estão confusos e difusos se relacionados com os modelos tradicionais devido as transformações nas relações de parentesco e nas representações dessas relações no interior da família. 
A partir da família e do processo de socialização é importante que se alcance o desenvolvimento biológico, psicológico, social e económico saudável do indivíduo desde a tenra idade para o mesmo aprender a interagir com os outros, porque se as relações afectivas entre pais e filhos e outros membros familiar for disfuncionais isso poderá constituir-se num dos factores de grande vulnerabilidade para o individuo enveredar à delinquência, (Nunes, 2010). Na pesquisa de Perucchi e Beirão (2007) foi apontado a importância da participação dos pais na educação dos filhos, porque têm a função de estabelecer limites, impor regras de conduta, fundamentais para a construção da personalidade dos filhos. 
Albuquerque (2010, p.32) refere que a desestruturação familiar traz consequências que interferem no comportamento do indivíduo em vários aspectos, pois, o indivíduo para não se isolar ou por ter medo de ficar só, de ser rejeitado pelo grupo, se apega a qualquer pessoa que lhe estende à mão, mesmo que estas pratiquem actos ou tenham comportamentos que não condizem com os seus princípios, mas para não ser excluído destes ambientes, aceita e submete-se às regras do jogo, sem muitas vezes medir as consequências por não julgar com a razão, mas com a emoção do momento.
A desestruturação familiar não traz só consequências para o indivíduo mas também para a sociedade em geral. Porque os efeitos da desestruturação familiar se reflectem em diversas áreas da sociedade e vai exercer influência na maneira de distribuição, aceitação e aplicação da justiça, das riquezas, da forma de administração dos recursos de saúde, educação, segurança, entre outros, e da produção e da capacidade profissional e muitas outras áreas (Albuquerque, 2010). Como se pode verificar, a desestruturação familiar acarreta consequências graves e duradouras para o indivíduo e a sociedade, pois é um problema responsável pela carência afectiva e emocional, desorganização da personalidade, problemas de identidade do indivíduo, medo, bem como má conduta e comportamentos desviantes associados à prática da delinquência.
Considerando que o comportamento desviante associado à prática da delinquência é um dos efeitos da desestruturação familiar. Cusson (2011. p.142-143) afirma que, as crianças deficientemente acompanhadas pelos pais, submetidas a medidas disciplinares incoerentes, e que vivem em famílias sem coesão, têm fortes probabilidades de se tornarem delinquentes. Neste sentido o autor, enuncia alguns traços que indicam a propensão para a delinquência tais como: a vigilância parental gravemente lacunar (os pais não sabem por onde anda o filho, nem com quem saiu; são indiferentes, desatentos e negligentes); a acção educativa dos pais ou, mais precisamente, a maneira como exercem a autoridade, é marcada pela permissividade (o deixar andar, a inconstância e a brutalidade ocasional. Os pais não se ocupam da criança ou alternam imprevisivelmente entre o excesso de clemência e a severidade); o filho é rejeitado pelos pais; e por fim, próprio filho está pouco vinculado aos pais.
Nos estudos realizados por Ferreira (1997), Formiga (2005), Perucchi e Beirão (2007), Avellar (2007), Zanetti e Gomes (2011), Paula e Assumpção Jr (2013), Moreira e Toneli (2014) e Figueiredo (2020), a desestruturação familiar, fragilidade dos laços e funções parentais, são em geral apontadas como factor que podem despertar nas crianças e adolescentes a vontade de delinquir,  à formação de gangues de rua associadas à prática delituosas, má conduta, comportamentos desviantes e fraco desempenho escolar. Nesta perspectiva, Nunes (2010), defende que todo o indivíduo possui capacidade, assim como a vontade de delinquir, no entanto, a vontade de delinquir ou não, é alterada se por ventura existir relações estáveis com a família e a sociedade. Para a autora, o enfraquecimento ou a ruptura de tais laços ou vínculos sociais resultaria na possível adesão para à prática da delinquência. 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo foi fruto de uma reflexão sobre a desestruturação familiar e delinquência, a fim de criar uma discussão sobre a relação entre estes dois problemas e contribuir para a sua compreensão e tratamento. 
Constatou-se que por causa das transformações sociais que o mundo tem enfrentado nos dias de hoje, muitas famílias não conseguem exercer da melhor forma possível os seus papéis sociais, atingir certos objectivos na sociedade, e outras enfrentam problemas na inserção de indivíduos com bons princípios e comportamentos socialmente aceites devido desestruturação do núcleo familiar.  
Portanto, entende-se que uma família desestruturada é um grupo de pessoas em que as pessoas estão ligadas por vínculo de parentesco disfuncionais e carência emocional e afectiva entre pais e filhos, fazendo com que as famílias se tornam desprotegidas e propensas a criar para a sociedade indivíduos despreparados socialmente. Isto pode contribuir para o desenvolvimento de má conduta, distúrbios comportamentais, emocionais e de personalidade para os seus membros. 
Em fim, há maior probabilidade de famílias desestruturadas produzirem jovens delinquentes, porque as crianças, adolescentes e jovens membros de famílias desestruturadas vivenciam vários tipos de violência, conflitos conjugais no lar, fuga à paternidade e irresponsabilidade por arte dos pais ou tutores legítimos no que toca a assistência na educação, saúde, alimentação e segurança, abandono ou exclusão no seio da família. Como consequência, esses indivíduos tendem a procurar consolo e meios de superação no uso de bebidas alcoólicas e drogas, vandalismo, abandono da casa para rua, suicídio, prostituição, desistência às aulas, criação de gangues de rua associados à prática delituosa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Albuquerque, M. V. (2010). Próximo capítulo. 1ª Ed. São Paulo: Biblioteca 24 horas. 
Aron, R. (1999). As etapas do pensamento sociológico. Tradução de Sérgio Bath.  5ª ed. - Sao Paulo: Martins Fontes.
Avellar, A. P. (2007). Rompimento familiar e delinquência juvenil: quais as possíveis conexões? Revista Electrónica de Ciências Sociais  ano 1, edição  1, pp. 181-200. 
Bock, A. M. B., Furtado, O. e Teixeira, M. L. T. (1999). Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 13ª ed. Reformulada e ampliada. São Paulo: Saraiva.
Constituição da Republica de Angola  (C.R.A), Vista e aprovada pela Assembleia Constituinte, aos 21 de Janeiro de 2010 e, na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional nº 111/2010, de 30 de Janeiro, aos 3 de Fevereiro de 2010.
Cusson, M. (2011). Criminologia. 3ª Edição. Porto: Casa das letras.
Ferreira, P. M. (1997). «Delinquência juvenil», família e escola. Análise Social, vol. 32, nº 143, pp.913-924.
Figueiredo, S. O. (2020). Desestruturação familiar e criminalidade juvenil: reflexões sobre uma possível relação à luz de abordagens interdisciplinares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, nº. 6099. 
Formiga , N. S. (2005). Condutas anti-sociais e delitivas e relações familiares em duas áreas urbanas na cidade de Palmas-TO. Aletheia  nº.22. 
Giddens, A. (2009). Sociologia. (7ª ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Kundongende, J. C. (2013). Crise e resgate dos valores morais, cívicos e culturais na sociedade angolana. Huambo: Ministério da Educação.
Lane, S. T. M. (2006). O que é psicologia social. São Paulo : Brasiliense. 
Leyens, L.-P. e Yzerbyl, V, (1997) Psicologia Social. Trad. De Bertrand Lalardy e Luísa Porto. Lisboa: Edições 70.
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Nunes, L. M. (2010). Crime e comportamentos criminosos. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa.
Oliveira, N. H. D. (2009). Recomeçar: família, filhos e desafios. [online]. São Paulo: Cultura Acadêmica. 
Paula, M. L. B., e Assumpção Jr., F. B. (2013). Delinquência juvenil e família. Revista Psicopedagogia  - vol. 30,  nº .91. 
Perucchi, J. e Beirão, A. M. (2007). Novos arranjos familiares: paternidade, parentalidade e relações de gênero sob o olhar de mulheres chefes de família. Psicologia Clínica, vol.19, nº.2.
Zanetti, S. A. S., e Gomes, I. C. (2011). A fragilização das funções parentais na família contemporânea: determinantes e consequências. Temas em Psicologia - Vol. 19, nº 2, pp. 491  502.