Por Jorge Ribeiro[1]
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Resumo: Este artigo quer refletir sobre algo bastante discutido e que não tem uma única perspectiva, que é a questão do desejo e mostrar a sua presença estruturante na construção da pessoa como tal. O desejo é a fonte da descontinuidade da pessoa? Seria o desejo o responsável pela desarticulação existente na pessoa? É um trabalho bibliográfico, assim toma como alicerce a Ética de Espinosa, o artigo versa sobre o desejo que ora é afirmado, ora é negado e outras tantas vezes apenas constatado, mas que na acepção de Espinosa, como em todas as paixões, o desejo é visto como uma virtude, como modo mesmo da pessoa existir. Depois duma introdução sobre o estatuto da questão do desejo, o seguinte ponto aponta as possíveis definição do desejo e sua aplicabilidade, logo os seguintes itens explicitam a complexidade e amplidão do assunto. Sob a elide da razão e buscando operar um equilíbrio na natureza, o desejo não é um vácuo na historiografia humana, mas o modo da pessoa se colocar em movimento. Sem desejo não ha vida.  Passando numa metodologia dialogal com vertentes do pensamento ocidental, busca-se uma reflexão aprofundada sobre o tema e se ele é pertinente e porque existe essa desconfiança em relação à sua manifestação e uma direção otimizada oferecida por Espinosa. O desejo é um desvario ou vontade de ser o que se quer ser? O trabalho presente quer oferecer pistas reflexivas e uma nova abertura do desejo como característica da busca que move o próprio ser da pessoa.

Palavra-chave: desejo; paixão; razão; filosofia.

Introdução:

Existe uma tendência a negar ou anular as rupturas. A pluralidade e a fragmentação são combatidas como feridas que expõem a nervura de um desejo insano na pessoa. O desejo, o que é isso? E como se define o desejo? Várias e diferenciadas definições se apoderaram desse termo. É apenas uma inclinação da vontade verso algo que ainda não tem ou que se almeja? É uma agitação da alma (Descartes: 1973, art. 86) ou é o que caracteriza o homem mesmo? (Espinosa). O desejo provoca a ferida que a pessoa passa a vida tentando colmar ou ele é o combustível que impulsiona a pessoa a não se paralisar?

Aqui se prioriza a concepção elucidada por Espinosa na sua “ética”, dado que se aproxima do que esse artigo se propõe, isto é, de trazer à tona o desejo não somente como inclinação ou virtude, mas sobretudo como rasgo da constituição da pessoa. O desejo é o tempero do corpo e da alma, sem ele a vida seria um marasmo de cálculos robotizados ou se acomodaria na espreita do medo. O desejo ajuda a não fugir das rupturas e fissuras da existência e se aproximar do caniço existencial que cada ser carrega consigo. A vontade de ser é o desejo que quer se auto-justificar nas afecções que constroem a pessoa. Nessa linha afirma Espinosa: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”( Ética III, Def.3). O desejo é o movimento que agita as correntes da alma para que ela não se petrifique.

Sendo o desejo algo realíssimo e constituinte no ser da pessoa, por que tantas vezes ele é negativado ou preterido? E como não se pode prescindir dele, como usufrui-lo com equilíbrio e deixa-lo permear todos os recantos existenciais sem transforma-lo em vampiro devorador ou sucumbir banalmente à sua força? Daqui vem a questão: Qual a via de acesso ao desejo, ele é apenas uma tendência, uma busca insatisfatória ou ele se delineia de maneira racional? A pessoa alimenta o desejo como forma de ocupar as suas lacunas ou ele é inerente como indispensável na conformação da própria pessoa? O ser humano se desloca continuamente pelo seu desejo (Hobbes) porque sua natureza é incompleta. O desejo é um princípio de decomposição ou é justamente ele que complementa o quadro que faz com que alguém seja o que se pretende ser? A infelicidade bate a porta e o desejo é uma válvula que desencarcera? Esse trabalho pretende lidar com a imanência e a decisão livre que o desejo implica na vida. E dessa perspectiva surge outro questionamento: Vale a pena viver apesar da dor e da morte? Qual o papel do desejo diante de situações adversas e inevitáveis que provocam resiliência? O desejo é um bálsamo ou ele que causa a ferida? Todos esse interrogativos que acirram uma consciência que não se deixa abalar pela perplexidade, mas busca suas razões, vai se tentar clarear de modo aprofundado no presente estudo.

  1. O que é o desejo?

Quando se parte a definir o que seja essencialmente o desejo, começa-se as dificuldades. Primeiramente porque é um conceito amplo, muitas concepções e direcionamentos. Segundo porque o desejo tem sido interpretado e, por assim dizer, tem adquirido um rosto, historicamente delimitado. E também porque é muito mais fácil descrever o que ele provoca do que o que ele é. O que vem a ser o desejo? O desejo é busca pelo que não se é ou não se tem. É ausência, vazio, carência de algo ou alguém. O desejo é colocado como sentimento, paixão, inclinação e também como um infortúnio perante uma perfeição almejada ou desejada. Tantas vezes se confunde o desejo com vontade, outras vezes com paixão, outras vezes ainda com necessidade. A tradição tem colocado o desejo positivo aquele que é direcionado para o bem. Como superação das divisões e das rupturas que a natureza mesma insere a pessoa. Assim é que vemos que a inclinação ao bem é porque o bem é desejável por si mesmo (Tomas de Aquino) e quando se deseja o mal é querendo o bem. E porque o desejo se mostra também como negação e descontentamento, ou seja, o nosso desejo é infinito, por isso mesmo abre uma fenda no ser.

Essas tentativas de conceituar o desejo, na verdade narram o que se percebe de sua presença. O desejo circula entre diferentes dimensões, ele é uma afecção intelectual, mas também psicológica e corporal. O desejo não se enquadra numa única esfera, mas o corpo é afetado de todos os lados pelos desejos, esses são afecções da alma (Espinosa), ou seja, a pessoa não pode fazer a menos de sentir e enfrentar continuamente os desejos. E esses desejos se colocam nos mais diversos âmbitos, desde aquele de querer ser até aquele mais segregado de se excluir de tudo. Eles podem ser negativos, positivos ou ainda letárgicos, isto é, eles se definem a depender do objeto de sua busca.

O desejo é algo que a pessoa adquire ou é inerente à sua mesma estrutura? A pessoa pode se eximir de praticar ou de se deixar conduzir pelo desejo ou a pessoa é determinada, de algum modo, de seguir as tendências apontadas pelo desejo? Segundo Espinosa diz “O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira”(Espinosa, Ética III, Definição dos Afetos; Cfr. Ética IV, prop. 18). Assim sendo, o desejo em si não é nem positivo e nem negativo, mas depende de sua direção. O desejo é uma potência, uma possibilidade. É ele o responsável pelo dinamismo e pelo movimento que a pessoa experimenta.

Nessa ótica, o desejo aparece como desafio à pretensão de ser consistente e provocação perante a totalidade. O desejo revela toda espécie de camuflagem que se compreenda como chegada ou solução. O desejo desnuda a arrogância do otimismo ou racionalismo que se ache capaz de costurar sem frisos os retalhos das rupturas que cada um experimenta. O homem se perdeu quando teve seu desejo pervertido em deserto sistematizado. O desejo é avareza porque o homem é diletante ou é o desejo que faz o homem se transformar em ser avarento e diletante? Aqui entra a distinção entre desejo e necessidade. Saber que uma coisa é possível, sem contradições, não significa que seja necessária. E Espinosa (2009) diz que a pessoa não sabe com certeza o que é bom ou mau, exceto o que pode levar efetivamente a compreender ou que se possa impedir de compreender (Ética IV, prop. 27), mesmo porque somente o que existe no poder de Deus é que existe necessariamente (Ética I, prop. 35), dado que tudo nele revela a sua essência, o que está fora de Deus é descontínuo e por tal razão, pode existir ou não e, de consequência, o desejo não é o árbitro do erro, mas quem desnuda a prepotência de uma possibilidade e não de uma necessidade.

Talvez por isso tenha se aferido que o mal encontra consistência no desejo humano. E Espinosa declara que nenhuma ação em si só é boa ou má, a ação ora é boa e ora é má, dependendo qual afeto a tenha conduzido, mas se conduzido pela razão o desejo que a influencia não pode ser excessivo (Ética IV, prop. 61). O conhecimento que se tem do mal é inadequado, pois esse é a própria tristeza que afeta a consciência, sendo assim, chama-se de mal o que provoca tristeza, dado que a inadequação das ideias leva a considerar algo como mau (Ética IV, prop. 64), porque o objeto da ideia que constitui a mente é o corpo, uma extensão situada e limitada (Ética II, prop. 13), logo passível de enganos, de erros, de equívocos. O desejo é humano, então ele também é abertura às novidades, inconcluso e prenhe de vontade. É o desejo que prolonga, que corrobora e que materializa o que almeja, e sendo afetado por um sentimento negativo, ele demonstra no opcional o que se obstina a ser inevitável. [...]