Jesus se encontrou com diversas pessoas perturbadas psiquicamente, na linguagem teológica, o nome dado é “possuído por demônios”. Jesus expulsou “um demônio que era mudo, ao sair o homem falou” [1]. Algumas pessoas que presenciaram, disseram, “É por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa demônios” [2], uma contradição, visto que no judaísmo o mal não poderia opor-se a si mesmo, esse foi o argumento usado por Jesus [3].

Jesus faz a seguinte narrativa:

"Quando um homem forte, bem armado, guarda sua casa, seus bens estão seguros. Mas quando alguém mais forte o ataca e vence, tira-lhe a armadura em que confiava e divide os despojos. Aquele que não está comigo é contra mim, e aquele que comigo não ajunta, espalha. Quando um espírito imundo sai de um homem, passa por lugares áridos procurando descanso, e não o encontrando, diz: ‘Voltarei para a casa de onde saí’. Quando chega, encontra a casa varrida e em ordem. Então vai e traz outros sete espíritos piores do que ele, e entrando passam a viver ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro" [4].

Freud chamou de Pulsão, Jesus chama de espírito, ambos têm em comum: “são expulsos e percorrem lugares onde não encontram satisfação”. Em Freud, a pulsão quer satisfazer-se ignorando a exigência do ego, ao não ceder às exigências, a energia pulsional não é eliminada, é recalcada, lançada para o inconsciente. Em Jesus, o espírito quer satisfazer-se ignorando a exigência da consciência humana, impedindo o de se expressar, anula sua vontade, deixa “outro” (demônio) ser senhor de sua vida, assim, foi lançado para lugares áridos.

A pulsão que foi habitar no inconsciente através do recalque, quer voltar à consciência, e nesse movimento trará consigo mais energia psíquica, é preciso um esforço muito grande para manter a repressão:

quanto mais se emprega uma, mais empobrece a outra. A mais elevada fase de desenvolvimento a que chega esta última aparece como estado de enamoramento; ele se nos apresenta como um abandono da própria personalidade em favor do investimento de objeto”. (FREUD [1914-1916], p.12).

A narrativa do Evangelho faz uma abordagem semelhante ao falar que o espírito quer voltar, e é preciso esforço para não ceder aos desejos, ações que produzirão culpa, como efeito da transgressão da lei da consciência formada através dos preceitos do Evangelho. Jesus faz uma narrativa [5] em que mostra a unidade entre as dimensões corpo/alma ou mente (psicossomática) usa a metáfora da luz como “olhos bons” e trevas como “olhos maus” [6]. No conceito de Jesus, quanto maior a intensidade dos desejos (pulsão em Freud) maior será o esforço para os reprimir e maior será a possibilidade de não suportar a pressão dos desejos.

A solução apresentada por ele foi a “sublimação”, não “ajuntar tesouros na terra”, seria uma forma de aliviar a pressão, ao mesmo tempo em que “ajuntar tesouros nos céus” seria uma forma de idealização, o amor a Deus, certamente como forma de tirar o cristão do narcisismo exarcebado que pode levar o adoecimento do corpo (somatizar), “Se teus olhos forem maus, todo o seu corpo será trevas” [7].

Ceder aos desejos seria deixar a casa preparada “limpa e arrumada” para a volta do “espírito” que outrora habitava na casa e anulava sua personalidade, escravizava sua vontade, tirava-lhe a autonomia, e ainda traria mais sete piores [8] que ele, assim, torna-se ainda mais forte. Freud mostra que a pulsão torna-se mais forte depois de recalcada, se a pulsão encontrar o ego menos resistente (varrido) vai retomar seu lugar.

Jesus diz que se o espírito encontrar uma consciência menos resistente “casa varrida”, retomará o seu lugar, é preciso encontrar outras formas de satisfação. Freud diz que o desejo pode ser redirecionado em outras formas de energia pulsional, pode perder sua força através de outros meios de satisfação, mas essa pulsão pode romper as barreiras do recalque, não impede que o conteúdo que fora omitido da consciência volte a se manifestar; o recalque é imperfeito, e não impossibilita que o retorno do recalcado sob nova representação aconteça.

Jesus diz que a “casa” deve ser ocupada por um “valente maior”, ou seja, algo mais forte que o espírito que foi expulso, um desejo maior, é preciso sublimar, redirecionar as pulsões para outras formas de satisfação como a liturgia, orações, cânticos, obras assistenciais, retirar a libido do ego, nesse caso, o amor pode ser suficiente para regular as pulsões.

Freud (1914/1916. p.29) reconheceu que, “a psique tem necessidade de ultrapassar as fronteiras do narcisismo e pôr a libido em objetos, isso porque, quando o investimento do Eu com libido supera uma determinada medida, um forte egoísmo protege contra o adoecimento”. O narcisismo adoece, desumaniza só o amor ao outro (amor objetal) pode impedir de nos autodestruir. Ceder à pulsão trará maior desprazer do que prazer, isso porque a culpa inibe a satisfação, como efeito trará sofrimentos psíquicos e até somáticos, logo, é melhor buscar outras formas de satisfação.

Jesus e Freud concordam que há necessidade de ter um “homem forte e bem armado”, essa arma é o amor, capaz de guardar o psiquismo (casa), de acordo com Freud (1914/1916, p.29), “é preciso começar a amar, para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar”. O ser humano está destinado a angustia, poderá adoecer pela frustração de perder o objeto do amor, ou se tornar incapaz de amar, a opção é sofrer pela frustração e manter a capacidade de amar, pois a frustração pode ser resignificada, elaborada.

A pulsão em Freud e o espírito em Jesus têm em comum: Só a repressão não é suficiente. O retorno do recalcado (pulsão ou desejo/espírito) tornará pior o estado final do que o inicial.

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NOTAS

[1] Lucas 11.14

[2] Idem, 11.15

[3] Idem, 11.19

[4] Idem, 11.21-26

[5] Mateus Capitulo 6.19-25

[6] Idem, 22-23.

[7] Idem, 6.23.

[8] Na cultura judaica o numero 7 tem a ver com az alusão à palavra Sova - abundância. Jesus usa esse termo quando Pedro pergunta quantas vezes se deve perdoar um irmão: "Então, Pedro, aproximando-se, lhe perguntou: Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes? Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete" (Mateus 18. 21,22).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. Introdução ao Narcisismo - Ensaios de Metapsicologia e outros Textos [1914 - 1916] Cia. das Letras. (p.29)

BÍBLIA ONLINE. Nova Versão Internacional (NVI) https://www.bibliaonline.com.br/nvi/index