Desafios para uma ética cristã

Admitindo que a ética não confessa nenhuma religião e que ninguém faz algo que não lhe seja conveniente, somos levados a nos indagar sobre os desafios de uma ética cristã. E o ponto de partida é justamente a indagação sobre o valor supremo que move cada indivíduo e a sociedade em que esse indivíduo se situa. Neste caso estamos falando de uma sociedade que se autodenomina de cristã.

 

Fazer o que convém

Se todas as pessoas só fazem o que lhes convém, o que convém ao cristão? Estamos falando isso em relação aos cristãos, mas a mesma indagação vale para ateus, hinduístas ou budistas: o que convém fazer? E a indagação é válida uma vez que os atos humanos são o universo da moral. Qual é o comportamento que nos satisfaz? E no caso da sociedade cristã: quais os valores a serem defendidos e que são adequados e convenientes a uma sociedade cristã? Onde buscar os elementos que podem compor uma ética cristã?

Talvez aqui não seja demais lembrar a advertência de Paulo apóstolo (1Cor, 6,12), dizendo que “Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente. Tudo me é permitido, mas eu não me farei escravo de nada”. Se nem tudo é conveniente, essa é a causa da inconveniência do inconveniente; e só fazemos o que é conveniente pois o contrário nos é vedado, não por uma força oculta ou superior, mas pela nossa própria capacidade de escolher.

Noutras palavras isso implica dizer que: Se fazemos o que nos convém, isso significa que somos pautados pela possibilidade de escolha e se existem escolhas e fazemos o que nos é conveniente, significa que somos movidos pela liberdade. Somos livres para fazer o que quisermos e sempre faremos o que nos convém, pois isso é o que queremos. E o que convém? A resposta vem do mesmo apóstolo (1Cor, 7,19): “o que conta é a observância dos mandamentos de Deus”.

 

O bem da criação: o homem e a natureza

Resta indagarmo-nos, sobre os mandamentos de Deus. Desde o antigo testamento esses mandamentos vêm se apresentando e se definindo. Desde o livro do gênesis aparecem os germes desses mandamentos. No ato da criação (Gn 1) aparece o refrão enaltecendo cada um dos elementos criados: “Deus viu que isso era bom”. Ao trazer a natureza à existência “Deus viu que isso era bom”. Sendo assim podemos dizer que a natureza é um bem, é um valor. E a defesa e preservação desse bem passa a ser um imperativo ético. É conveniente preservar a criação? Sim, não só por ser um dom divino, mas principalmente porque dela depende a vida humana.

Mas por que Deus criou o mundo? Para ser o ambiente no qual inseriu sua principal obra: o ser humano, sua “imagem e semelhança”. O homem e a natureza: a obra de Deus. Tudo isso um bem. “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn 1,31). A obra de Deus é o bem supremo; um valor sobre todos os valores: o homem e a natureza. Nenhum valor pode se sobrepor a isso.

Aqui está o primeiro desafio para uma ética cristã. A preservação da vida: da natureza e do ser humano. Tudo que não concorre para isso se contrapõe a esse valor supremo. Mas, como o ser humano age a partir do seu interesse e só faz o que lhe é conveniente, acabou criando uma sociedade onde o valor preponderante não é o ser humano, mas os próprios interesses pessoais. Ou, o que é pior: os bens materiais/econômicos valem mais, na sociedade individualista, do que o próprio ser humano e a natureza. Além disso, a natureza só vale se puder ser convertida em valor econômico. Assim o bem pessoal acabou se sobrepondo e impondo sobre o ser humano e sobre o bem coletivo. E não são os ateus que assim agem, mas aqueles que se fazem chamar de cristão, independentemente da confissão/denominação religiosa. O desfio, portanto, além de ser um questionamento sobre o valor das coisas, põe em cheque a própria sociedade que se interpõe entre esse valor supremo, dom divino e os valores criados pela sociedade.

 

Um decálogo como mandamento.

O primeiro desafio nos leva a outro que se nos apresenta, também a partir do antigo testamento. Trata-se daquilo que costumamos chamar de dez mandamentos (Ex 20,1-17). Na realidade são, muito mais orientações para a vida do que normas no sentido de uma lei de cunho jurídico. Orientando a vida pessoal, inserida numa sociedade, a partir destas orientações como que se dispensam as normas jurídicas.

E a primeira orientação não se constitui numa norma, mas num convite à tomada de posição. Antes de propor a norma o Senhor se propõe: “Eu sou o SENHOR, teu Deus” (Ex 20,2; Dt 5,6-19). E se o Senhor é Deus, excluem-se as demais divindades, pois do Senhor provém a existência da natureza e a vida humana. Por ser o senhor, liberta da “casa da servidão”. Essa libertação repercute na própria ação de Jesus Cristo, segundo ensina Paulo, ao escrever à comunidade dos Gálatas (5,1): “Foi para a liberdade que Cristo vos libertou”

Essas orientações provenientes de Deus implicam em respeitar o Senhor e os seres humanos. Essa simplificação dos mandamentos, resumidos em dois, foi feita pelo próprio Senhor Jesus, como se pode ler em Mt 22,36-40. Ao ser interrogado sobre a lei Jesus responde que toda ela se resume em amar a Deus e ao próximo.

“Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” Jesus respondeu: amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.

Além disso, ao declarar puras todas as coisas, uma vez que todas se originam em Deus, Jesus também define a origem da maldade e impureza: o interior humano, ou seja, o próprio ser humano. Noutras palavras, são puros os alimentos, uma vez que provêm da natureza e esta vem de Deus ao passo que as obras humanas podem conter os germes da impureza (pecado ou qualquer postura que afaste o homem de Deus). E Jesus faz a lista daquilo que torna o homem impuro (Mc 7,20-23):

O que sai do homem, isso é que torna o homem impuro. Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios. Todas estas maldades saem de dentro e tornam o homem impuro.

Podemos notar, nas palavras de Jesus que a ação humana, para se manter fiel ao projeto enunciado pelo Senhor implica em postura pessoal de proximidade com Deus e, ao mesmo temo compromisso com os outros. A via humana, que leva a Deus é feita mediante um caminho duplo: retidão pessoal e compromisso social. A dimensão pessoal exige que sejam eliminados aquelas posturas que circulam na dimensão íntima: maus pensamentos, ambições, inveja. A dimensão social envolve a necessidade de se eliminar a exploração do outro: prostituições, roubos, assassínios, adultérios, perversidade, má fé, maledicência. Essas são algumas das atitudes e comportamentos que estão na base de uma ética cristã.

Escrevendo aos Coríntios (1Cor 6,9-11), o apóstolo Paulo também comenta o decálogo, ao chamar a atenção da comunidade para os comportamentos que desviam daquilo que deveria ser a postura cristã, dentro dos princípios da ética cristã. E para aqueles que escolhem outras posturas e comportamentos o apóstolo é categórico: “Não herdarão o reino de Deus”. Por isso a importância da outra recomendação “não vos iludais”, como estão iludidos aqueles que cometem aquelas ações que afastam do Reino.

Ou não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os pedófilos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os beberrões, nem os caluniadores, nem os salteadores herdarão o Reino de Deus. E alguns de vós eram assim. Mas vós cuidastes de vos purificar; fostes santificados, fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus.

O desfio para a ética cristã está em manter atual os mandamentos ou, como diz Paulo, é necessário que o cristão se purifique. Presente de Deus, entregue há mais de três mil anos, o decálogo cobra a fidelidade ao projeto de Deus e compromisso social. Numa fórmula simples de ser equacionada: a fé em Deus manifesta-se em uma vida honrada e num propósito de promoção da justiça social. A ética cristã, portanto procura diferenciar aqueles que realizam os atos agradáveis a Deus, daqueles que vivem com base em outros valores.

 

Minha alma engrandece o senhor

Estamos acostumados a seguir as orientações cristãs com base nas palavras de Jesus. Entretanto, antes dele ter dito algo, no texto dos evangelhos, há uma palavra de sua mãe. Na realidade um eco veterotestamentário, recuperado por Lucas.

No antigo testamento aparecem vários cânticos louvando ao senhor por uma graça recebida. Assim o fez Moisés, com seu cântico da vitória, agradecendo pela travessia do mar, a salvo dos perseguidores egípcios (Ex 15,1-18). Da mesma forma o fez Débora, após uma das vitórias dos Juízes (Jz 5,2-32).

Mas o que vem bem em consonância com a ética cristã é o cântico de Maria (Lc 1,46-55) que pode ser lido paralelamente ao cântico de Ana (1Sm 2,1-10), uma vez que ambos falam do sofrimento de alguém que é consolado pelo Senhor. E, mais do que isso, indica a preferência do senhor pelos fracos, defendendo-o dos soberbos. Com isso a Palavra de Deus nos indica o quê e como nós devemos agir.

Em seu cântico, Maria (Lc 1,51-53), afirma que o Senhor tem especial preferência pelo sofredor. Isso porque o Senhor:

Manifestou o poder do seu braço

e dispersou os soberbos.

Derrubou os poderosos de seus tronos

e exaltou os humildes.

Aos famintos encheu de bens

e aos ricos despediu de mãos vazias.

Algo semelhante diz Ana, no primeiro livro de Samuel. Especificamente 1Sm 2,4-5. aqui, também o Senhor manifesta seu poder em favor do fraco, revestindo-o de vigor e alimentando os famintos.

O arco dos fortes foi quebrado

e os fracos foram revestidos de vigor.

Os saciados tiveram que ganhar o pão

e os famintos foram saciados.

Qual é, aqui, o princípio ético? Colocar a força em defesa do fraco. O poderoso se sobrepõe por si mesmo, mas o pobre, o fraco, o explorado... depende de quem o socorra. No primeiro momento a defesa vem de Deus, mas no mundo dos homens faz-se necessária a ação humana não para preservar os sistemas, mas para levantar os mais fracos.

Aqui está mais um desafio para a ética cristã: levantar a bandeira da defesa dos mais fracos, contra aqueles que provocam as dores da sociedade. Isso não só por solidariedade humana, mas porque é princípio divino.

 

Quando orardes digais: pai nosso...

Um princípio pétreo, da ética cristã pode ser encontrado no evangelho de Mateus (6,5-15), quando Jesus ensina a orar. Não só ensina uma fórmula de oração, mas repreende os hipócritas e gentios que buscam o destaque, até no ato de orar. Jesus propõe, não só a oração silenciosa e oculta, mas principalmente a valorização da gratuidade de Deus: “vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes”.

Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te. Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes. (Mt, 6,5-8)

Na sequencia (Mt 6,9-13) vem a orientação das palavras a serem ditas: santificar o Nome do Pai; que na terra se faça a vontade do Pai; partilhar o pão; propósito do perdão e pedido da graça que livra do mal. Esta é a fórmula da oração. Mas é, também um programa de vida: olhar para si a partir do outro: perdoar porque esse é o caminho para receber perdão. Perdoar não porque se tem o objetivo de também receber perdão, mas porque ele deve ocorrer de forma gratuita.

Como se pode notar, há uma longa sequencia de situações e condições para uma ética cristã. Tudo apontando para a fidelidade a Deus e solidariedade para com os sofredores. Pode-se dizer, portanto, que os valores preponderantes de uma ética cristã tem que levar em consideração a afinidade com o Pai e a proximidade com o irmão.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO