Percepções sobre a depressão, trabalho moderno e exaustão


“Nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto (...) Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica” (Nietzsche, p.37, 53).

O presente texto tem como objetivo elucidar os conceitos de depressão segundo a psicanálise e a filosofia. Será feita uma interlocução com as redes de trabalho e subjetividades implicadas na modernidade, que terão como ponto de apoio a obra do filósofo coreano Byung-Chul Han.

Em nossas sociedades modernas, a depressão está diretamente relacionada à exaustão. Se outrora era possível observar que os sujeitos depressivos apresentavam sintomas de anestesia, indisposição e falta de prazer, em nossa contemporaneidade é possível constatar que os mecanismos que envolvem a perda de um ideal passam por uma dinâmica totalmente oposta: a do trabalho autovigiado, do desempenho e do sucesso incondicional.

Em Vigiar e punir, para Foucault há uma categoria de vigilantes, a que chama de técnicos do comportamento, engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade (p. 258), e que não são juízes, professores, contramestres, oficiais ou pais, mas um pouco disso tudo. O adestramento dos corpos já não é apenas observação, é também avaliação contínua do comportamento, um conhecimento de técnicas organizado em um saber apoiado na medicina, na educação, na direção religiosa, e aprendido em escolas especializadas. A arte das relações do poder e a técnica disciplinar tornam-se uma disciplina que também tem a sua escola (id., p. 259). Nesse contexto, havia-se um sistema de classificação e vigilância que criava consequentemente de um lado os ditos “normais” ou aqueles que compunham as referências de uma saúde mental conforme, adaptada e produtiva, e de outro lado os delinquentes, loucos e aqueles que vivem a margem, outsiders por natureza, que apresentam ameaças a sociedade saudável e bem organizada, como por exemplo homossexuais, prostitutas e até mulheres solteiras.

Posteriormente, com o advento da expansão e solidificação do Toyotismo e mudanças nas interações de produção e trabalho, os mecanismos supracitados de vigilância passaram a ter sua moradia não apenas nessas superestruturas (escolas, disciplinas, Estado, entre outros) mas fundamentalmente no trabalho e na “captura” da subjetividade pelo capital, isto é, os mecanismos de contrapartida salarial (as novas formas de pagamento) e de gestão da organização do trabalho (o trabalho em equipe) que sedimentam os consentimentos dessa “captura”. Dito de outra forma, se no fordismo, como bem ilustra Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos”, havíamos uma captura extrema do corpo através de tarefas repetitivas e a vigilância onipresente de um gestor de produção, no Toyotismo há um sequestro do sujeito a nível subjetivo.


Alves (2011) aventa que a compreensão psico-corporal no capitalismo flexível, que é a organização do trabalho que vivemos atualmente, tem como consequência eminente a simultânea apagamento-produção-substituição de subjetividades humanas. Assim sendo, podemos pensar alguns exemplos, como o estresse. Sendo ele uma reação natural do nosso organismo em momentos de perigo e solicitação de adaptação, o capital flexível ultramoderno atua exatamente nesse ponto, exigindo que o sujeito tenha uma subjetividade diferente a cada instante, que se adapte inteiramente ao mercado, gerando nesse sujeito situações de estranhamento/alienação de si mesmo. Outra maneira para pensarmos a absorção desse individuo pelo mercado seriam os coachs, que de uma forma subliminar enfatizam que o seu trabalho é a sua vida, que suas relações devem ser administradas como microempresas, ou que atender ao seu chefe as duas horas da madrugada é um feito heroico que o fará vencer os colegas concorrentes. Assim sendo, se antes na sociedade disciplinar Foucautiana havíamos malucos e marginais, hoje nós temos depressivos, ansiosos e fracassados.

Segundo o filósofo sul-coreano Byung-Chul (2017), em seu aspecto biológico e social, a violência neuronal não está mais associada à negatividade estranha (exterior) ao sistema: trata-se de uma violência imanente ao próprio sistema (p. 20). Em sua forma especificamente social, a nomeação adequada do sistema é “sociedade do desempenho”. É dessa maneira que o autor designa o modo de funcionamento da sociedade ocidental contemporânea pós-disciplinar, a imposição da performance e do desempenho mediante a autossuperação é incorporada e levada a suas últimas consequências, “[a] positividade do poder é mais eficiente que a negatividade do dever” (p. 25)”. Com o deslocamento da negatividade para a positividade, o sujeito do desempenho – mais rápido e eficiente – substitui o sujeito da obediência. “Transforma-se, assim, o paradigma do inconsciente freudiano, que não é atemporal, mas histórico. Suas condições de possibilidade são a disciplina, a interdição e a repressão modernas, cujo corolário forma o sujeito obediente, temerário e angustiado diante da possibilidade de transgressão. Ao contrário do inconsciente freudiano vinculado necessariamente à repressão e à negatividade, o sujeito neoliberal do desempenho é dominado hoje pelo excesso de positividade.” (Corbanzei, 2018. p.4) Portanto, se no modelo freudiano o sujeito da obediência se submete ao superego, o sujeito do desempenho projeta para si uma forma ideal de existência. O excesso de positividade investido para alcançá-la conduz o indivíduo, de forma inexorável, ao esgotamento típico dos sofrimentos psíquicos da nossa época, que são especialmente a síndrome de Burnout, a depressão e os fenômenos relacionados a ansiedade (TAG, TAS, TOC). A coação de desempenho força o sujeito a produzir cada vez mais. Sendo assim, é evidente que ele jamais alcançara uma gratificação final e um repouso. Vive-se um sentimento de culpa, carência e melancolia pelo objeto que perdeu e sequer sabe o que é. “Em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir. Sofre um colapso psíquico, que se chama de Burnout. O sujeito de desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem” (Han, 2017. pp. 85-86).

Outrossim, é possível até mesmo inverter a lógica do existencialismo em que “O homem constrói a si mesmo por meio do exercício da liberdade” (Sartre, 2005). Na época em que vivemos, o superego não mais nos aliena, mas nos impõe uma liberdade. O Outro não é mais aquele que me invade e explora, ao contrário, exploro a mim mesmo de boa vontade seguindo meu ideal de realização. A pulsão de morte é mais do que presente, eu me otimizo a mim mesmo me direcionando a morte.


É contraditório percebermos que os ideais de otimização que nos cercam nos impelem a uma saúde perfeita, corpos perfeitos onde há contentamentos perfeitos, e que em contrapartida nunca houve tantos deprimidos pelo mundo. Aqui, o sujeito depressivo é o único responsável por seu fracasso. Se todos nunca são bons o bastante, o depressivo é o sujeito que está esgotado de si mesmo, que não lutou o suficiente.

Na obra La fatigue d’être soi: dépression et Société, Ehrenberg (1998) explana que mais do que paixão triste, a depressão é uma patologia da capacidade insuficiente de ação e iniciativa. Sua condição de possibilidade, insiste o sociólogo francês em seu livro, provém da conquista de infinita autonomia e de infinita responsabilidade no mundo pós-disciplinar, as quais, transformadas em norma social, o sujeito não suporta, prostrando-se depressivo. De forma semelhante, Maria Rita Kehl (2009) também argumenta que a epidemia atual de depressão encontra suas condições de possibilidade em uma sociedade simultaneamente antidepressiva e maníaca onde há um espectro do patologicamente hiperativo. A autora brasileira sustenta que a depressão recusa e questiona valores essenciais da sociedade capitalista contemporânea, entre os quais se destacam a velocidade e o gozo, isto é, a aceleração do tempo e o imperativo da felicidade, do prazer e da satisfação prêt-à-porter. Em conclusão, o imperativo do “Goze!” que o capitalismo difunde traz conjuntamente uma exigência de consumo, que muitas vezes serve para atrair o olhar do outro para que esse imagine o quanto o sujeito talvez tenha trabalhado para adquirir tamanhos bens de consumo. Essa isca funciona como um espelho para o sujeito, que trai a si mesmo gozando através do outro por uma posse que não é sua. Ou ainda como pontua Weber (2007), o sistema capitalista requer uma devoção para fazer dinheiro. A profissão é vista como um dever e da necessidade de se dedicar ao trabalho produtivo como um fim de si mesmo. Uma vocação para todo esse modo de vida. Deus é dinheiro e o trabalho panaceia.


Referências Bibliográficas


Alves, G. (2011) Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Biotempo.


Corbanezi, E. (2018). Sociedade do cansaço. Tempo Social, 30(3), 335-342. https://dx.doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.141124

Ehrenberg, A. (1998), La fatigue d’être soi: dépression et société. Paris, Odile Jacob.


Foucault, Michel. (1987) Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes

.
Han, Byung-Chul. (2017) Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes

Kehl, Maria Rita. (2009), O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo.

Nietzsche, F. (2004), Aurora. São Paulo, Companhia das Letras.


Sartre, J-P. (2005) O Ser e o Nada. Petrópolis: Vozes.