A Justiça brasileira tem convalidado a instauração de procedimentos apuratórios baseados em denúncias anônimas, o que não se aplica aos processos criminais, tão somente para inquéritos policiais.

Constitui-se dever de todo servidor público representar contra supostas irregularidades cometidas por qualquer pessoa ou colega de serviço, desde que tenha ciência, exclusivamente, em decorrência do exercício do seu cargo ou, ainda em razão do conhecimento da prática de ato ilegal, omissivo ou abusivo cometido no âmbito do seu local de trabalho, órgão ou insituição. A representação ou denúncia deve ter como objeto as atribuições como resultado do exercício do seu cargo.

De início, vale registrar que o artigo 5º, inciso IV, CF/88 prescreve que é livre manifestação do pensamento, vedando, contudo, o anonimato, e da necessidade de investigação de condutas funcionais desviantes imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa igualmente consagrados na Constituição Federal (da mesma Carta Fundamental Política).

Segundo dicção do art. 116 da Lei nº 8.112, de 11/12/90:

“São deveres do servidor:
(...)

VI - levar ao conhecimento da autoridade superior as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo;

XII - representar contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder.
Parágrafo único. A representação de que trata o inciso XII será encaminhada pela via hierárquica e apreciada pela autoridade superior àquela contra a qual é formulada, assegurando-se ao representando* ampla defesa.”

*Leia-se “representado”  (erro de redação no texto legal).
 

O art. 144 dessa mesma legislação prescreve que:

“As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade”.

O professor José Afonso da Silva ensina que: “A liberdade de manifestação do pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí por que a Constituição veda o anonimato. A manifestação do pensamento não raro atinge situações jurídicas de outras pessoas a que corre o direito, também fundamental individual, de resposta. O art. 5º, V, o consigna nos termos seguintes: é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” (in Curso de direito constitucional Curso de direito constitucional positivo positivo, p. 245).

“(...) O Procurador Antônio Carlos Alencar Carvalho, em trabalho sobre o tema, mostrando sua sensibilidade jurídica, ensina que, in verbis: ‘(...) o preceito do art. 144 da Lei 8.112/90 tem o escopo de preservar a dignidade do cargo público e constitui um direito subjetivo dos servidores contra denúncias vazias, infundadas, perseguições políticas, agressões à honra perpetradas por desafetos ou por pessoas de má-fé, de modo a evitar que, sob o manto do anonimato, terceiros irresponsáveis venham a vilipendiar a imagem e a distinção de cidadãos que zelam e servem à coisa pública. (....) Sem regras, indivíduos inescrupulosos empregariam, anônima e impunemente, todo tipo de difamação e calúnia, sem ao menos a oportunidade de defesa para os ofendidos, que sofreriam o constrangimento da instauração de sindicâncias e processos administrativos disciplinares, procedimentos cujo conteúdo termina por se refletir publicamente, no âmbito da repartição pública, com irreparável gravame ao funcionário ilegalmente acusado” (Antônio Carlos Alencar Carvalho. A Instauração de processo disciplinar administrativo por denúncia anônima, p. 65)’” (Apud Jair Vanderlei, acessível em  Krewerhttp://www.unigran.br/revista_juridica/ed_anteriores/15/artigos/06.pdf – acesso em 23.02.2018).

Os atos do processo administrativo federal são disciplinados, outrossim, na Lei nº 9.784, de 1999, a qual exige a identificação do interessado ou de quem o represente, bem como a indicação do domicílio do autor e o local para recebimento de intimações (ver art. 6º), diz a LPAF:

Art. 6º O requerimento inicial do interessado, salvo casos em que for admitida solicitação oral, deve ser formulado por escrito e conter os seguintes dados:

"(...)

II – identificação do interessado ou de quem o represente;

III – domicílio do requerente ou local para recebimento de comunicações;

(...)”.

Deverá ser observado também o contido na Lei Federal nº 8.429, de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA) a qual exige que a denúncia será escrita ou reduzida a termo e assinada, contendo a qualificação do representante, as informações sobre o fato e sua autoria e a indicação das provas de que tenha conhecimento (art. 14, § 1º).

Art. 14. Qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade. § 1º A representação, que será escrita ou reduzida a termo e assinada, conterá a qualificação do representante, as informações sobre o fato e sua autoria e a indicação das provas de que tenha conhecimento. § 2º A autoridade administrativa rejeitará a representação, em despacho fundamentado, se esta não contiver as formalidades estabelecidas no § 1º deste artigo. A rejeição não impede a representação ao Ministério Público, nos termos do art. 22 desta lei. § 3º Atendidos os requisitos da representação, a autoridade determinará a imediata apuração dos fatos que, em se tratando de servidores federais, será processada na forma prevista nos arts. 148 a 182 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 e, em se tratando de servidor militar, de acordo com os respectivos regulamentos disciplinares.

O Supremo Tribunal Federal também tem se manifestado neste sentido, como se extrai do voto do Ministro Carlos Velloso no MS n. 24405 – DF:

"Convém registrar que, protegido o denunciante pelo sigilo, isso pode redundar no denuncismo irresponsável, que constitui comportamento torpe."

“(...)  JULIO FABBRINI MIRABETE (‘Código de Processo Penal Interpretado’, p. 95, item n. 5.4, 7ª ed., 2000, Atlas), que assim se pronuncia: ‘(...) Não obstante o art. 5º, IV, da CF, que proíbe o anonimato na manifestação do pensamento, e de opiniões diversas, nada impede a notícia anônima do crime (‘notitia criminis’ inqualificada), mas, nessa hipótese, constitui dever funcional da autoridade pública destinatária, preliminarmente, proceder com a máxima cautela e discrição a investigações preliminares no sentido de apurar a verossimilhança das informações recebidas. Somente com a certeza da existência de indícios da ocorrência do ilícito é que deve instaurar o procedimento regular.’ (grifei) Esse entendimento é também acolhido por NELSON HUNGRIA (‘Comentários ao Código Penal’, vol. IX/466, item n. 178, 1958, Forense), cuja análise do tema - realizada sob a égide da Constituição republicana de 1946, que expressamente não permitia o anonimato (art. 141, § 5º), à semelhança do que se registra, presentemente, com a vigente Lei Fundamental (art. 5º, IV, ‘in fine’) - enfatiza a imprescindibilidade da investigação, ainda que motivada por delação anônima, desde que fundada em fatos verossímeis: ‘Segundo o § 1.º do art. 339, ‘A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto’. Explica-se: o indivíduo que se resguarda sob o anonimato ou nome suposto é mais perverso do que aquele que age sem dissimulação. Êle sabe que a autoridade pública não pode deixar de investigar qualquer possível pista (salvo quando evidentemente inverossímil), ainda quando indicada por uma carta anônima ou assinada com pseudônimo; e, por isso mesmo, trata de esconder-se na sombra para dar o bote viperino. Assim, quando descoberto, deve estar sujeito a um plus de pena’” (grifei) Essa mesma posição - que entende recomendável, nos casos de delação anônima, que a autoridade pública proceda, de maneira discreta, a uma averiguação preliminar em torno da verossimilhança da comunicação (‘delatio’) que lhe foi dirigida - é igualmente compartilhada, dentre outros, por GUILHERME DE SOUZA NUCCI (‘Código de Processo Penal Comentado’, p. 87/88, item n. 29, 2008, RT), DAMÁSIO E. DE JESUS (“Código de Processo Penal Anotado”, p. 9, 23ª  ed., 2009, Saraiva), GIOVANNI LEONE, (‘Trattato di Diritto Processuale Penale’, vol. II/12-13, item n. 1, 1961, Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, Napoli), FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (‘Código de Processo Penal Comentado’, vol. 1/34-35, 4ª ed., 1999, Saraiva), RODRIGO IENNACO (‘Da validade do procedimento de persecução criminal deflagrado por denúncia anônima no Estado Democrático de Direito’, ‘in” Revista Brasileira de Ciências Criminais’, vol. 62/220-263, 2006, RT), ROMEU DE ALMEIDA SALLES JUNIOR (‘Inquérito Policial e Ação Penal’, item n. 17, p. 19/20, 7ª ed., 1998, Saraiva) e CARLOS FREDERICO COELHO NOGUEIRA (‘Comentários ao Código de Processo Penal’, vol. 1/210, item n. 70, 2002, EDIPRO), cumprindo rememorar, ainda, por valiosa, a lição de ROGÉRIO LAURIA TUCCI (‘Persecução Penal, Prisão e Liberdade’, p. 34/35, item n. 6, 1980, Saraiva): ‘Não deve haver qualquer dúvida, de resto, sobre que a notícia do crime possa ser transmitida anonimamente à autoridade pública (...). (...) constitui dever funcional da autoridade pública destinatária da notícia do crime, especialmente a policial, proceder, com máxima cautela e discrição, a uma investigação preambular no sentido de apurar a verossimilhança da informação, instaurando o inquérito somente em caso de verificação positiva. E isto, como se a sua cognição fosse espontânea, ou seja, como quando se trate de ‘notitia criminis’ direta ou inqualificada (...).’ (grifei) Vale acrescentar que esse entendimento também fundamentou julgamento que proferi, em sede monocrática, a propósito da questão pertinente aos escritos anônimos. Ao assim julgar, proferi decisão que restou consubstanciada na seguinte ementa: ‘DELAÇÃO ANÔNIMA. COMUNICAÇÃO DE FATOS GRAVES QUE TERIAM SIDO PRATICADOS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SITUAÇÕES QUE SE REVESTEM, EM TESE, DE ILICITUDE (PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS SUPOSTAMENTE DIRECIONADOS E ALEGADO PAGAMENTO DE DIÁRIAS EXORBITANTES). A QUESTÃO DA VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ANONIMATO (CF, ART. 5º, IV, ‘IN FINE’), EM FACE DA NECESSIDADE ÉTICO-JURÍDICA DE INVESTIGAÇÃO DE CONDUTAS FUNCIONAIS DESVIANTES. OBRIGAÇÃO ESTATAL, QUE, IMPOSTA PELO DEVER DE OBSERVÂNCIA DOS POSTULADOS DA LEGALIDADE, DA IMPESSOALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA (CF, ART. 37, ‘CAPUT’), TORNA INDERROGÁVEL O ENCARGO DE APURAR COMPORTAMENTOS EVENTUALMENTE LESIVOS AO INTERESSE PÚBLICO. RAZÕES DE INTERESSE SOCIAL EM POSSÍVEL CONFLITO COM A EXIGÊNCIA DE PROTEÇÃO À INCOLUMIDADE MORAL DAS PESSOAS (CF, ART. 5º, X). O DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO DO CIDADÃO AO FIEL DESEMPENHO, PELOS AGENTES ESTATAIS, DO DEVER DE PROBIDADE CONSTITUIRIA UMA LIMITAÇÃO EXTERNA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE? LIBERDADES EM ANTAGONISMO. SITUAÇÃO DE TENSÃO DIALÉTICA ENTRE PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA ORDEM CONSTITUCIONAL. COLISÃO DE DIREITOS QUE SE RESOLVE,  EM CADA CASO OCORRENTE, MEDIANTE PONDERAÇÃO DOS VALORES E INTERESSES EM CONFLITO. CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS. LIMINAR INDEFERIDA.” (MS 24.369-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, ‘in Informativo/STF nº 286/2002) (...)’ (9http://www.stf.jus.br/portal/informativo/verInformativo.asp?s1=falsa+identidade&pagina=5&base=INFO).

 

JURISPRUDÊNCIA:

DENÚNCIA ANÔNIMA – VALIDADE JURÍDICA – DEFLAGRAÇÃO DE PROCESSO DISCIPLINAR:

“Processo Administrativo desencadeado através de denúncia anônima. Validade. Inteligência da cláusula final do inciso IV do art. 5º da CF (vedação ao anonimato)” (Recurso Ordinário em MS n. 4.435, do STJ).

“A instauração de inquérito administrativo, ainda que resultante de denúncia anônima, não encerra, no caso, qualquer ilegalidade” (STJ, Recurso Ordinário em MS n. 1.278).

“A delatio criminis anônima não constituiu causa de ação penal que surgirá, em sendo o caso, da investigação policial decorrente. Se colhidos elementos suficientes, haverá, então, ensejo para a denúncia. É bem verdade que a Constituição Federal (art. 5º, IV) veda o anonimato na manifestação de pensamento, nada impedindo, entretanto, mas, pelo contrário, sendo dever da autoridade policial proceder à investigação, cercando-se, naturalmente, de cautela” (STJ, Recurso em Hábeas Corpus n. 7.239).

“Carta anônima, sequer referida na denúncia, e que quando muito, propiciou investigações por parte do organismo policial, não se pode reputar de ilícita. É certo que isoladamente não terá qualquer valor, mas também não se pode tê-la como prejudicial a todas as outras validamente obtidas. O princípio do ‘fruto da árvore envenenada’ foi devidamente abrandado na Suprema Corte (HC 74.599-7, Min Ilmar Galvão)” (STJ, Recurso em HC n. 7.363).

“Delação anônima. Comunicação de fatos graves que teriam sido praticados contra a administração pública (...). A questão da vedação constitucional do anonimato (CF, art. 5º, IV, in fine), em face da necessidade ético-jurídico da investigação de condutas funcionais desviantes. Obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), torna inderrogável o encargo de apurar comportamentos eventualmente lesivos aos interesse público (...). O direito público subjetivo do cidadão ao fiel desempenho, pelos agentes estatais, do dever de probidade  constituiria uma limitação externa aos direitos da personalidade? Liberdades em antagonismo. Situação de tensão dialética entre princípios estruturantes da ordem constitucional. Colisão de direitos que se resolve, em cada caso ocorrente, mediante ponderação de valores e interesses em conflito” (STF, MS n. 24.369).

“A autoridade administrativa, ciente da prática de qualquer irregularidade no serviço público, deve, de ofício, por mandamento legal, determinar a apuração dos fatos imediatamente (...). Inteligência do art. 143 da Lei n. 8.112/90” (STJ, Rel. Min. Paulo Gallotti, Mandado de Segura/DF, nº 2005.01.18274-0).

DENÚNCIA ANÔNIMA:

“STF, relator Min. Celso Melo, MS n. 24.369, DF, data da dec.: 16.10.02: “Delação  anônima. Comunicação de fatos graves que teriam sido praticados no âmbito da administração pública. Situações que se revestem, em tese, de ilicitude (procedimentos licitatórios supostamente direcionados e alegado pagamento de diárias exorbitantes). A questão da vedação constitucional do anonimato (DF, art. 5º, IV, in fine), em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas funcionais desviantes. Obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (DV, art. 37, caput), torna inderrogável o encargo de apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público. Razões de interesse social em possível conflito com a exigência de proteção à incolumidade moral das pessoas (CF, art. 5º, X). O direito público subjetivo do cidadão ao fiel desempenho, pelos agentes estatais, do dever de probidade constituiria uma limitação externa aos direitos da personalidade? Liberdade em antagonismo. Situação de tensão dialética entre princípios estruturantes da ordem constitucional. Colisão de direitos que se resolve, em cada caso ocorrente, mediante ponderação dos valores e interesses em conflito. Considerações doutrinárias. Liminar indeferida.

“Criminal, RHC, ‘Noticia Criminis’ anônima. Inquérito policial. Validade. 1. A ‘delatio criminis’ anônima não constitui causa da ação penal que surgirá, em sendo o caso, da investigação policial decorrente. Se colhidos elementos suficientes, haverá, então, ensejo para a denúncia. É bem verdade que a Constituição Federal (art. 5º, IV) veda o anonimato na manifestação do pensamento, nada impedindo, entretanto, mas, pelo contrário, sendo dever da autoridade policial proceder à investigação, cercando-se, naturalmente, de cautela. 2. Recurso ordinário improvido” (RHC 7.329-GO, Rel. Min. Fernando Gonçalves).

“STJ, recurso ordinário em MS n. 1.278, RJ, data da dec.: 10.03.93: “(...) Administrativo. Instauração de inquérito, mediante denúncia anônima. Possibilidade. Anistia. Não caracterização. I – A instauração de inquérito administrativo, ainda que resultante de denúncia anônima, não encerra, no caso, qualquer ilegalidade (...)”.