“Democracia” no Oriente Médio: é possível?

                                                               (Jefté Brandão Januário)

          Quando se fala em democracia no Oriente Médio, o primeiro país que se vem na mente é Israel. Não vou de maneira alguma falar se isso é verdade ou não. Mas realmente, se nós formos analisar, existe alguns pontos que aproximam a política israelense das democracias ocidentais, por exemplo: em nenhum outro país vizinho do estado israelense se é permitido passeatas gays por razões óbvias,[1] a mulher não precisa usar burcas, a não ser se pertença a um grupo fundamentalista judeu ortodoxo,[2] festas com bebidas são permitidas pois não há em Israel um estado regido pela sharia, existe eleições para escolha de presidentes e de primeiro-ministro sem perigo para golpe de estado, e Israel é o único estado pilar na região, onde o símbolo máximo do Ocidente, EUA, não é atacado tão ferreamente quanto nos outros países árabes. Então, podemos concluir que um estado democrático faz juz a esse título simplesmente por permitir em seu território e constituição tudo aquilo que foi descrito logo em cima? Talvez. Não esqueçamos que Israel, bem como em outros países que não estão incluídos entre nações democráticas, suprime fatos que nós não conhecemos tão bem.

         Existe no estado hebreu uma tênue, mais marcante favoritismo entre aqueles judeus que são oriundos da Europa Ocidental e da América, os chamados ashkenazim, e entre os judeus oriundos do próprio Oriente Médio, do antigo Leste Europeu, e Norte da África, chamados de Sephardim[3], o que causa uma certa tensão velada dentro da sociedade israelita, além de uma segregação entre outras minorias, como os afro-israelenses.[4] Além disso, boa parte das decisões tomadas em assuntos referentes a questões palestinas, caem em mãos de juízes militares em vez de juristas civis.[5] Em meio a tantos encontros e desencontros, o que caracteriza uma democracia? É o simples fato de apoiar o ocidente e seus aliados – como foi o Egito de Mubarak, e como é o caso de Israel? Permitir que países ocidentais utilizem seu território para manter bases militares em troca de dinheiro, mesmo não precisando disso para suprir seus cofres, e mesmo mantendo um sistema não democrático entre sua população – caso da Arábia Saudita?[6] Vender petróleo para o ocidente e simpatizar com suas políticas, mesmo que no fundo repudie seus estilos de vida - como os emirados de Bahrein, Kuwait, Catar e Emirados Árabes Unidos?

         Como já é conhecido por muitos, o conceito de democracia é completamente eurocentrista, que começou a nascer nas idéias iluministas, engatinhou nos séculos XIX para o XX, e ganhou corpo com a super-potência estadunidense tempos depois. O erro de nós ocidentais é não entender a cultura dos outros (nesse caso dos árabes, mas também dos africanos e de outros povos tão antigo como o próprio ocidente), e querer que eles pensem como nós. Porém, nós nunca pensamos como eles pensam, ou não queremos pensar, pois não vemos os outros, e deixamos que a mídia pense por nós e molde o nosso pensamento. É como bem disse o orientalista Edward Said.[7] É muito mais fácil acharmos que o nosso jeito de fazer as coisas está certo, enquanto que o “outro” tem de aprender com a gente.

         Porém, um país no próprio seio do Oriente Médio também nos chama a atenção pelo seu modo de governar. Assim como Israel – dito democrático -, ele parece um oásis no meio do deserto. A única diferença (ou diferenças) é que sua população é predominantemente árabe-palestina, e que o seu governo é uma monarquia parlamentarista. Sim, estou falando da Jordânia. Mas alguns já podem de cara rebater isso dizendo: “ é, mas nas revoltas árabes o povo se levantou contra o governo jordaniano”. Sim é verdade. Mas a fúria foi contra o sistema econômico e político, este último representado pelos políticos que tomam a dianteira governamental, e não muito sobre a família real. Até mesmo o líder da oposição naquele país, Zaki Bani Rsheid, líder da Frente de Ação Islâmica, não queria a mudança do regime real, como aconteceu no Egito (apesar de Mubarak não ser rei), mas sim, mudanças necessárias que afetam o dia-a-dia da população.[8] Certa cidadã jordaniana de nome Nadine, disse: “A Jordânia não é um dominó regional em termos políticos, já que nosso descontentamento geral é com nosso governo, nossas políticas e nosso sistema quebrado, e não com Sua Majestade, o Rei Abdullah II; mesmo que não concordemos com suas decisões”. [9]  De fato, a primavera árabe na Jordânia foi tão inexpressiva, que nem foi tão noticiada pela imprensa. Aconteceu revoltas também em Israel contra o governo de Netanyahu, mas as coisas são tão bem dissimuladas (para não dizer escondidas), que pouco ouvimos falar.[10]

           Uma outra coisa que assemelha ambos os países, Israel e Jordânia, é que antes mesmo de suas respectivas independências, a Jordânia em 1946[11] e Israel em 1948,[12] as duas eram protetorados da Inglaterra. É também memorável que a Jordânia, assim como Egito, Síria e Iraque, entrou em guerra contra Israel em 1967. Porém, analisando o seu papel nesse conflito, a monarquia jordaniana parece ter entrado na guerra mais como uma criança que é pega pelo seu pai a força quando ela não quer ir a escola, respeitando naquele caso a doutrina pan-árabe do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, do que por vontade própria.  Um dos pontos que favorece e muito a posição democrática e aberta do reino hachemita da Jordânia e seu viés ocidental, é o histórico da relação da família real jordaniana com o governo britânico. O pai do atual rei Abdullah II, Hussein bin Talal, recebeu formação militar na Real Academia Militar de Sandhurst, Inglaterra, muito antes de assumir o poder em 1952 quando tinha dezoito anos (a constituição da Jordânia foi feita nessa data). O atual rei Abdullah II, estudou no St. Edmund's School em Surrey, Inglaterra, e fez o estudo secundário na Eaglebrook School e Deerfield Academy nos Estados Unidos da América. Tempos depois, voltou para a Inglaterra onde complementou a sua formação na Royal Military Academy Sandhurst no Reino Unido em 1980 e foi promovido a segundo tenente em 1981. Posteriormente foi nomeado Líder das Tropas de Reconhecimento do 13.º e 18.º Batalhão de Royal Hussars (exército inglês) na Alemanha Ocidental e Inglaterra.[13]

          Esse aculturamento estrangeiro permite que o governo não mescle política e religião, como acontece entre países de fortes traços teocráticos como Irã e Arábia Saudita. As mulheres, por exemplo, não precisam usar a burca ou lenço na cabeça, seguindo o exemplo da própria rainha Rania.[14] Esse traço de tolerância característico na Jordânia é um sonho em que alguns países como Egito não tem - vide o caso dos constantes confrontos entre a maioria muçulmana e a minoria cristã copta -, que começa também a se desestabilizar no Iraque pós-invasão americana, com atentados de muçulmanos contra igrejas em Bagdá.[15] Apesar da população jordaniana ser constituído por 92% de muçulmanos sunitas, e apenas 6% ser de cristãos, as diferenças religiosas não constituem o divisor de “águas” no país. Desses cristãos, 15% compõem o Parlamento jordaniano.[16] A constituição deste país assegura liberdade religiosa, e tanto escolas públicas e privadas recebem alunos judeus, cristãos e muçulmanos. Segundo o bispo Selim Sayegh, “somos cidadãos da Jordânia, não viemos de outro país. Nós não fazemos guetos cristãos ou muçulmanos.”[17]

          É claro que nem tudo são rosas. A Jordânia não se diferencia dos seus vizinhos árabes apenas pelas suas peculiaridades mais brandas. O país Hachemita é do tamanho do estado de Santa Catarina.[18] Embora seja maior do que emirados como Kuwait, Quatar e Bahrein, por exemplo, a Jordânia não tem abundância de petróleo, o que ajuda a encarecer  o preço da gasolina, um fator de desestabilização no país.[19] As principais receitas adquiridas pelo país são provenientes da importação de commodites, estando entre os principais da lista produtos como, potássio, fosfatos e fertilizantes.[20] Em busca de parceiros comerciais para amenizar essas limitações econômicas, a Jordânia se aproxima de compradores como Estados Unidos, e busca reforçar alianças regionais para evitar conflitos e desestabilização para o seu o país, como foi feito com Israel, por exemplo, fazendo com este último um acordo de paz em 1994. A aproximação da Jordânia nos últimos tempos vem se estreitando em muito com os EUA na área militar - assim como acontece há muito tempo entre a Arábia Saudita e EUA -, pois a Jordânia é visto como um pilar importante e estratégico, assim como Israel, no incerto cenário geo-político do Oriente Médio, não só na visão americana, mais até mesmo – ainda que comedido – da própria visão política israelense. Após o acordo de 1994 entre Jordânia e Israel, os Estados Unidos forneceram um lote de 16 caças F-16, sem a menor resistência por parte do governo judaico.[21] Esses caças eram tão melhores quanto os governos da Síria e do Iraque, quando Saddam ainda estava no governo, e para completar, em 2009 a Jordânia recebeu mais seis F-16. [22]

          No mês passado, maio de 2012, o sul da Jordânia foi palco de uma das maiores manobras militares conjuntas, chamada de “Leão Ansioso”, envolvendo “EUA, Jordânia, Reino unido, França, Itália, Espanha, Austrália, Arábia Saudita, Iraque e Kuwait entre outros”[23] (creio que até Israel tenha participado, mas a sua participação não é divulgada), pois segunda o jornal, “17 países integram a missão”. É claro que o motivo implícito dessa manobra militar é motivado pela guerra civil na Síria, e uma possível coalizão para “estabilização” nesse país.  E o que dizer então dos acordos nucleares entre França e Jordânia, durante o mandato de Sarkozy? Será que um país ocidental teria coragem de fazer tal tipo de acordo com um país que não fosse “democrático”, ou que se suspeitasse que o governo era tirano contra seu próprio povo? Seria muito difícil. Este acordo nuclear, firmado em agosto de 2008 entre as duas nações, entre a Comissão Jordaniana de Energia Atômica (JAEC) e a Areva (francesa), propõe a exploração de urânio na Jordânia, com o fim final de utilizá-lo para fins pacíficos.[24] A França, diga-se de passagem, tem um histórico de ajuda nuclear para o estado de Israel na década de 60, quando este ainda começava a ganhar musculatura. A França ajudou o estado hebreu a se aperfeiçoar na área nuclear, e tempos depois os israelenses construíram no deserto do Neguev um centro para suas atividades nucleares, que antes eram para fins pacíficos, mas logo o programa passou para o viés militar.[25]

          Enfim, tirando as ligações militares e outros envolvimentos governamentais que a Jordânia possui com alguns países de tradição democrática, o que não o torna automaticamente democrático - assim como outros países que seguem os mesmos passos -, a ONU também nos revela dados sobre o engajamento desse país em cooperar com instituições de desenvolvimento social, em busca de equidade entre a sua população, pois apesar da constituição não ser regida pela sharia, alguns traços de forte caráter tribal e masculino (o que alguns vem a chamar de machismo) existe no cotidiano das famílias mais humildes, o que restringe um pouco o papel das mulheres e dos jovens.

            Segundo a UNDAF, órgão que faz parte da ONU, a Jordânia ‘Nos últimos anos, conseguiu impressionantes resultados de desenvolvimento humano e agora está totalmente engajado em um programa abrangente de transformações políticas, económicas e sociais para reforçar os fundamentos da economia. As reformas ousadas e econômica global realizada nas últimas duas décadas, mostra a  ênfase colocada em estimular o crescimento, assegurando a estabilidade macro-econômica e proporcionando um clima atraente para investimento e participação do setor privado. Ele resultou, em um crescimento médio do PIB de 5,5% em 2002 - 2005, reduziu o défice orçamental, e aumento das exportações.’[26]

          Dados como estes muitas vezes não significam nada. Quem disse que país rico, graças ao investimento de setores privados externos, industrializado e que tem relações diplomáticas com o ocidente é democrático? Não tem cabimento tal idéia. E quem disse que no Oriente Médio não há democracia? Só tem democracia em Israel, pois eles não são árabes? Tomara que não seja por isso. O que tem que ser revisto, não é que país é democrático ou não, embora isso seja importante é claro. O que tem que ser revisto daqui para frente, é o que significa democracia, pois hoje, democracia só é aplicada ou utilizada quando convém, ou seja, um puro pragmatismo. Ninguém mais sabe o que é democracia à maneira clássica. Nem mesmo os governantes.

 


[1]http://oglobo.globo.com/mundo/milhares-de-pessoas-comparecem-parada-gay-em-israel-5149671Acesso em 26/06/201

[2] http://www.cartacapital.com.br/internacional/discriminacao-contra-a-mulher-sacode-israel/ Acesso em 26/06/2012

[3] VEJA. 8 JAN. 1969. Acesso em 26/06/2012.

[4] http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI5829791-EI308,00-Israel+judeus+etiopes+sao+confundidos+com+refugiados+e+agredidos.html Acesso em 26/06/2012

[5] http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1277979-5602,00.html Acesso em 26/06/2012

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=118137&id_secao=9 Acesso em 26/06/2012

[6] http://www.prof2000.pt/users/afp/dm.htm Acesso em 26/06/2012

[7] Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente / Edward W. Said, tradução Rosaura Eichenberg. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[8] http://www1.ionline.pt/conteudo/102058-jordania-rei-abdullah-ii-antecipa-revolta-e-derruba-governo Acesso em 26/06/2012

[9] http://pt.globalvoicesonline.org/2011/02/05/egito-a-visao-da-jordania/ Acesso em 27/06/2012

[10] http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI5273803-EI308,00-Onda+de+protestos+em+Israel+aumenta+pressao+sobre+Netanyahu.html Acesso em 26/06/2012

[11] http://www.arabesq.com.br/jordania/turismo/tabid/111/Default.aspx Acesso em 26/06/2012

[12] http://www.pazagora.org/1948/declaracao-da-independencia-de-israel/ Acesso em 26/06/2012

[13] http://pt.visitjordan.com/visitjordan_pt/Default.aspx?tabid=97 Acesso em 27/06/2012

[14] http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2012/06/12/sem-petroleo-jordania-enfrenta-desemprego-deficit-e-corrupcao.htm Acesso em 27/06/2012

[15] http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI4768248-EI308,00-Aiatola+xiita+condena+ataque+a+igreja+catolica+de+Bagda.html

[16] http://historiadordoimpossivel.blogspot.com.br/2009/05/jordania-e-considerada-modelo-de.html Acesso em 28/06/2012.

[17]Idem.

[18]http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2012/06/12/sem-petroleo-jordania-enfrenta-desemprego-deficit-e-corrupcao.htm  Acesso em 28/06/2012

[19] Idem  

[20] http://www.arabesq.com.br/jordania/turismo/tabid/111/Default.aspx  Acesso em 28/06/2012

[21] http://www.areamilitar.net/DIRECTORIO/Aer.aspx?nn=3&P=53&R=FA#A1 Acesso em 28/06/2012

[22] Idem.

[23] http://exame.abril.com.br/economia/politica/noticias/comeca-na-jordania-o-maior-exercicio-militar-em-uma-decada  Acesso em 28/06/2012

[24] http://www.jn.pt/PaginaInicial/Mundo/Interior.aspx?content_id=1005654  Acesso em 28/06/2012

[25] FELDBERG, Samul. Estados Unidos e Israel: uma aliança em questão. Hucitec. 2008.

[26] http://www.undg.org/docs/7123/Jordan%20UNDAF%202008-2012.pdf   Acesso em 28/06/2012.