O desabafo do Delegado José Alvez:

Dia 10.08.07, por volta das nove horas me encontrava na DRP de Joinville  aguardando pelo início do interrogatório da Escrevente Elizete Felipe Quirino,  uma das que auxiliaram o Delegado Marcucci e que foi muito visada pela cúpula da Delegacia-Geral durante o ano de 2005. Logo em seguida dei com o Delegado José Alves que caminhava  devagar, parecendo cansado, deprimido...  Fui ao seu encontro e convidei-o para irmos tomar um café, enquanto aguardávamos a chegada da Elizete que estava atrasada. No caminho Alves desabafou:

- “Ah, Felipe, acho que agora eu vou me aposentar, é definitivo, não tem mais volta. Já fiz contato lá com o Setor de Recursos Humanos e daqui a um mês sai o meu ato”. 

Aproveitei para colocar uma pilha:

- “Eu acho que tu não vais mais te aposentar, sinceramente...”.

Alves insistiu:

- “Não, agora não tem mais retorno, é definitivo, não tem mais volta...”.

Interrompi:

- “Pois eu acho que tu vais mandar segurar a publicação do teu ato..”.

Alves perguntou:

- “Sim, tu estais dizendo isso porque a Administração pode suspender os atos?”

Continuei:

- “Não, você mesmo, Alves”.

Ele reagiu com  rigor:

- “Que é isso, não tem mais volta, agora eu vou, é definitivo!”

Acabei tendo que fazer um relato  sobre o nosso anteprojeto prevendo a criação do “Fundo de Aposentadoria dos Policiais Civis”, mas José Alves  se mostrou cético. Reforcei dizendo que a Polícia Militar já havia conseguido aprovar o seu “Fundo” e que tínhamos  todo o direito de pedir tratamento ingualitário.  No café coloquei mais minhoca na cabeça de Alves:

- “Imagina, tu és Delegado de Quarta Entrância. O teu vencimento básico é uns cinco mil reais por mês. Então, se tu esperares alguns meses, até o final do ano, acabas levando trinta vencimentos básicos. Isso vai dar uns cento e cinqüenta mil reais. Tu tiras trinta e compra um carro novo, não dá? Depois tu tiras mais uns setenta mil e melhora a tua casa, não dá? E ainda sobram cinqüenta para uma viagem e dá para guardar um pouco...”.

Alves pensou um pouco e depois de terminar o café, quando já estávamos de saída, disse:

- “É, eu acho que tu conseguisses colocar minhoca na minha cabeça, conseguisses fazer eu balançar, Felipe”. 

Como Elizete já havia chegado iniciei a audiência de interrogatório e pedi que “Zico”  fosse atrás de Marilisa na sua residência, com o objetivo dela assinar o relatório de instrução (processo disciplinar do Delegado do Marcucci).  Pedi que Alves acompanhasse “Zico”  nessa diligência  a fim de pudesse conversar sobre o  conteúdo do referido relatório. Também solicitei que levassem o interrogatório da policial Elizete para que fosse assinado. Logo em seguida Marilisa me ligou e foi justificando sua ausência na audiência, pois seu sobrinho (filho da irmã que reside em Concórdia) estava muito doente, com febre e ela teve que passar a noite toda em claro cuidando do mesmo. Argumentei que entendia a situação e que não teria maiores problemas. Marilisa perguntou se eu não queria receber minha máquina de volta (a lixadeira “treme-treme”). Percebi que ela deveria estar se sentindo desconfortável com a posse desse bem ao mesmo tempo que se mantinha  distante provavelmente por problemas familiares... Procurei facilitar e disse que ela poderia mandar a “maquininha” pelo policial “Zico”. Marilisa argumentou:

- “Não, querido, o ‘Zico’ já foi...”.

Bom, entendi que ela gostaria de me entregar o referido bem  pessoalmente, quisesse  curar algumas feridas, esclarecer possíveis dúvidas, amenizar o impacto do seu distanciamento, ser fina, educada... Ela chegou a perguntar se eu já estava em Florianópolis ou em São Francisco. Respondi que ainda estava na DRP de Joinville e  que daria uma chegada até sua residência,  deixando escapar uma brincadeira:

- “Oba, vamos almoçar juntos”. 

Marilisa ficou meio surpresa e respondeu:

- “Ah, sim, pode vir, já vou falar com minha empregada...”. 

Não esperava que minha proposta fosse levada  sério e acabei ficando em apuros porque ela levou a sério:

- “Não, não, só estava brincando, nem pense nisso...”. 

Marilisa me passou o endereço da sua residência que eu não lembrava mais onde era  exatamente. Rapidamente cheguei na casa de Marilisa e quando fui estacionar meu carro  pude notar que havia algumas pessoas no local. Consegui identificar  o filho de Marilisa, sendo que de costas havia uma mulher que parecia ser Marilisa, pois não só o corpo e os cabelos, mas também a própria roupa lembrava minha amiga. Acabei adotando uma certa cautela porque havia dois homens conversando próximo dela, um deles de cabelos brancos, muito embora não fosse muito velho, deveria ter não mais do que uns quarenta e cinco anos e  um outro da mesma idade. A impressão que tinha era que um deles pudesse ser o seu ex-marido que era advogado e possuía   escritório no mesmo imóvel  onde ela residia. A casa de Marilisa mais parecia um ginásio de esportes, pois ao lado existia uma outra construção onde antes funcionava a  churrascaria de propriedade do casal. Tudo parecia muito improvisado e pude observar que o pátio do estacionamento estava cheio de folhas secas das árvores...  Saltei do carro e logo que fui me aproximando daquela que achei que pudesse ser Marilisa, a mesma caminhou e ficou na diagonal. Levei um susto, pois percebi que era muito parecida com Marilisa,  dava para ver que tinha mais que sessenta anos e possuía um rosto  envelhecido. Também aparentava ter uma estatura menor, provavelmente em decorrência do peso da idade. Marilisa tinha quarenta e dois anos. Enquanto aquela “senhora” e  o filho de Marilisa se dirigiram para o interior da residência, os dois homens foram  cada qual para suas caminhonetes e abandonaram o local. Acabei sozinho no estacionamento e me dirigi até a porta da entrada que foi fechada na minha cara. Olhei e vi que tinha uma placa com o anúncio do “Advogado Lima” (ex-marido da Marilisa). Como havia um interfone ao lado da porta, resolvi tocar e Marilisa atendeu prontamente dando a impressão de que já estava me aguardando, antes  perguntou se eu queria entrar. Argumentei que não e ela veio ao meu encontro. Acabamos nos abraçando, a seguir, apanhei a  “maquinhinha” e levei direto para o meu carro, onde permanecemos alguns instantes conversando. Acabei fazendo um relato sobre o encontro com o Delegado-Geral Maurício Eskudlark na Delegacia Regional de Balneário Camboriú. Depois acabei falando das “afinidades” entre os Delegados Gilberto Cervi e Silva e o Maurício Eskudlark, da importância de Balneário Camboriú na vida desses dois.... Fiz fazendo alguns comentários sobre o almoço a convite do Delegado  Gilberto Cervi e sua namorada (dona da fábrica de placas) no restaurante Chaplin (Av. Atlântida). Depois comentei outro fato relacionado ao  combustível para a viatura da Corregedoria, quando juntamente com “Zico” fomos pedir gasolina para que o pessoal pudesse chegar na Capital. Nessa ocasião o Delegado Gilberto abriu a carteira e quis dar dinheiro próprio para o abastecimento, só que eu não aceitei..., com isso quis dizer que  Balneário Camboriú mais parecia uma “fiesta”...  Por último, fiz os comentários sobre o  anteprojeto de lei para criação do “fundo de aposentadoria dos policiais civis”    e os olhos de Marilisa brilharam, estampou um  sorriso daqueles...  Procurei me controlar e não dar muito mole porque aquilo poderia acabar   transformando nossa relação em algo muito utilitário, convencional demais e não sabia se ela compreenderia que não podíamos perder o “felling”, a minha maneira de sentir, me relacionar, lutar por uma causa..., desde que houvesse comprometimento e sensibilidade. Conversamos  sobre serviço  e ela me perguntou se na próxima semana   estaria em São Francisco. Disse que não, pois viajaria para Concórdia, mas talvez no final da outra semana... Marilisa comentou  que se fosse a São Francisco daria um jeito de me encontrar por lá para gente conversar melhor... Achei graça daquele seu jeito de falar e Fui surpreendido por mais esta:

- “Felipe eu sei que tu és meu amigo, não és? Sei que és meu amigo...”.

Olhei para ela e pensei fazer um tratado sobre a “amizade”, mas fiquei na superfície e comentei algo provocante e convencional:

- “Sim, só não quero ser teu inimigo”.

Acabamos achando graça e ela logo em seguida foi relatando que passou a última noite sem dormir porque ficou cuidando do seu sobrinho. Perguntei se era grave e ela respondeu que ele se encontra com febre alta. Perguntei se era uma criança e Marilisa me respondeu:

- “Não, não, ele já é universitário, faz engenharia...”. 

Fiquei pensando:

- “Deve ser muito grave mesmo o problema, porque sua mente está tão focada naquilo, há meus tempos de criança, adolescência, fase adulta...”.

Relatei  a conversa que tive com o Delegado José Alves e que achava que ele seguraria um pouco mais a sua aposentadoria. Marilisa achou graça... Também, conversamos sobre o “orgulho” e eu argumentei que no final da vida acabamos mortos, enterrados e onde ficou o nosso orgulho? Marilisa concordou. Lembrei que ter dignidade era importante, muito embora tudo tivesse  limite. No final da conversa comentei  que havia conversado com o Delegado Bini e repassado todas as informações a respeito do anteprojeto do “Fundo” e mais a “emenda constitucional sobre a “Procuradoria-Geral de Polícia”. Comentei que  havia lembrado  que o segredo era a alma do negócio e que não era para ela citar o meu nome em nenhum momento porque já era muito  visado. Citei como exemplo o caso “Dirceu Silveira” no episódio das suas férias... Marilisa concordou que os Delegados que ocupavam cargos de direção na cúpula da Polícia Civil queriam ser importantes,  externar poder... e que por isso  sempre elegiam alguém para menosprezar, humilhar..., tudo de forma pública, procurando demonstrar que eram os  poderosos e que era para os “subordinados”  se sentirem acuados, apequenados... Marilisa concordou e lamentou o que havia acabado de expor. De repente o filho de Marilisa foi até a janela e gritou:

- “Mãe, mãe, vem atender o telefone, é a tua irmã...”.

Marilisa ficou sem saber o que fazer e percebi que ela continuava  preocupada com a saúde do sobrinho e não poderia deixar de atender a ligação. Nos despedimos e ela saiu correndo depois de dois abraços fortes. Quando já estava manobrando meu carro, da porta Marilisa gritou e fez um gesto com a mão, mandando um beijo para mim. Achei aquilo engraçado e  fiquei mirando ela  de longe, meio que pego de surpresa com aquele seu lindo gesto “impulsivo” de uma grande amiga.  Logo que fui me afastando veio um “grilo” na cabeça:

- “Meu Deus, Marilisa é tão preocupada com a família, a ponto de mergulhar profundamente nesses assuntos e esquecer o resto do mundo, das pessoas...”.

Acabei lembrando do Delegado José Alves que confidenciou que quando  não existia horas extras Marilisa vivia inventando doenças, faltava o serviço, mas depois a coisa mudou de figura... Depois, lembrei quando Marilisa  desabafou comigo dizendo que “odiava nossa instituição”.  Fiquei me olhando num espelho virtual e me perguntei: “Puxa vida, eu luto pela instituição, pelos policiais, não reclamo dela, apesar de ver tantos desafios,  espinhos pelo caminho, tantas frustrações... e já passado do final da minha trajetória ainda estou energizado para continuar minha luta, para realizar, empreender,  reivindicar, trabalhar, me emocionar, respirar a Polícia... Se todos pensassem assim, bem provavelmente nosso futuro seria bem melhor...”.  Não querendo ser melhor do que ninguém, nem julgar ou cobrar, mas apenas ter uma visão crítica da  realidade policial, fiquei imaginando o cenário de Joinville, onde José Alves mais parecia um “morto vivo”,  Marilisa desconectada da realidade e transitando à “Barbarela” nos meus pensamentos, já Dirceu Silveira, reinventando o espaço tipo “soldadinho de chumbo” ou que “Rei sou Eu”, e restavam os Delegados novos, todos  cru num cenário caótico, apesar dos sonhos infantes, de todo o crudelíssimo pela frente. Acabei lembrando dos Delegados  Gilberto Cervi e Silva e Maurício Eskudlark, será que lutariam por nossa causa? Depois o DRP de Itajaí veio à mente que apesar de toda a sua  solicitude, mais parecia engessado...  Para onde iríamos? O novato Delegado Bini tinha arriscado  um palpite, isto é, que dali  a dez anos poderíamos  desaparecer, talvez estivesse  certo, mas a minha expectativa era que não, muito pelo contrário, porém, não saberia dizer se estaria  “vivo” em 2017.  Bom,  há dez anos comecei a escrever o “Triunfo Final”, sim, lá se foram  dez anos, e mais dez passam rápido demais, espero estar vivo para chegar lá...  

Pensei na importância dos laços que formei com Marilisa, mesmo que no universo convencional, já era o suficiente para que juntos pudéssemos alavancar projetos institucionais a partir de uma amizade sólida, da confiança mútua, lealdade, sinceridade... O “Fundo de Aposentadoria” era algo importante que beneficiária a todos os policiais que ao longo da vida descontariam um certo percentual dos seus salários para formar o Capital que seria resgatado quando se aposentassem, sendo que no atual momento não recebiam absolutamente nada, muitos como “Zico” continuavam endividados, sem perspectivas...

Acabei voltando meus pensamento para a Escrevente Policial Elizete Felipe Quirino, que tinha interrogado num  processo disciplinar e que – apesar de toda a pressão –  tinha  se revelado uma “guerreira” protegida por forças transcendentes,  com o seu Xamã treliçado. Lembrei que quando ela me disse na nossa saída  que os policiais de Joinville tinham  uma consideração muito grande pela  minha pessoa isso me trouxe um pouco de paz, muito embora não houvesse alteração do meu  “ego”, mas talvez tivesse  algum significado, como uma luz tênue no final de um túnel.