Os inquilinos e a aposentadoria de Garcez:

No dia 01.10.2007, às 16:00 horas, prestes a deixar a Corregedoria da Polícia Civil, antes, porém, resolvi dar uma chegada na sala ao lado (em cujo local havia se fixado  o Corregedor  Nilton Andrade já que o Delegado Garcez estava se retirando em razão do seu processo de aposentadoria). Percebi que  Garcez ainda estava no recinto e mantinha uma conversação com o novo inquilino que estava na chefia  do órgão, razão porque resolvi cumprimentá-lo:

- “Ué, ainda não saiu a tua aposentadoria, Garcez? Esse cara já está há vinte anos falando em aposentadoria e parece que não quer se aposentar mais, agora tá fazendo corpo mele...”.

Garcez se encolheu enquanto Nilton soltou uma gargalhada.  Sai na frente, desci o elevador e percebi que Garcez veio no meu encalce. Resolvi aguardar um pouco e logo que ele se aproximou, isso já na recepção localizada no andar térreo, perguntei:

- “Sim, Garcez sai essa tua aposentadoria ou não sai?”

Notei que Garcez estava de cabelos brancos, ou seja, parecia que resolveu parar de pintá-los, passando uma expressão de envelhecimento. Era visível que meu velho amigo não estava bem espiritualmente e procurei convidá-lo para tomarmos um café. Garcez comenotu  que estava com pressa pois tinha uma consulta médica. Achei esquisito aquele seu comportamento, apesar dele sempre se revelar por meio de gestos seu estresse, ansiedades..., e a informação era que suas férias tinham findado no final de setembro. Logo intui que ele estaria renovando seu afastamento, então, insisti sobre sua aposentadoria e ele foi avisando já mais distante:

- “Depois eu te conto, depois eu te conto...”.

Fiquei pensando: “Conta o quê? O que estaria faltando para o Garcez ir embora, não tem as mínimas condições de continuar na ativa...”. A seguir lembrei também dos cabelos brancos de Marilisa, sempre preocupada de dar um “look” no seu visual, manter um pouco da sua jovialidade, reverberar suspiros inauditos e enlevar resquícios de formosuras dos tempos de outrora. Sim, esses “rabiscos” no trem do dia a dia das nossas vãs existências, ao final dos precipícios superados, das lágrimas derramadas no árido, ao largo da imensidão de vivências passadas e seus abismos intransponíveis..., que acabavam por esculpir  nossas próprias faces, como um dia escreveu J.L.Borges.

O fator Leonardo da Vince, o espírito de J. L. Borges e a “Torre dos Tombos”:

No 02.10.07, horário: dez horas, retornei de um café,  estava na minha sala na Corregedoria da Polícia Civil, quando notei que havia uma ligação da queridíssima Marilisa (celular). Imediatamente retornei a ligação para a Delegacia da Mulher de Joinville a fim de dar um retorno, muito embora soubesse que ela estava desejosa de conversar sobre a viagem do dia seguinte para a região meio oeste. A policial que me atendeu perguntou quem era que estava na linha e tive que me identificar, só que me anunciei como “Felipe Schmidt”, procurando segurar minha risada. Logo em seguida Marilisa deu o ar da sua graça,  percebendo que estava com a voz diferente das outras vezes, parecia mais focada em alguma outra atividade, dando ares de uma profissional responsável e séria, mas em momento algum demonstrou  frieza, tampouco distanciamento, abstração ou algum tipo de introspecção que pudesse estar encapsulando sua atenção. A conversa girou em função da nossa próxima viagem, coisa que poderia se traduzida como uma forma de libertação, ponto de fuga ou uma ponte para romper com a mesmice do cotidiano. Marilisa comentou que havia recebido um contato da Escrivã Ariane da Corregedoria noticiando que nós nos encontraríamos às nove e trinta da manhã na Delegacia Regional de Joinville. Marilisa comentou que já estava sonhando com a nossa viagem e que adorava aquele  momento, o nosso contato estimulante, se sentir útil...

Na sequência aproveitei para citar “Leonardo da Vinci” como o artista das obras inacabadas, considerando que o que mais o fascinava era o processo de criação.  Argumentei para que Marilisa tomasse cuidados, pois  era uma pessoa maravilhosa, cheia de vida, que sabia viver o “poder do agora”, com os pés no chão, entretanto, quando alçava algum tipo vôo rumo a experiências “coloridas” (romper com a sua vida comum) a coisa complicava e aí entrava o efeito “sai da frente”, pois poderia se antever mais alguns “tombos” do alto da "torre", com o fato de ter que retornar  à realidade, lidar com a saudade represada... Argumentei que mesmo voando ela continuava sempre sendo uma pessoa linda, inclusive, mesmo depois dos seus “tombos”. Aproveitei para brincar, dizendo que não era especialista em juntar cacos o que fez com Marilisa soltasse uma boa risada. Comentei, ainda,   a conversa que tive com o Delegado Regional de Joinville Dirceu Silveira quando o mesmo havia dito que ela antes de ser a titular daquela Delegada Regional, isso na época em que estava à frente da Delegacia da Mulher de Joinville, era uma pessoa “esplendorosa”, fazia um trabalho brilhante, digna de elogios de todos... Citei os casos dos Delegados João Pessoa, Zulmar, João Rosa, Marcucci e que todos fizeram seus nomes em razão do trabalho que realizaram à frente da direção regional da Polícia Civil (Joinville). Argumentei que no seu caso foi a mesma coisa, primeiro fez um excelente trabalho à frente da Delegacia da Mulher e acabou sendo mencionada nas pesquisas  como fortíssima candidata à Prefeitura de Joinville, depois veio a DRP de Joinville... Marilisa concordou com a minha lógica e comentou  que na semana passada fez um curso de Polícia Comunitária e se sentiu mais estimulada e cheia de novos planos. Aproveitei para dar uma guinada na nossa conversa e relatei que  estive recentemente em Curitiba para ver o “Cirque du Solèil”, acompanhado da minha família e  Marilisa deu um toque:

- “Puxa tu fosses? Que coisa boa. Que bom, tu fosses com a tua filha?”

Na verdade fui com meus familiares e aproveitei para relaxar comentando  que estava com saudades dela. Ela retribuiu dizendo que também sentia saudades e pude perceber que era verdadeiro aquele seu sentimento. Marilisa chegou ao ponto de confidenciar que muitas vezes em casa lembrava de mim, do fato de viver o agora, sem preocupações com o futuro, coisa que ela sempre fazia, mas que já não importava mais...  Concordei com sua postura, dizendo que a vida era assim mesmo, a realidade sempre nos reservava o “poder do agora”, já o amanhã a gente tinha certeza que viria, mas aliado às incertezas, enquanto que o agora importava em “presente” e que fosse muito bom!

A visão da luz:

Durante essa nossa conversa lembrei de uma outra que tive no seu gabinete, na Delegacia da Mulher de Joinville, onde nós conversamos sobre coisas intensas, profundas, verdadeiras e agora ela estava retribuindo tudo aquilo de forma grandiosa, receptiva, maravilhosa, como se tivesse se iluminado, por meio de uma luz que atravessava seus olhos... Aproveitei para perguntar:

- “Sim, e agora está tudo bem contigo?”

Ela respondeu sem entender muito a minha pergunta:

- “Sim, está tudo bem!”

Insisti:

- “Bom, por que outro dia tu dissesses que havia algo errado, lembra?”

Marilisa respondeu meio que lamentando seu comportamento:

- “Ah, sim, mas agora já está tudo bem, tu sabes como eu sou. Eu sou assim mesmo, as vezes tenha essas quedas...”.

Interrompi:

- “Tudo bem. Mas que bom que já estais melhorzinha, fiquei preocupado. Bom, eu logo pensei que tu precisarias de silêncio, dar um tempo, ficar recolhida, se encontrar, a gente as vezes precisa disso, ainda bem que nessas horas a gente pode contar com pessoas...”.

Marilisa concordou que certas pessoas eram importantes em nossas vidas. Argumentei que no mundo moderno cada vez mais se exigia que nós seres humanos nos  parecêssemos mais com máquinas, mas nós não éramos... Lembrei que uma das coisas que me deixava muito chateado era nosso cérebro primitivo (não quis falar do “bulbo raquidiano”...), estava falando mesmo do aparelho encefálico como um todo, pois nossos pensamentos eram  muito limitados, nossas emoções calibradas... Exemplifiquei que como prova disso precisávamos fazer o bem e o mal  e que isso era uma necessidade existencial, uma dependência química, típica do universo neurológico. Argumentei que muitas vezes tínhamos que falar mal do presidente da república, de políticos... e que na verdade isso era uma forma de fazermos  ecologia nas nossas mentes, de buscar mecanismos de compensação para liberação de neurotransmissores e que quando ficávamos mais velhos isso ficava mais perceptível, acabávamos ficando mais seletivos, críticos e chatos.  Marilisa parecia ouvir atentamente ao mesmo tempo que concordava com minhas observações. No final da conversa perguntei:

- “Sim, já pensasses no teu amanhã?”

Ela respondeu atentamente:

- “Sim, pensei na viagem que vai ser maravilhosa...”.

Interrompi:

- “Sim, pensasses na nossa viagem, mas existiriam outras respostas, não é?”

Marilisa comentou com alegria:

- “Sim, existem outras respostas, mas tu não imaginasses que eu diria isso?” 

Respondi:

- “Bom, eu só quis te dizer que existiriam tantas respostas para essa minha pergunta. Eu só quis te mostrar isso,  na vida existem muitas outras respostas além daquilo que parece tão óbvio, só que a gente não consegue enxergar além, não é?”

Marilisa concordou, dando a impressão que continuava livre, leve e solta para “imaginar” e sentir as coisas boas na vida. Encerramos nossa conversa e aproveitei para deixar  um beijo como bálsamo para lhe trazer bons fluídos. Marilisa dava a impressão que queria continuar conversando comigo o que me levou a comentar:

- “O bom disso é que a gente se fez grande um para o outro. Quando você pensa em mim você traz muitas lembranças, memórias, impressões, surge um fio condutor de calor. Eu sinto a mesma coisa, quando penso em ti é como se fosse um rio, acontece tudo isso também comigo. Então, quando a gente conversa é muito bom porque sabemos que somos importantes um para o outro na nossa  dimensão e isso é que faz a diferença, nos torna importantes, podemos nos ajudar...”. 

O colorizar o mundo:

Acabamos nos despedindo daquele mesmo jeito carinhoso  e com um até amanhã. Marilisa comentou que não via a hora de chegar o nosso encontro do dia seguinte  e eu lembrei do processo de formação dos nossos desejos e a importância deles em nossas vidas. Comentei, também, que existiam dois momentos, ou seja, o processo de idealização em si e depois a realidade. Descobrimos que o bom era a expectação, mas que era preciso também saber viver a realidade com sabedoria,  abrindo passagem para os nossos sonhos que colorizavam nossas vidas e ao mesmo tempo viver o presente da melhor forma possível e fazendo o nosso máximo para atingir nossas metas pessoais e profissionais. Marilisa falou com sagacidade  ao afirmar que era preciso saber viver os dois momentos. Concordei, elogiando a sua “sacada”.  Marilisa argumentou que eu era muito “poeta” com minhas palavras e com o meu jeito de ser. Argumentei que com poesia o mundo se tornava colorido e que essa era uma condição humana de quem consegue transcender na vida dos pobres mortais. Já, sem poesia, o mundo se tornava plano e cinza, era mais máquinas, automação, determinismos, programações, rotinas..., tudo mais triste, sem vida... Depois que terminamos a ligação me recolhi e fiquei pensando: “Espero que essas coisas que converso com Marilisa um dia tenham significado, possam melhorar a sua vida, curar suas feridas, transformá-la numa pessoa cada vez mais forte e melhor, porque ela merece”.