Os gritos de Marilisa:

Dia 05.09.07, por volta das dezoito horas e vinte minutos meu  celular tocou e logo percebi que era a grande amiga Marilisa usando o telefone da Delegacia da Mulher. Fiquei preocupado em razão do controle que estavam fazendo sobre o uso indevido dos telefonemas..., mas como também teríamos que conversar sobre  assuntos de serviço, resolvi deixar nosso bate-papo fluir  à vontade. Logo de início percebi que Marilisa parecia bastante ácida, aliás, nunca tinha visto ela daquele jeito, não poderia imaginar que por detrás de uma anjo havia outro ser em ebulição extrema. Ela começou por um desabafo:

- “...Não agüento mais isso, eu tenho que ir embora, não vejo a hora de ir. Eu já decidi, tenho que pedir remoção para uma cidade pequena para poder suportar esses seis anos e meio que me faltam...”.

Interrompi:

- “Ué, o que é isso. Meu Deus,  essa é a Marilisa que eu não conhecia. Tá vendo, eu sempre soube que existia essa Marilisa por trás...”.

Marilisa, sem perder um mínimo da acidez inicial, arematou:

- “Tu sabes quantos Delegados estão saindo aqui de Joinville, sabes? Três! Três Delegados estão indo embora, onde já se viu. Vai acabar sobrando para mim tirar plantão direto lá naquela ‘Central’”!

Interrompi:

- “Sim, mas tu desaparecesses, fiquei esperando, fiquei preocupado., não desses mais sinal de vida...”.

Marilisa:

- “O que tu queres, tirei  plantão no domingo, depois tirei na terça, agora estou tirando plantão toda semana e tu sabes que quando eu saio do plantão preciso de um dia todo só para descançar...”.

Interrompi:

- “Bom, esse teu lado eu não conhecia minha querida, mas sabia que tava aí guardado bem dentro de ti, sempre soube...”.

Marilisa foi afrouxando, ficou mais desguarnecida, menos armada e já esboçando um sorriso deixou  aquela sua voz tensa, carregada, pesada, nervosa, quase trêmula, deu lugar a velha amiga de sempre  e fez o seguinte comento:

- “Ahahahá, eu sei, mas imagina como é que eu me sinto? Tenho que ir para uma cidade pequena mesmo...”.

Pensei em sugerir Piçarras e que lá ela encontraria o Delegado Masson, mas lembrei do que ela tinha dito dias atrás para o Delegado Getúlio Scherer naquela  nossa viagem (de Campos Novos a Videira), quando foi perguntada se já tinha casado. Marilisa  respondeu como se estivesse sido fustigada dentro de um “abelheiro”  e perguntou se aquilo era “praga” que lhe estava sendo rogada.  A seguir  insistiu que estava muito chateada e eu reiterei:

- “Ah, mas que bom. Isso tem o outro lado. Como tu ficas linda assim...”.

Marilsia interrompeu com um sorriso breve e à maneira de esculacho:

“Ah é, deixa, tu vais ver...!.

Continuei:

- “Não, eu estou falando sério. Isso é bonito, te ver assim de todas as formas possíveis. Eu sempre soube que existia essas ‘Marilisas’ aí dentro, essa tua beleza, tudo junto, desde te ver tensa, nervosa, 'cricri'..., mas agora estou vendo ao vivo e a cores...

Marilisa sorrindo ainda mais e mudando seu  temperamento retrucou:

- “Querido, eu quero ir para uma cidadezinha bem  pequena, tenho que dar um jeito, pode ser até lá na Enseada (São Francisco do Sul), lá é pequeninho...”.

Interrompi:

- “Sim, então tu também queres ser invisível?”

Marilisa sem perder seu sorriso e charme na voz perguntou quando era que nós iríamos viajar novamente. Aproveitei para dar mais um toque como provocação:

- “Ah, sim, só nós dois? Claro...”.

Marilisa me interrompeu parecendo  aflita, como quem quisesse se desvencilhar de qualquer compromisso indigesto e insistiu:

- “Não. Estou falando da nossa viagem do ‘grupo’, lembra?”

Insisti, de forma a manter minhas provocações, e lembrando das brigas dos seus pais:

- “Sei, sei, mas eu pensei que tu estavas me convidando para uma viagem a dois...”.

Marilisa continuou quase que elétrica e esbravejando:

- “Não, eu estou falando da viagem do nosso ‘grupo’”. 

Argumentei:

- “Puxa vida, tu não tens ‘categoria’, heim?”

Marilisa sorriu  e parece que viu cair as fichas, percebeu os seus “micos” e quis flexibilizar a chamada:

- “Ah, sim, claro, claro...!”

Marilisa tirânica?

Já me divertindo com a situação hilária, aproveitei para alfinetar:

- “Tu és tirana mesmo, meu Deus, Marilisa, como tu és ‘tirana’!”

Sem esconder o prazer de ouvir aquela expressão (tirânica), como se fosse um troféu e uma forma de se penitenciar depois de seus desatinos, afinal,  ser chamada de “tirana” era um reforço, uma justificativa, um propósito..., precisava sentir a dor, ferir, machucar porque também foi machucada, fazia bem ir aos extremos dos  sentimentos que chegavam a sangrar a alma, coisas que poderiam envolver “amor”,  “paixão”... Lembrei que um dia ela comentou  que no “amor” tem que haver “sofrimento”, então estava ali a chave para o seu entendimento e por que ela agia daquela maneira comigo, mas eu era apenas um garoto que amava os “Beatles” e os “Rollings Stones”... “ratatatá!”... Achei aquilo muito louco, mas  na dimensão  “quântica” você poderia ser até um viajante e meio, um aprendiz, um observador, um sentinela... e o jeito era embarcar naquela "calda de cometa", ficar bem próximo de uma lua cheia, sentir a energia se liberando, todos os matizes, desde os complexos  sentimentos, aos mais primitivos desejos, passando pelos  mais belos poemas, tudo formando um redemoinho com seus dragões, jardins do Éden, perfumes penetrantes, espadas cortantes, espinhos perfurantes... 

Mais a seguir, argumentei:

- “Acho que a nossa viagem é no início de outubro, se eu não me engano é na primeira semana, marca bem. Ah, vamos ficar naquele Hotel Verde Vale, lembras dele?”

Marilisa deixou escapar  um “sorrisão” querendo dizer que lembrava de “tudo”, sim, ela lembrava até dos detalhes, muito embora se fechasse em copa. Depois Marilisa falou que com a ajuda da filha conseguiu abrir ‘seu’ e-mail e ler as mensagens. Revelou que ainda não sabia mexer no seu correio eletrônico , apenas sabia usar o “Word” para escrever e imprimir textos. Argumentei que o e-mail era muito fácil e que quando estivéssemos juntos ensinaria ela a usar essa ferramenta. Procurei também incentivá-la  dizendo que era  muito fácil usar o computador. Ela propôs que quando eu tivesse com meu “notbook” a gente poderia sentar juntos e ver como era  que funciona “toda a coisa”. Concordei. Marilisa quis saber onde era que eu me encontrava  naquele exato momento, respondi  que estava em Florianópolis, pronto para ir a São Francisco do Sul. Ela ouviu e perguntou até quando que eu ficaria no norte do Estado. Respondi que até sexta ou sábado. Em seguida disse para ela que se precisasse conversar comigo era só ligar (coisa que duvidava muito que iria fazer, mas achei fino da minha parte dizer aquilo até porque o Deputado Darci de Matos poderia fazer algum contato...). Mudamos de assunto e ela me pediu que  contasse uma novidade boa. Fiquei sem saber o que dizer, cheguei a pensar em falar da reunião do Conselho Superior e a questão dos termos circunstanciados, mas aquilo era pesado demais, preferia falar de fantasias, poesias..., “mas justamente com Marilisa...” pensei.  Depois pensei em falar sobre as aposentadorias no Tribunal de Contas, considerando que  o Ministério Público teria dado parecer favorável, mas também resolvi deixar para lá.  Marilisa comentou  que estava com pressa, pois teria que pegar seu  filho  não sei para onde.  Também,  estava preocupado com o uso do telefone da Corregedoria  e acabamos nosso contato por ali, como do jeito de sempre, ela com aquele ar de “barbarella” e eu sendo o seu amo Barbarello, já condicionado às suas reações evasivas e a permanecer sempre alegre na superfície.

Relembrando três adjetivações:

Depois que encerramos a ligação fiquei pensando em três adjetivações que um dia “pararam” Marilisa, ou seja, quando a chamei de “fujona” (em Curitibanos), depois de “artista” num dos nossos contados e agora como “tirana”. Nesses três momentos percebi que sua mente teria ficado  focada, querendo ouvir, saber mais, como aquilo mexia com ela, era  como se  percebesse um “flash” tomando conta da sua mente dinâmica e sedenta de fogo e curiosidade. Tudo isso revelava  algo de verdadeiro em termos de sentimentos, como se fosse uma revelação de que o importante era a “entrega integral”, do contrário não haveria química alguma que faria superar o fator tempo.  Sim, sua mente “esperta” estava sempre  atenta aos detalhes, a tudo,  muito embora isso fosse  algo muito sutil, pois sua civilidade, elegância, beleza, modalidade conseguiam em muito  neutralizar o seu lado vivaz  e perspicaz  de captação sinais, movimentos, sentimentos, fragmentos, imagens, pensamentos...  Esse lado desafiante parecia bom, mas, enfim, pobre de nós que não éramos  nada, apenas crianças, sobreviventes, “pássaros feridos”... Agradeci não ter que avançar nos meus  relatos além do portal do 07.07.07”, muito embora aquela data tenha sido nosso  divisor de águas, ou seja, tive que moldar minha forma de pensar e sentir, procurando me adaptar ante o fervilho conclusivo e inspirador que me possibilitaria manter a lucidez e vivacidade mesmo dentro do mundo convencional, porque do outro lado do portal todo o processo poderia se perder em razão da nossa cumplicidade integral, das variáveis e variantes.