DECODIFICANDO GEOGRAFIAS PRETÉRITAS E HODIERNAS DE ILHA DE GUARATIBA

Por MARCIO LUIS FERNANDES | 25/01/2017 | Geografia

PRIMEIRAS PALAVRAS 

Ao focalizar a transformação do espaço indiferenciado em lugar através, tanto das experiências nele vividas, quanto do processo de dotação de valor ao mesmo, Tuan (1983) refere-se ao valor simbólico e afetivo (valoração) atribuído por indivíduos e grupos sociais a uma dada localidade. No entanto, a passagem de espaço para lugar não envolve apenas o valor simbólico e afetivo da porção espacial na qual o indivíduo está inserido. Em muitos casos, o valor econômico (valorização), ou de outras esferas, conferido a um fixo, logradouro ou área, pode representar um elemento indispensável para transformações espaciais qualitativas (FERNANDES, 2006).

Nestas circunstâncias, o elo afetivo entre a pessoa e o lugar é forjado através das experiências vividas, mediadas - na maioria das vezes - por uma longa e/ou intensa interação do indivíduo com seu mundo vivido. Esses valores são singulares, coletivos, subjetivos e intersubjetivos, fazendo assim parte do acervo íntimo e particular do(s) indivíduo(s) e grupos sociais. Em sua abordagem humanística da relação entre espaço e lugar, Mello (1990), com base em Tuan (1983), assevera que determinados espaços só se tornam lugares após uma demorada experiência. O que inicialmente é feio, "sem vida" ou até mesmo odiado (espaço), com o tempo pode ganhar foros de lugar. Espaços se tornam lugares em razão do contato com outras pessoas e em trocas afetivas, econômicas etc (MELLO, 1990). Neste contexto, espaços se tornam lugares não apenas por meio de trocas afetivas (valoração), mas também através de trocas econômicas (valorização) ou por questão de status (YÁZIGI, 2003). Certos espaços só se tornam lugares após passarem por um processo de valorização que determine uma mudança de seus vivenciadores (valoração) na relação com o seu cotidiano e/ou mundo vivido. Nesse caso, a valorização do espaço pode produzir também a valoração, daqueles que o experienciam, por seu universo vivido que alcança assim o patamar de lugar (FERNANDES, 2003; 2006; MELLO, 1990; 1991; 2000; TUAN, 1982; 1983; 1998).

Ilha de Guaratiba, porção periférica da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, passa, atualmente, por um processo de mudança de função, uma vez que sua pretérita estrutura rural-agrícola, devido a uma crescente especulação imobiliária - que tendo seu início na década de 1970, intensificou-se nos últimos anos da década de 1990 -  11 vem sendo substituída pela hodierna estrutura urbano-residencial (FERNANDES, 2006). O evento em questão tem estimulado uma considerável mobilidade em direção ao lugar. O local bucólico, visitado esporadicamente por proprietários de residências secundárias - tradicional produtor agrícola - passa por um constante processo de valorização fundiária/imobiliária e por um aumento considerável em sua população residente. A localidade em tela há anos é apresentada como o mais provável alvo sobre o qual incidirá o volátil capital especulativo imobiliário. Muitos especialistas no assunto apontam que a cidade do Rio de Janeiro crescerá em direção à Guaratiba, notadamente os segmentos mais abastados (LESSA, 2001).

 Além desse relevante fenômeno para a análise espacial, por meio de pesquisas qualitativas, pretendemos focalizar outro fenômeno, de porte existencial, pois está vinculado a uma metamorfose sentimental do guaratibano que, no bojo desse processo, tem sido influenciado em sua maneira de viver.

Todo esse processo de mudança espacial em que a pretérita estrutura ruralagrícola de Ilha de Guaratiba vem gradativamente sendo substituída por uma nova estrutura urbano-residencial, obviamente, tem modificado suas formas espaciais, a função da terra - uma vez que esta, deixando de produzir alimentos - passa a representar uma opção de moradia ou uma gleba de valor imobiliário e, principalmente, a existencial maneira de viver dos guaratibanos.

 Em relação às transformações espaciais que ocorrem em um dado lugar, pensamos que as metamorfoses existenciais, as perspectivas e as demais experiências vividas por seus habitantes não devem ser negligenciadas. Partindo desta premissa, os contextos geográficos pretéritos e contemporâneos de Ilha de Guaratiba serão interpretados considerando as vivências relatadas por alguns de seus vivenciadores.

A expansão do tecido urbano carioca, notabilizado pelo fenômeno descrito por Abreu (2008) como "febre imobiliária," depois de ter percorrido o litoral a partir do centro da cidade (Área Central - Zona Sul - Barra da Tijuca - Recreio dos Bandeirantes) e, mesmo no interior, no âmbito da Zona Norte, "Central do Brasil", Leopoldina e Zona Oeste tradicional, urge por atravessar o maciço (Serra da Grota Funda) em direção à Guaratiba (LESSA, 2001), envolvendo um espaço a ser descortinado, quem sabe, alçado à categoria de lar ou lugar, tendo em vista a chegada de novos moradores que,  12 segundo Haesbaert (2004), tanto podem influenciar os grupos mais enraizados, como podem por eles ser subordinados.

 Com o Planeta sofrendo intensas transformações, urge saber de seus próprios indivíduos quais os seus sonhos, premências, embates e triunfos. Com efeito, a dissertação opta por um atalho de significativa pertinência, dando voz aos seus novos e antigos moradores para o entendimento de seus lugares vividos.

 A passagem de espaço para lugar, como temos discorrido, emerge das experiências vividas pelo(s) indivíduo(s) e/ou grupos sociais em seus lugares. Por ser de natureza existencial, essa metamorfose subjetiva ocorre a partir da mudança de postura das pessoas com seu mundo vivido. Por fazer parte do acervo íntimo de cada indivíduo, esse tipo de experiência pode ser descrita por meio de depoimentos nos quais a pessoa relata suas práticas cotidianas e os valores históricos, culturais, afetivos, sociais, estéticos, econômicos e simbólicos atribuídos a um outrora espaço indiferenciado que - após ganhar visibilidade e/ou permanência - se transforma em lugar (FERNANDES, 2003; 2006; MELLO, 1990; 1991; 2000; TUAN, 1983; 1998;

YÁZIGI, 2003).

 Os lugares são repletos de símbolos, sendo este preceito defendido pelos geógrafos do horizonte humanístico, segundo os quais os lugares e seus símbolos adquirem profundo significado de acordo com os laços emocionais tecidos ao longo dos anos (MELLO, 2003; TUAN, 1980; 1983). Nestas condições, o campo humanístico tem como uma de suas tarefas conciliar, entender e decodificar o conteúdo simbólico dos lugares. Uma vez que, o indivíduo não é distinto de seu lugar (RELPH, 1976) e cada pessoa possui uma geografia particular e pessoal (COSGROVE, 2004; LOWENTHAL, 1982), faz-se necessário uma abordagem fenomenológica que privilegie o indivíduo em seu mundo vivido. Assim sendo, esta dissertação tem por objetivo abordar a maneira como as transformações espaciais afetam a vida de relações dos guaratibanos em suas geografias existenciais. Nessa trilha, pretendemos traduzir e decodificar suas geografias pessoais, forjadas por meio das experiências vividas, vivência esta responsável pela eleição de símbolos pretéritos e hodiernos e por uma forte identificação com seu lugar.

13 A pesquisa se justifica pela necessidade de um enfoque de indivíduos e grupos sociais integrantes de uma porção estratégica da cidade do Rio de Janeiro (LESSA, 2001), quadro este que está sendo rapidamente modificado pelas alterações vigentes.

A área em questão tem sido amplamente estudada por agrônomos, biólogos, ambientalistas e arqueólogos que buscam salientar sua importância relacionada à fauna, à flora e à natureza de uma maneira geral. No entanto, a localidade em tela é carente de pesquisas que privilegie o elemento humano em relação às mudanças espaciais e ambientais, campo este específico das ciências sociais e da geografia em particular (MORAES, 2007).

 O autor desta pesquisa reside em Ilha de Guaratiba desde seu nascimento, sendo desbravador e conhecedor de seus domínios, possuindo uma grande identificação com seu lugar vivido. Evidentemente que apenas este fato não é suficiente para justificar um trabalho acadêmico. No entanto, Ilha de Guaratiba é um lugar relevante para ser explorado e, nestas condições, ser foco de estudos e pesquisas, motivo para que a dissertação seja desenvolvida com maior motivação.

 Nesta trilha, a presente dissertação procurará apresentar um quadro de experiências, vivências simbólicas e afetivas, entre outras, pelas quais o lugar focalizado vem passando, aguçando seu estudo a partir das experiências vividas pelos indivíduos e grupos sociais.

 Por privilegiar o(s) indivíduo(s) em seu lugar vivido, nossa pesquisa se pauta no método fenomenológico, utilizando também outro suporte filosófico pertencente ao nicho das filosofias do significado, qual seja, a hermenêutica. As bases teóricas desta dissertação foram buscadas em autores humanísticos que se fundamentam em subjetividades, simbolismos e identidades, portanto, em adeptos do método fenomenológico e da hermenêutica como Relph (1976), Buttimer (1982), Tuan (1982;

1983; 1998), Holzer (2001; 2008) e Mello (1990; 1991; 1993; 1999; 2000).

 Pretendemos manter a linha metodológica nos baseando nos pressupostos da fenomenologia e da hermenêutica que buscam decodificar as geografias existenciais por meio de análises qualitativas onde o indivíduo é importante e o seu mundo vivido fundamental (ARANHA, 1996; ABBAGNANO, 2007) em meio à indivisibilidade sujeito/objeto. Sendo assim, a metodologia proposta baseia-se em intensa pesquisa  14 bibliográfica e coleta de material filosófico que tem nos fornecido um relevante apoio teórico-conceitual. Nestas condições, não ferindo os princípios do humanismo em geografia, recorremos a entrevistas e conversas informais com os antigos e os novos guaratibanos, onde buscamos explicitar e interpretar a geografia de cada um desses indivíduos, em uma tentativa de decifrar a(s) geografia(s) de Ilha de Guaratiba com base e compromisso com o referido mundo vivido. A fim de alcançar uma análise fenomenológica, decifrando o sentimento e o entendimento dos indivíduos e grupos sociais em relação ao espaço forjado, vivido e reverenciado, procuramos conduzir nossas pesquisas qualitativas (entrevistas) "ao ritmo da pessoa entrevistada, ou seja, livre, espontânea, informal, sem limitações de tempo e temas e em seu próprio meio", como preconiza Nogué Y Font (1992, p.90).

 Nestes termos, estamos falando da filosofia fenomenológica, na qual a geografia humanística busca elementos para pautar suas pesquisas. A noção mais frequentemente utilizada pelos geógrafos da ala humanística é justamente o conceito de lugar, advindo da fenomenológica e indissociável idéia de mundo vivido no qual não há separação entre o sujeito e o objeto. Nestas circunstâncias, o indivíduo e tudo que o rodeia compõem um mundo pleno de valores, sofrimentos, dilemas, alegrias, vivências e utopias em meio a amigos, parentes, conhecidos, base territorial, sentimentos e assim por diante, compondo um todo de introjeções, estranhamentos, aderências, reinvenções, fobias e pertencimentos (MELLO, 2000).

 A presente dissertação, vale repetir, se debruça, igualmente, em traduzir, decodificar e interpretar os mundos vividos, existenciais e coletivos, isto é, subjetivos e intersubjetivos de Ilha de Guaratiba. Com esse fim, as muitas leituras de porte que fizemos durante os inaugurais semestres do mestrado, nos possibilitaram caminhos mais profícuos em relação ao método, onde novos e importantes componentes conceituais (escapismo, simbolismo etc) foram acrescidos. Além disso, as entrevistas empreendidas nos meses de abril, maio e junho de 2009, deflagraram novos elementos, uma vez que buscamos nas pesquisas qualitativas, relatos que dessem conta da teia de complexidade envolvendo os lugares vividos dos antigos e novos guaratibanos.

15 A partir do processo de renovação da geografia e da eclosão da geografia crítica

- entendida como as correntes que romperam com os ideários positivista e neopositivista

- geógrafos de diversas orientações metodológicas (existencialistas, marxistas, ecléticos etc) passaram a assumir uma perspectiva mais humana, buscando por meio da transformação da ordem social, uma geografia mais generosa e um espaço ou lugar mais justo, que seja organizado em função dos homens (MORAES, 2007).

Nesse sentido, pensamos que a melhor maneira de focalizar o ser humano no centro de todas as coisas (MELLO, 1991; 2000; 2001; TUAN, 1982; 1983; 1998) seria por meio da utilização dos acervos íntimos e particulares de cada indivíduo nas abordagens do seu universo vivido, onde seu enfoque fosse a base da investigação científica. Assim feito, emergiria uma geografia mais vibrante, generosa e - por que não dizer - mais humana, uma vez que a geografia produzida pelos vivenciadores de sua porção espacial experienciada, poderia produzir, também, um lugar baseado em suas reais necessidades e/ou anseios (econômicas, sociais, afetivas, existenciais etc). Nossa pesquisa consiste em aplicar a premissa aqui descrita, a um contexto sócio-espacial na qual vigora o foco de investigação, propondo com isso a inclusão do(s) guaratibano(s) como seus protagonista(s) e/ou (co)autores.

A dissertação encontra-se organizada em quatro capítulos. No primeiro, nosso propósito é fornecer um quadro teórico com alguns temas e conceitos que servirão de base para a parte substantiva da pesquisa (capítulos 2, 3 e 4). Assim sendo, nesse capítulo, intitulado Por uma geografia mais humana, nos debruçaremos sobre os pressupostos do horizonte humanístico, estabelecendo este viés como uma proposta para a humanização da geografia. Complementando, então, nossa asserção de focalizar os indivíduos no centro de nossa investigação, versaremos sobre alguns dos princípios defendidos pela hermenêutica e pela fenomenologia, sendo estes os principais fundamentos filosóficos do humanismo em geografia.

No segundo capítulo, nossa meta é tecer uma abordagem sintética do processo de mudanças na espacialidade em tela, intentando contextualizar as geografias de outrora ao contexto geográfico hodierno por meio dos relatos de alguns guaratibanos que vivenciaram e/ou vivenciam as transformações pelas quais o lugar vem passando ao longo do tempo. Com este fim, utilizaremos os pressupostos metodológicos citados  16 anteriormente, objetivando descortinar geografias de outrora e contemporâneas em uma abordagem que privilegie o enfoque dos muitos geógrafos informais (COSGROVE, 2004) da localidade em tela, em relação ao fenômeno vigente em seu lugar vivido.

Assim sendo, neste capítulo, nosso objetivo é descortinar as geografias pretéritas e hodiernas de Ilha de Guaratiba a partir da decadência da pretérita estrutura ruralagrícola, devido a inúmeros fatores responsáveis pelo advento dos vários condomínios residenciais na área em foco, culminando com transformações que conferem hodiernamente uma estrutura urbano-residencial à porção da periferia metropolitana em tela.

No terceiro capítulo, o conteúdo simbólico do lugar também será alvo de nossa investida, onde por meio de relatos pessoais e individualizados, buscaremos captar e decifrar os símbolos hodiernos e pretéritos de Ilha de Guaratiba, segundo o enfoque dos guaratibanos Finalmente, no quarto capítulo, versaremos sobre as experiências íntimas dos antigos e novos guaratibanos com o seu universo vivido que, após ganhar visibilidade, tornou-se o centro (umbigo) do seu mundo, ou seja, com uma expressão etnocêntrica, no que diz respeito à geografia. A gradativa metamorfose existencial e as demais transformações subjetivas ocorridas na vida das pessoas no desenrolar do processo de mudança (urbanização) que ocorre na localidade, igualmente, merecerão destaque nesta última etapa da dissertação. Assim sendo, neste capítulo, buscaremos decodificar geografias existenciais de Ilha de Guaratiba.

Mesmo disponibilizando um capítulo contendo os princípios metodológicos da dissertação, pretendemos observar a articulação entre a base teórico-conceitual e o trabalho empírico por meio da utilização de temas e conceitos que nortearão a pesquisa atrelada à sua parte operacional. Vale frisar que a delimitação temática e metodológica encontra-se implícita e/ou explicitamente circunscrita das primeiras às derradeiras páginas desta dissertação.

Diante do exposto, consideremos as questões pertinentes no que tange os pressupostos do horizonte humanístico, bem como os princípios defendidos pela hermenêutica e pela fenomenologia, sendo estes os principais fundamentos filosóficos da corrente que norteia este trabalho dissertativo.

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