DE ARRANHÃO EM ARRANHÃO: O CICLO DA REPETIÇÃO
Publicado em 03 de janeiro de 2022 por José Lima de Jesus
Parece que 'cê sente cheiro de bebida de longe
Sabe que eu 'to fraco
Aí que entra seu nome na tela do celular
Me perguntando "onde você 'tá?" (Musica Henrique & Juliano [1])
O personagem descrito na musica transfere para a bebida uma falta, busca preencher de algo que certamente não tem nome, nominado por Lacan de objeto “a”, que é aquilo que sempre falta, é o desejo que sempre está em movimento, ele transfere para a bebida uma falta, uma busca de um desejo que não tem nome, o objeto “a” (Lacan) aquilo que sempre falta. o desejo sempre está em movimento em busca de satisfação que nunca acontece.
O poeta narra uma experiência chamada “repetição”, fenômeno descrito Freud (1914) no texto “Recordar, Repetir e Elaborar”, em que a pessoa não recorda nada do que esqueceu ou reprimiu, mas o expressa pela atuação ou atua-o, ou seja, reproduz não como lembrança, mas como ação, dessa forma, repete sem saber o que está repetindo, isso porque o faz de forma inconsciente.
Na terapia é comum a pessoa se colocar sempre como vitima da sua história, dominado pelo desejo do outro, raramente percebe sua participação no processo do que o faz sofrer, o poeta mostra essa realidade pois transfere para o outro(a) responsabilidade:
Parece que 'cê sente cheiro de bebida de longe
Sabe que eu 'to fraco
A pessoa já percebeu que sob os efeitos do álcool o outro (a) se torna vulnerável pois há um relaxamento em relação a censura do EGO, contudo, o outro é sempre o responsável por “saber onde a saudade aperta” e o atinge com o movimento do dedo na tela do celular que o “acerta”. Na sequencia ele diz:
E deixa minha raiva cega
'Cê sabe que eu sou incapaz e a falta que faz
Não sabemos qual ideia teria sido reprimida pelo personagem, contudo, a raiva é o sentimento representativo de uma experiencia vivenciada e não lembrada, poderia ser um desejo censurado pela sua moral, essa raiva atua como uma defesa, um compromisso entre o “conteúdo reprimido” e a “realização do desejo” é um substituto desprazeroso, ao mesmo tempo, uma forma de realizar inconscientemente o conteúdo recalcado.
Aí que mora o perigo
Aí que eu caio lindo
Aí que eu sei das consequências, mesmo assim vou indo
É que vale à pena, vale a cama, vale o risco
O que é um arranhão pra quem já 'tá fudido?
O poeta agora mostra que ele tem consciência do que repete, sabe o “perigo”, mas não consegue evitar “caio lindo”, admite que a razão não é suficiente:
“Aí que eu sei das consequências, mesmo assim vou indo”.
Essa é a razão porque a psicanálise não trabalha com conselhos, orientações diretas sobre o que a pessoa deve ou não fazer, pois não é uma questão de elevar a autoestima com palavras de apoio, isso porque, a pessoa sabe das consequências, “mesmo assim vou indo”.
A repetição se dá devido a impossibilidade da pessoa acessar os conteúdos que foram reprimidos, ligar a ideia reprimida no inconsciente aos sentimentos que acompanham repetição:
“É que vale à pena, vale a cama, vale o risco”!
O poeta admite o sofrimento causado pela repetição daquilo que o faz sofrer, sabe que repete e gostaria de não repetir, mas há prazer na repetição, há o “ganho secundário”. Embora na esfera do consciente transfira ao outro a responsabilidade pelo seu sofrimento, admite que na equação prazer x dor na repetição, pergunta:
“O que é um arranhão para quem já está fudido”.
O que o poeta não diz é que de “arranhão em arranhão” uma hora a pessoa se cansa, o sofrimento da repetição vai fazer com que o prazer como ganho secundário começará a não satisfazer como antes, é nessa hora que a pessoa precisa buscar ajuda.
A terapia permite a pessoa trazer as vivencias que não foram conscientes para ser rememorados, ou seja, ajudar a pessoa “lembrar” para elaborar (dar sentido), pois ela repete porque não se lembra da ideia que foi deslocada para o inconsciente.
Na relação terapeuta e paciente na clinica, o conteúdo recalcado vem para o consciente, e assim, não haverá mais necessidade de repetir. Os sentimentos que antes o impulsionava ao “arranhão” perde a razão de existir não precisará mais da “raiva” como defesa e a “raiva cega” como efeito do álcool que fragiliza a barreira da censura para ceder a compulsão da repetição.
Na terapia a pessoa tem a oportunidade de assumir o protagonismo da sua história.
REFERÊNCIAS
[1] A letra foi composta por Edson Garcia, Felipe Marins, Flavinho Kadet, Felipe KeF, Kaique KeF e Nudoze. https://www.letras.mus.br/henrique-e-juliano/arranhao/ Acesso em 28 de Dezembro de 2021