Parece que 'cê sente cheiro de bebida de longe
Sabe que eu 'to fraco
Aí que entra seu nome na tela do celular
Me perguntando "onde você 'tá?" (Musica Henrique & Juliano [1])

O personagem descrito na musica transfere para a bebida uma falta, busca preencher de algo que certamente não tem nome, nominado por Lacan de objeto “a”, que é aquilo que sempre falta, é o desejo que sempre está em movimento, ele transfere para a bebida uma falta, uma busca de um desejo que não tem nome, o objeto “a” (Lacan) aquilo que sempre falta. o desejo sempre está em movimento em busca de satisfação que nunca acontece.

O poeta narra uma experiência chamada “repetição”, fenômeno descrito Freud (1914) no texto “Recordar, Repetir e Elaborar”, em que a pessoa não recorda nada do que esqueceu ou reprimiu, mas o expressa pela atuação ou atua-o, ou seja, reproduz não como lembrança, mas como ação, dessa forma, repete sem saber o que está repetindo, isso porque o faz de forma inconsciente.

Na terapia é comum a pessoa se colocar sempre como vitima da sua história, dominado pelo desejo do outro, raramente percebe sua participação no processo do que o faz sofrer, o poeta mostra essa realidade pois transfere para o outro(a) responsabilidade:

Parece que 'cê sente cheiro de bebida de longe
Sabe que eu 'to fraco

A pessoa já percebeu que sob os efeitos do álcool o outro (a) se torna  vulnerável pois há um relaxamento em relação a censura do EGO, contudo, o outro é sempre o responsável por “saber onde a saudade aperta” e o atinge com o movimento do dedo na tela do celular que o “acerta”. Na sequencia ele diz:

E deixa minha raiva cega
'Cê sabe que eu sou incapaz e a falta que faz

Não sabemos qual ideia teria sido reprimida pelo personagem, contudo, a raiva é o sentimento representativo de uma experiencia vivenciada e não lembrada, poderia ser um desejo censurado pela sua moral, essa raiva atua como uma defesa, um compromisso entre o “conteúdo reprimido” e a “realização do desejo” é um substituto desprazeroso, ao mesmo tempo, uma forma de realizar inconscientemente o conteúdo recalcado.

Aí que mora o perigo
Aí que eu caio lindo
Aí que eu sei das consequências, mesmo assim vou indo
É que vale à pena, vale a cama, vale o risco
O que é um arranhão pra quem já 'tá fudido?

O poeta agora mostra que ele tem consciência do que repete, sabe o “perigo”, mas não consegue evitar “caio lindo”, admite que a razão não é suficiente:

“Aí que eu sei das consequências, mesmo assim vou indo”.

Essa é a razão porque a psicanálise não trabalha com conselhos, orientações diretas sobre o que a pessoa deve ou não fazer, pois não é uma questão de elevar a autoestima com palavras de apoio, isso porque, a pessoa sabe das consequências, “mesmo assim vou indo”.

A repetição se dá devido a impossibilidade da pessoa acessar os conteúdos que foram reprimidos, ligar a ideia reprimida no inconsciente aos sentimentos que acompanham repetição:

“É que vale à pena, vale a cama, vale o risco”!

O poeta admite o sofrimento causado pela repetição daquilo que o faz sofrer, sabe que repete e gostaria de não repetir, mas há prazer na repetição, há o “ganho secundário”. Embora na esfera do consciente transfira ao outro a responsabilidade pelo seu sofrimento, admite que na equação prazer x dor na repetição, pergunta:

“O que é um arranhão para quem já está fudido”.

O que o poeta não diz é que de “arranhão em arranhão” uma hora a pessoa se cansa, o sofrimento da repetição vai fazer com que o prazer como ganho secundário começará a não satisfazer como antes, é nessa hora que a pessoa precisa buscar ajuda.

A terapia permite a pessoa trazer as vivencias que não foram conscientes para ser rememorados, ou seja, ajudar a pessoa “lembrar” para elaborar (dar sentido), pois ela repete porque não se lembra da ideia que foi deslocada para o inconsciente.

Na relação terapeuta e paciente na clinica, o conteúdo recalcado vem para o  consciente, e assim, não haverá mais necessidade de repetir. Os sentimentos que antes o impulsionava ao “arranhão” perde a razão de existir não precisará mais da “raiva” como defesa e a “raiva cega” como efeito do álcool que fragiliza a barreira da censura para ceder a compulsão da repetição.

Na terapia a pessoa tem a oportunidade de assumir o protagonismo da sua história.

 

REFERÊNCIAS

[1] A letra foi composta por Edson Garcia, Felipe Marins, Flavinho Kadet, Felipe KeF, Kaique KeF e Nudoze.  https://www.letras.mus.br/henrique-e-juliano/arranhao/  Acesso em 28 de Dezembro de 2021