Marcos Dias de Araújo*

As modernas coleções artísticas e de história natural começaram nos palácios dos homens ricos da Itália renascentista. O culto ao belo que era antes associado ao culto religioso – e nas catedrais góticas este belo estava nos pórticos, estátuas e vitrais - passou a impregnar o senso e o ser dos homens da elite que cultivavam o belo em si. Seus artistas eram seus empregados, as estátuas antigas que compravam embelezavam seus palácios e os recursos públicos eram utilizados ao bel prazer do príncipe. Todos sabem como Michelangelo se maravilhou ao ver pela primeira vez o pátio dos Médici em Florença: as estátuas romanas que pode ver e, no caso dele, porque não, tocá-las, senti-las com mãos de artesão da pedra. Assim foram formadas as coleções famosas do Vaticano, de Mântua, da cidade de Veneza e dos Médici em Florença que geraram a Galeria dos Ufizzi. Nesta época, se destruíam facilmente ruínas romanas e ou a arte do momento, como no caso da destruição da estátua de bronze do Papa Júlio II, feita por Michelangelo para amedrontar a recém conquistada Bologna, e que, numa revolta, a cidade transformou num canhão!

Os livros e textos antigos, copiados pelos sábios e armazenados nos mosteiros e sedes de estado, em cartórios e o novo conhecimento divulgado pela ciência criaram uma série de bibliotecas de sábios, famílias e estados que visava armazenar conhecimento numa sede de saber que permitiu o investimento nas artes, na literatura e na publicação dos livros de gênios e cientistas. Estes também se tornaram colecionadores de livros, que logo formaram bibliotecas privadas que, muitas vezes, enriqueciam depois de suas mortes as bibliotecas das universidades ou nas bibliotecas das cidades.

O modo italiano de fazer política e de usar a arte para enaltecer os feitos e imagens reais logo começou a ser copiado pelos demais reinos da Europa. Reis e suas cortes começaram a consumir arte, transferindo partes dos poderes mágicos da arte aos seus consumidores – a produção de imagens enche o espírito de vaidade, como nos mostram os selfies, e as horas gastas em suas produções e visualizações. Na França dos Valois, os reis copiavam e contratavam seus artistas na Itália: Leonardo da Vinci morreu na França a serviço de Francisco I. Depois, quando o reino foi controlado por mulheres italianas da família Médici, o uso da arte como política ganhou destaque, como o caso da arte de Rubens para o Ciclo de Maria de Médici, regente do filho Luís XIII. Também na Inglaterra, Holanda, Alemanha e até na Rússia, desde Catarina II, quando a coleção real ganhou volume e importância, os Palácios se encheram de quadros dos mestres da pintura e da escultura. É certo que os artistas eram na maioria pobres, mas entre eles também houve o cultivo do belo e do antigo, como nas coleções pessoais de um Rembrandt, antes de sua falência, por exemplo.

Na Holanda do século XVII, o culto às artes começou a atingir as classes comerciais e urbanas, que preenchiam suas paredes de tapeçarias modestas e quadros temáticos relacionados com a atividade do lar: marinas para mostrar a atividade mercantil naval da família; uma natureza morta que fazia alusão à natureza, a caça e pesca ou à refeição; um quadro com tema bíblico que relatava uma história apreciada pela família, um retrato familiar e uma paisagem da cidade ou arredores.

No século XVIII, na Inglaterra, Joshua Reynolds, pintor e teórico nas artes, dizia que o ensino das artes deveria ser feito a partir da observação e cópia das obras dos grandes mestres, mandando os artistas para a Itália. Assim, a elite inglesa foi comprando arte e contratando artistas que traziam técnicas e paisagens italianas para a Grã-Bretanha. As coleções dos reis e nobres era visitada pelos artistas, depois de muitos pedidos e menções honrosas às famílias, que, então, podiam começar na arte de copiar os mestres por meio das coleções privadas. Descobertas de ruínas romanas levaram a uma exposição pública em Arles, em 1614, quando quatro ricos doaram suas coleções privadas de arte antiga para a criação do primeiro museu público na França, em 1694 na cidade de Besançon.

Nos séculos XVII e XVIII, os sábios começaram a acumular mais que livros: objetos de caráter histórico, documentos, animais empalhados, instrumentos diversos, tipos exóticos e bizarros, qualquer coisa estrangeira e diferente que mostrasse ao colecionador e visitante destes gabinetes de curiosidades o quão culto era o sujeito que acumulava estes objetos para saber mais sobre elas. Os cientistas, os professores e as universidades logo se tornaram as pessoas e o local para armazenar coleções de espécimes, rochas, flores e folhas. Um local que reunia materiais para serem analisados pelos estudantes logo à mão.

Na Inglaterra, em 1759, o gabinete de curiosidades, a biblioteca e a coleção de Hans Sloane transformaram-se num legado para o país e é a origem do Museu Britânico. As duas condições de Sloane colocou foram que o Parlamento aportasse 20.000 libras e mantivesse a gratuidade da entrada na exposição. Até hoje o maior museu da Inglaterra é administrado pelo Estado, ainda que busque financiamento em diversas fontes e na cobrança de ingressos para visitação de exposições temporárias e nas visitas guiadas.

No século XVIII, graças ao Iluminismo e seu avanço sobre o obscurantismo religioso, as universidades cresceram e a razão mostrou mais caminhos possíveis à ciência e ao conhecimento. Com a Revolução Francesa, os Palácios e a coleção real foram transformadas em coleção do estado francês e, em 1793, criaram o Museu do Louvre, permitindo à população em geral a visita da coleção de arte. Agigantado pelas conquistas napoleônicas e pela doação de milhares de obras por artistas, mecenas e ricos, a coleção tornou-se a mais importante do mundo.

A abertura do Louvre desencadeou no século XIX a abertura de museus nacionais e museus regionais, estaduais e municipais. Em alguns casos, os países tiveram que esperar a queda das monarquias, em outros, os próprios reis criaram museus públicos de arte e ciência. Logo se percebeu a importância científica e política dos museus que ajudavam a contar a história do país e seu povo, criando uma narrativa identitária, apoiada nos objetos da história. Além de permitir a produção científica e a catalogação de milhares de objetos e espécimes. A explosão de coleções, museus e temas criou uma rede mundial de museus.

Museus de arte, de ciência, da natureza, de rochas, de roupas, de brinquedos, de objetos sexuais, desenhos, livros, bonecos de cera, da música, da guerra, da religião, da cerveja, da cachaça, do cangaço, do lápis, da fotografia, da arquitetura, do mate, do Contestado, e do que mais quisermos, permitem criar uma fonte inesgotável de conhecimento à disposição dos curiosos.

Ao longo do século XX, os museus estiveram a serviço do conhecimento. Pesquisas na Europa mostravam que quanto mais instruído era o país, mais seus museus eram visitados; quanto maior a escolaridade, maior a presença de homens e mulheres no museu. Assim, a educação teve papel essencial na divulgação do museu. Ao ser  perguntada quando visitou um museu, a maior parte das pessoas responde que foi com a escola. Para o aluno brasileiro e de Curitiba, a resposta é a mesma. Não fosse a escola, o museu seria visitado por muito menos gente. E isso que as escolas brasileiras e seus professores usam os museus de maneira errada. Fazem-no como uma ação anual que pouco ou nada tem a ver com o que se estuda, em vez de fazerem uma série de visitas rápidas ao longo do ano para observar diferentes objetos. Num curso de História do Paraná, o Museu Paranaense deveria ser visitado três ou quatro vezes ao ano, em vez de uma visita em que se vê tudo. Mas, se não fossem nossos professores de Biologia, História e Arte, os museus do Capão da Imbuía, Paranaense e MON ficariam mais vazios.

Museus podem ser atrativos pela sua arquitetura (MON), pelas suas obras famosas (MASP), por um acervo rico e variado (Museu Nacional), ou pelos seus jardins frequentado pelos locais, como o Museu do Catete, no Rio de Janeiro. Mas também podem ter importância regional, local, ser num lugar modesto, e com obras regionais, que dão sentido à história local, como o Museu do Mate; ou, ainda, podem ter importância para as artes locais e formação de público, por meio de cursos, como é o caso do nosso curitibano Museu Alfredo Andersen, para citar dois locais atualmente passando por remodelagens e adequações.

Um museu custa caro: são especialistas no tema da coleção, conservacionistas e museólogos, administradores, sistema de segurança, limpeza, sistema contra incêndio e roubos, marketing. Muitas vezes o acervo está num prédio histórico que, de antigo, começa a ficar estragado a ponto de ameaçar a integridade do acervo. Aos custos com prédio e pessoal junta-se o custo de preservar e digitalizar o acervo, o que toma tempo e dinheiro. Poucas empresas brasileiras querem gastar seu dinheiro com museus, e quando o fazem é com museus específicos, com peças atrativas ao grande público. Para a ciência, uma ossada de dinossauro e o fóssil de um ser unicelular tem igual importância, mas, para o público, somente a grande peça chama a atenção. Nem sempre o povo sabe a importância que está na pequena peça. Isso mostra não só a ignorância popular a respeito da ciência, mas o descaso com a educação e seu papel transformador. Um documento, uma foto, uma série de insetos aparentemente sem importância podem ser estudadas no futuro graças a museus que atraem poucas pessoas, mas cientistas e especialistas. A peça gera curiosidade que pode fomentar a pesquisa e novas questões sociais e científicas. Peças sem importância hoje podem ter grande valor no futuro.

Museus podem e devem cobrar entrada e ter lojas com materiais à venda. Ele deve se tornar fonte de propagação do conhecimento. Ocorre que a função primária dos museus não é dar lucro, mas gerar conhecimento, curiosidade, ensino, pesquisa que não tem efeito imediato e não geram, necessariamente, lucro. Talvez possamos pensar em diversas formas de gerir os museus. Mas o interesse principal deles não deveria ser o lucro. O Museu do Louvre, em Paris, é gerido por dinheiro público, por pagamento de visitantes com ingressos, por arrecadação junto a empresas e com mecenas que ajudam as artes. Apesar de ser um modelo de gestão, o Louvre nos mostra que a coleção depende do estado no limite e que a despeito das flutuações de mercado, do gosto popular e de obras mais famosas ou menos, mantém todas a despeito da opinião de grupos sociais e o faz com a certeza de que aquele museu vai se manter aberto por sustento principal da instituição mais duradoura – o Estado.

Agentes privados podem ser bons em buscar parcerias com museus desde que lhe garantam isenção fiscal ou marketing positivo para si, mas são péssimos para entender o custo de obras polêmicas, presentes em acervos não tão atraentes ou com custos astronômicos com especialistas. Aqui os agentes privados se mostram tão insensíveis quanto os administradores estatais em encolher orçamentos para a ciência, a cultura e a educação ou cortar fundos para museus não tão rentáveis.

Creio que visões unívocas e extremistas, segundo as quais museus não devem se preocupar com dinheiro, ou museus devem ter uma gestão visando o lucro são perigosas pois não compreendem possiblidades contemporâneas de administração dos museus. Devemos lutar para que o Estado mantenha fornecimento de recursos para grandes e pequenos museus com acervos de grande ou pouco interesse para a população em geral, mas que mostram não só nosso interesse na educação e propagação do saber, mas também interesse no papel do estado em manter-se protagonista da memória e da educação social de seus cidadãos.

Assim que os museus não devem ter o estado como único apoiador, podendo buscar em empresas e mecenas ajuda para suas atividades, mas não deve nem privatizar seu direito a manter acervos e expor materiais que soem estranhos ou nocivos à imagem das empresas, nem colocar os interesses das empresas em primeiro lugar. Os museus podem cobrar entradas – por vezes subsidiadas –; manter lojas onde os visitantes deixariam parte de seu dinheiro e organizar visitas especiais de clientes e empresas enricadas, mas sem nunca perder a dimensão de que todo o museu, inclusive o museu privado, expõe algo material e imaterial que tem a ver com a memória do povo e que, portanto, não é de uma pessoa ou empresa, mas de um povo. Sua destruição é danosa para toda a sociedade.

Assumindo essa tese de que a principal função do museu não é gerar lucro, sua monetização excessiva é mais nociva que benéfica. Porém, ainda pior é o abandono por parte do Estado em preservar museus. Sintomático é o abandono quase que completo do tema na agenda e projeto de governo dos presidenciáveis em que só dois partidos (PT e Rede Sustentabilidade) falam sobre museus (ainda que vagamente). Sem o Estado, somente as peças caras, famosas e atrativas ficarão sendo cobiçadas pela iniciativa privada, provocando o desmonte da estrutura cultural do Brasil, restando aos acervos menores e sem atrativo desaparecerem ou serem saqueadas pelos ricos para suas coleções privadas.

Por mais que tenhamos administrações mais modernas, ingressos mais caros e o aluguel de espaços para atividades outras (quanto o Louvre lucrou com “Apeshit”, da dupla de artistas Beyoncé e Jay-Z ?) os museus, especialmente aqueles sem grandes apelos e obras raras e voltados para a ciência, devem ser mantidos sob a tutela e guarda do Estado, pois, para ele não deveria existir a impaciência do lucro rápido ou a seleção de pesquisas em lucrativas ou não, mas sim a ideia de preservar e cultivar a educação dos cidadãos. Desta maneira, podemos ter administrações mais dinâmicas dos museus, preços acessíveis (como os de hoje) e um aumento na participação de empresas e mecenas privados, sem que eles possam determinar as pesquisas, as guardas e as formas de manutenção das peças, bem como quais matérias preservar e adquirir, já que muitas vezes estas aquisições teriam objetivos científicos e não meramente financeiros.

O incêndio do Museu Nacional estatal e do Museu da Língua Portuguesa (OS) não deveria ser o desencadeador do debate, mas sim o nosso interesse pelos museus. Porém, se o debate for marcado pelo preconceito ideológico entre o privado e o público, ele será um debate pobre, marcado pela ideologia cega do anti-estatismo atual e pela manutenção de um estado isolado das questões econômicas da administração contemporânea. Talvez o que o Estado precise é de uma visão ampla dos museus com investimentos pesados na área (tire-se a pensão das filhas dos militares solteiras, os privilégios dos juízes ou a isenção de cobranças de impostos de grandes instituições financeiras e temos amplos recursos para a cultura e arte). O que não podemos deixar é a rapinagem dos fundos públicos para museus privados ou quase, como o do Amanhã, no Rio, que ganhou mais investimento que o Museu Nacional e que tem amplo apoio empresarial, ou a apropriação de materiais artísticos públicos por empresários que acham que os lucros devem ser seus, mas, quando os problemas aparecem, o estado deve financiar as mudanças estruturais. Isso seria manter o patrimônio em perigo e isentar grandes empresas de impostos, selecionando onde e quando investir de acordo com interesses que não são artísticos ou científicos.

 

*Marcos Dias de Araújo, historiador e mestre em História pela UFPR, professor de História da Arte e de História das Relações Internacionais da Universidade Positivo em Curitiba.