Da Virtude das Palavras
Recebida é de todos aquela comum sentença que afirma haver deixado Deus sua virtude In verbis, in herbis, ET in lapidibus; das ervas e das pedras pouco e poucos duvidarão, porque a experiência aparta qualquer argumento contrário. É, logo, só contra as palavras (como já mostramos) toda a força das impugnações. Mas a doutrina platônica assiste de boa vontade a confessar a virtude delas, como se vê de Platão no diálogo intitulado Crátilo, onde introduz pela doutrina moral a Sócrates, pela Física a Crátilo, seguidor de Heráclito, pela metafísica a Hermógenes, discípulo de Parmênides; do discurso da qual disputa se colige ser Platão de parecer que da própria maneira que os objetos ministram à vista aquelas espécies, por onde são vistos e conhecidos pelo que em si é cada um deles, com real diferença e distinção de uns e outros, assim também os nomes, letras, números e figuras mandam outras invisíveis espécies ao entendimento, pelas quais são dele compreendidas, em tal modo que um nome, uma letra, um número e uma figura se propõem diversamente à imaginação do que outra figura, número, letra e nome. Porque assim como a letra ou figura subministra aos olhos algumas espécies da forma com que é composta e da matéria de que é fabricada, e umas serão diferentes das outras para mostrarem a distinção de formas e de matérias que pode haver entre umas e outras letras e figuras, assim os nomes e os números ministrarão ao entendimento algumas espécies de bom ou de mau, de vil ou de nobre, de muito ou de pouco, de composto ou de simples, por cujas espécies o entendimento logo compreenda e logo distinga o nome e número, fazendo verdadeiro conceito do que é cada coisa que pelo nome ou pelo número significa. Como, por exemplo, aquele que nomeasse “homem” necessariamente faria entender “varão”; aquele que dissesse “Lusitânea”, logo faria entender “província”; aquele que numerasse “mil”, logo faria compreender “quantidade”; e o que contasse partes, logo faria denotar “divisão”.
2. E suposto que esses efeitos do conhecimento ou do conceito produzido da palavra, parece, dependem de que ela seja havida por aquela tal coisa que significa, e assim se torna a envolver esta prova com a questão primeira de que sejam as palavras sinais positivos ex-instituto, nem por isso desfalece a força da prova desta doutrina, porque, já dissemos, não necessitarem de universal significação as palavras prara compreenderem virtude alguma, bastando, para que se lhe não negue a particular aptidão, que nelas haja a exprimirem particularmente a virtude de seu significado, como diremos que porque um cego deixa de ver uma torre, não deixa ela de ser torre, porque não é vista; assim também não deixará a palavra de incluir virtude, para este ou aquele efeito, por deixar de ser entendido seu significado deste ou daquele que a não entendem.
3. Esta doutrina enquanto se não opõe ao melhor sentimento e se por ventura não encontra mais que algum primor de Filosofia, diferente, parece, que não é digna de desprezo, antes por sua sutileza de muita aceitação, porque os exemplos morais em boa parte a facilitam, e a especulação filosófica poucas vezes a desampara.
4. Assim discorrendo mais formalmente quanto à força das palavras, nós vemos que nelas há uma eficácia ativa produtora de notáveis efeitos no coração humano. Por cuja consideração afirmou Platão que assim como nas palavras havia virtude para curarem o ânimo de suas paixões, a devia haver para curarem o corpo de seus humores, sendo coisa escusada de prova e alheia DE CONTRADIÇÃO QUE A PALAVRA DA INJÚRIA LOGO PRODUZ FUROR, A DE CORTESIA, APLAUSO. Vemos que a afirmação sossega, a negação altera. A razão é porque a paixão espiritual reverbera na palavra, seja verdadeiro ou falso o afeto de que se produz; porque assim como nosso espírito se move pelo que ouve, assim se declara pelo que diz, comunicando os conceitos às palavras, aquela própria ou semelhante virtude que os afetos comunicam aos conceitos por alguma sutil parte de espiritualidade individual da palavra, que a componha sempre até se imprimir no ânimo alheio, por modo passivo, e nele traspassa uma semelhante paixão àquela de que foi produzida. Donde vemos que a palavra que procedeu do espírito irado logo produz ira e, do benévolo benevolência. O que se obra pela semelhança das mentes humanas que, na aptidão compreensiva, não são diferentes. Donde sucede encontrarem-se algumas vezes os homens em palavras e conceitos, quando discorrem sobre um próprio sujeito, cujo conhecimento muito nos facilita para entendermos a virtude da palavra fisicamente. Porque coisa é racional a transferência dos afetos, por meio das palavras, quando à mente ativa e à passiva são comuns as próprias paixões, de amor ou ira, e todas as mais de que é teatro o coração humano.
5. Isto se vê mais claramente quando consideramos que a sábia natureza em defeitos de sinais positivos (os quais não se nega são de maior uso) socorreu esta impossibilidade com algumas demonstrações naturais, que deixou como prática ou língua UNIVERSAL DE TODOS OS HOMENS, VENDO QUE ELES EM SEUS IDIOMAS ERAM TÃO DIVERSOS QUE SE NÃO SABE OUTRA PALAVRA SENÃO SACO, EM QUE todas convenham. A prova disto tomamos do que se observa entre nós e os bárbaros mais remotos do trato civil, com os quais nos vemos igualados da natureza em muitos sinais e demonstrações capazes de nos entendermos, como largamente experimentaram nossos conquistadores nas terras mais apartadas e diferentes da conversão humana.
6. Assim sabemos ser comum, para negar, o movimento da cabeça, virando-a algumas vezes a diferentes partes, e para conceder, o abaixá-la. O chamar-se obra estendendo o braço e encurvando a mão para baixo repetidamente. O despedir, alargando a mão a sacudindo os dedos para diante. O ignorar, levantando os ombros e sumindo entre eles a cabeça. O ameaçar, pondo o dedo índex sobre o nariz. O jurar, correndo a mão pela barba. Assim vemos ser o abraço sinal de amizade; o ósculo, de paz; a genuflexão, de culto; a carranca, de ira, e alguns outros movimentos semelhantes, significadores de paixão e conceitos em que convém toda a universidade dos homens, em cujos movimentos não podemos negar que a natureza deixou alguma física virtude, para significarem o que por eles demonstramos, pois sem acordo, conselho ou constituição humana, todos convimos em declarar aquelas tais coisas, por aquelas tais ações.
7. Com semelhante costume em todas as mais obras naturais, vemos simbolizando e explicado o segredo da natureza: entre os quais símbolos naturais as cores têm grande lugar, porque a humanidade toda se produz a cor verde; de toda a secura, a cor negra; de toda a fieldade, a cor branca; e de toda a quentura, a cor vermelha. Tudo o que foge à vista parece azul; vemos que os humores humanos também pelas cores se conhecem: a cólera é verde; o sangue é vermelho; a fleuma, branca; a melancolia, negra; e aqui, mais que em outra parte, se verifica a significação ou essência física de cada cor; porque estas não são aquelas que se compreendem debaixo dos sinais constituídos por vontade dos homens. Ainda que desta natural Filosofia receberam eles também o uso de explicar suas paixões. Donde vemos que a bandeira branca denuncia paz; a vermelha, guerra; o negro mostra nojo; o verde, alegria.
8. Mais que tudo é sabermos que a providência da Igreja simboliza da mesma maneira seus afetos nas cores de que se adorna, dando-nos a entender por elas (como se com razões nos falara) as ações de tristeza e alegria que nos propõe e a que nos incita. Por esta observação, quando se celebra a festa de mártires, se vestem os altares de vermelho; quando de confessores, de verde; quando de virgens, de branco; no Advento e Quaresma se usa a cor roxa; a negra, quando se oficia de defuntos. A esta imitação as universidades denotam suas ciências pelas cores, significando por elas o objeto daquelas tais faculdades. Assim, a borla branca é insígnia de Teologia; o capelo azul, da Filosofia e Matemática; o vermelho, das Leis; o verde, de Cânones; o amarelo, a Medicina; entre as quais cores, e as profissões por elas denotadas, se achou alguma proporção intrínseca procedida da virtude que compreendem como se todas fossem vozes e palavras com que a natureza universalmente se explicasse.
9. Não é moderno este uso, antes em todas as idades e gentes observado, como refere Plínio dos povos antiqüíssimos de Trácia, que aos dias faustos sinalavam com pedra branca, e aos infaustos com pedra negra. Donde Persio:
Hinc Macrine diem nemera meliore lapillo (Persio in Satyr.)
Que, imitando o nosso Gôngora, disse:
No cuente ´piedra, no, este alegre dia,
Que a tanta dicha su blancura ES poça. (Gôngora no Cait.)
E melhor o grande Argensola:
Si El notar pues com piedra blanca El dia
De los successos prósperos se usara,
Como tal vês La antiguedad Le hazia. (Bart. Leonard, Epist. 4, fol.259).
Mas é razão dizermos particularmente do espírito das palavras.