Da função paterna ou da inscrição do simbólico na formação do sujeito

Em nossa contemporaneidade, as formações familiares não correspondem nem de perto àquelas que eram observáveis na primeira metade do século XX. Inserção da mulher no mercado de trabalho, aumento gradativo das jornadas de trabalho e, acima de tudo, um querer cada vez menor de preencher o ideal de família, composta tradicionalmente por um membro homem, detentor dos meios e do poder, e sua respectiva esposa, provedora do seio emocional do núcleo familiar.

De um lado observamos a decadência do pai fálico, pilar financeiro e balizador da linguagem, que funcionaria como um registro na família, sendo deixado de lado em detrimento de novas configurações familiares, como a monoparental, homo parental, etc. De outro lado, boa parte dos psicanalistas ortodoxos advertem com urgência que a porosidade da imago paterna nas famílias modernas teria como eminente consequência um aumento alarmante no desencadeamento de novos indivíduos psicóticos, ou ainda, em termos winnicottianos, indivíduos “delinquentes” que não possuem fronteiras entre princípio de prazer e princípio de realidade, e que são mestres em testar os limites dessa última.

O objetivo do presente texto é trazer a superfície diversos conceitos lacanianos, e suas respectivas lógicas, que podem ser ferramentas úteis contra esse espírito alarmista relacionado ao “apocalipse paterno”.

Primeiramente, é fundamental pontuar uma função que antecede e prepara a função paterna: a função materna. Pois se o pai faz a inserção da linguagem na criança, a mãe faz o delineamento de corpo, e o que poderíamos chamar de inserção de fragmentos afetivos. Segundo Freire (2017), Lacan, Em O seminário, livro XX: “mais, ainda”, ao construir seu conceito de lalíngua (em francês, Lalangue), afirma que “a linguagem, longe de ser um tesouro “a priori”, já dado, é uma elucubração, uma construção de saber feita a partir de e com lalíngua. Lalíngua, aglomeração de algo que escapa a qualquer sistema e organização, é feita, por sua vez, de restos, aluviões, resíduos e pedaços de significantes vindos de alhures, do campo do que poderíamos definir como exterior ao sujeito – exterioridade que, às vezes, se apresenta como afetando no interior o próprio sujeito ou como algo, acontecimento, daquilo que se acredita ter, a saber, o corpo.” Dito de outro modo, lalíngua se encarna, a partir dos restos dos ditos da mãe, como alteridade no corpo, como “extimidade” à criança. Nesse sentido, adjetivando o termo materno, Lacan não pretendia se referir ao senso comum que associa lalíngua à mãe, mas apontar para a função materna que singulariza, inscreve os significantes que deixam detritos, pedaços de uma história que servirá a posteriori como construção. Construção e elucubração para que um filho possa, como sujeito, colocar a singularidade de seu desejo (“desejo da mãe” no sentido objetivo e subjetivo).

E se a criança divide a mãe em sua função materna, apontando para seu lado mulher, é na medida em que nenhum dito filho pode preencher inteiramente a mãe e que esta, por essa razão, nunca é, parafraseando Winnicott, suficientemente boa, pois “só existe a causa para o que falta” (Lacan, 1998, p.829). Dito de outro modo, a lalíngua é aquilo que cria concomitantemente, na criança, um registro do dito com o Real, passando pelo corpo. Por exemplo, em um caso clínico em que a criança era chamada pela mãe nunca pelo nome, mas por nomes de alimentos como: “meu pão, meu brigadeiro”, etc. a lalíngua é justamente esse resto de homofonia que faz registro no corpo da criança e que no caso, posteriormente, fez com que a paciente adotasse uma postura anoréxica, para não consumir aquilo que poderia ser da mãe.

Adiante, em Lacan, a função materna também tem como objetivo oferecer uma constituição imaginária do Outro, devolvendo à criança a imagem através do espelho. O olhar da mãe (ou do cuidador que oferece essa função) vai devolver à criança a imagem que ela vê refletida no espelho, fazendo-a perceber que ela é um ser integral e um ser que existe, adotando assim uma relação de organismo com a realidade, segundo Lacan (1966) “A função do estádio do espelho consiste, para nós, desde então, num caso particular da função da imago, que é a de estabelecer uma relação entre o organismo e sua realidade” (p. 96). Dito de outro modo, a mãe é sempre uma função, e não uma pessoa, função esta de colocar limite entre o somático e o erógeno; a função materna mostra  para a criança de que existe um limite do Outro, mas não um limite Simbólico, e sim Imaginário, de que a criança possui uma quantidade limitada de membros, que estes possuem suas respectivas funções, acarretando na criança um olhar sobre ela mesma, formando assim o Eu.

Além disso, a criança, mesmo tendo consciência de sua completude e delineamento, continua fixada na capacidade que a imagem da mãe tem de possuir a verdade sobre ela mesma, e tenta incessantemente reforçar um vinculo de fundição com essa imago materna, e é neste ponto que a função paterna (ou castração) deve atuar. Afinal, o que é o pai para a psicanálise?  “O pai não é um objeto real, então o que é? (...) O pai é uma metáfora. O que é uma metáfora? (...) É um significante que vem no lugar de um outro significante (...). O pai é um significante que substitui um outro significante. E aí está o alcance, o único alcance essencial do pai ao intervir no complexo de Édipo (Lacan apud Dor, 1989, p. 78).

O pai concreto, em carne e osso, é apenas um representante dessa metáfora, que é altamente necessária pois, sem pai não existe édipo, e falar de édipo é introduzir essencialmente a função do pai. Mas nos questionemos então: e quando o pai não está presente, e quando falta uma imagem masculina na família? É frequente escutar de outros psicanalistas uma resposta mezzo-progressista, mezzo-conservadora, de que a criança circula e socializa por várias esferas da sociedade, e que em um momento ou outro vai encontrar um homem em posição fálica (professor, educador, etc) para poder fazer essa clivagem entre a mãe e a criança. O problema dessa afirmação é que ela cai no mesmo lugar que ela intentava sair, a saber, de que é sempre um homem, ou um ser humano, que é necessário para dar início ao processo de interdição da criança, e consequentemente de seu ingresso na cultura. Ou ainda, algumas afirmações de que mesmo em uma família homo parental, sempre vai existir aquele que faz o papel feminino e o papel masculino, para poderem criar assim uma criança saudável e não psicotizada.

Esse tipo de afirmação é fruto de uma visão generificada da nossa sociedade, que tem uma necessidade gigantesca de atribuir gêneros para todos os papéis que cada indivíduo exerce, principalmente naqueles que concernem a família. Lacan (1999, p. 172) responde: “(...) Percebeu-se então que um Édipo podia constituir-se muito bem, mesmo quando o pai não estava presente”.  E complementa: “Mesmo nos casos em que o pai não está presente, em que a criança é deixada sozinha com a mãe, complexos de Édipo inteiramente normais – normais nos dois sentidos: normais como normalizadores, por um lado, e também normais no que se desnormalizam, isto é, por seu efeito neurotizante, por exemplo – se estabelecem de maneira exatamente homóloga à dos outros casos” (LACAN, 1999, p. 173). Seguindo este raciocínio, e trazendo novamente a lei de interdição à tona, o pai como diz Lacan (1999, p. 174), “antes de mais nada, interdita a mãe. Esse é o fundamento, o princípio do complexo de Édipo, é aí que o pai se liga à lei primordial da proibição do incesto”, fazendo com que o desejo da mãe seja submetido ao Nome-do-Pai e desta forma a criança deixa de ser assujeitada à mãe.

A chave-mestra de todo esse processo é a palavra “alteridade”, a mãe concede lugar, em seu desejo, a este nome-do-pai, vemos assim que é a mãe que funda o pai, e não o contrário, legitimando para seus filhos o significante paterno.

Fink (1998) até mesmo alega que a função de alteridade pode ser exercida pela própria mãe, no que ele chama de “funcionamento do pai como parte da fala”, uma narrativa na qual a mãe consegue trazer elementos de alteridade no seu próprio discurso. Aqui, a função paterna é exercida pelo nome “pai”, na medida em que a mãe se refere a ele como uma autoridade que está além dela, um ideal que está além dos seus próprios desejos, como por exemplo nos casos em que a mãe declara para seu filho que uma determinada autoridade ficaria decepcionada em vê-lo se comportando dessa forma, ou ainda, indagando a criança sobre o que o vizinho, que tem estreito contato com a criança, pensaria sobre seus atos. O nome-do-pai, que em francês seria nom-du-père, possui uma forte homofonia com “non-du-père”, traduzindo, o “Não!-do-pai”, tudo aquilo que coloca limite, interdição e alteridade do desejo voraz que a criança tem por se manter fundida a mãe, e acreditar que pode ser sempre totalmente  satisfeita.

Frequentemente em psicanálise, talvez pela falta de novas terminologias, nos deparamos com conceitos muito atrelados a posições de elementos familiares, como mãe, pai, etc. Entretanto todas essas nominações precisam passar por um filtro crítico, quiçá histórico, para podermos entender que a psicanálise é também uma ferramenta diagnóstica que sempre fez um bom parecer  da época em que se encontrava. Lacan por exemplo, nunca adotou uma postura prescritiva daqueles que adentravam em sua clínica, mas sobretudo descritiva, e por mais que algumas dinâmicas daquele tempo fundassem um arsenal discursivo atrelado a gêneros, é importante na contemporaneidade ressignificarmos e renomearmos termos que ainda nos aportam a uma imagem de família “tradicional” e reprodutiva. “Porque a dimensão do Pai simbólico transcende a contingência do homem real, não é, pois necessário que haja um homem para que haja um pai. Seu estatuto sendo o de puro referente, o papel simbólico do pai é sustentado, antes de mais nada, pela atribuição imaginária do objeto fálico. Nessas condições, basta que um terceiro, mediador do desejo da mãe e do filho, dê argumentos a esta função para que seja significada sua incidência legalizadora e estruturante” (Dor, 1991, p. 19).

Para concluir, é preciso que tenhamos um olhar perante o que a psicanálise diz sobre a função paterna, pois esta constitui um fato crucial na estruturação psíquica do sujeito. Estamos em constantes novos tempos, com novas estruturas, sempre reinventando a família nas exigências atuais. É fundamentalmente uma questão ética que devemos nos impor enquanto psicanalistas, pois dando importância as novas configurações familiares, conseguiremos também sinalizar onde se encontra a palavra (lei) e o amor daqueles que zelam suas crianças, e esses novos avanços impõem importantes mudanças nos referencias simbólicos, não necessariamente nos das famílias, mas também nos da psicanálise.

 

Texto escrito e editado por Pietro Scola – Psicólogo/Psicanalista

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

 

Dor, J. (1989). Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas.

Dor, J. (1991) A função paterna e seu fracasso. In: O Pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar

Fink, B. (1998). O sujeito lacaniano entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro. J.Z.E.

Freire, A. (2017) O lugar da criança (entre a mãe e a mulher) ou “lalíngua, não por acaso, dita materna”. Opção Lacaniana online nova série Ano 8 • Número 23 • julho 2017 • ISSN 2177-2673

Lacan, J. (1966). Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. In Écrits (pp. 93-100). Paris: Éditions du Seuil .

Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

Lacan, J. (1999). O seminário, Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de janeiro: Zahar.