A leitura da cidade se faz a partir dela mesma. Ela se mostra, se faz representar e se dá a conhecer concretamente por suas imagens e signos que atuam como mediadoras de seu próprio conhecimento. A natureza inserida no contexto urbano, como qualquer outro elemento compositivo, se representa por signos, como no caso dos rios urbanos, elementos topográficos de forte influência que marcam as cidades e podem ou não contribuir na formação da paisagem de um lugar. Este artigo contribui para a reflexão sobre os rios urbanos degradados, a partir da análise de imagens coletivas da mídia jornalística e da revisão bibliográfica sobre a condição dos cursos d’água, aplicada ao caso do rio Meia Ponte em Goiânia, Goiás. Os rios urbanos degradados sujeitos ao processo de renovações periódicas de signos e imagens passadas e atuais, constatada, principalmente, pelas trocas de usos e ocupações no tempo, podem ser classificados como “imagem residual”, ou cicatriz no tecido urbano. Essa característica pode ser observada na reprodução do espaço urbano de Goiânia pela evolução negativa das orlas aquáticas na ausência de apropriação ou ilegalidade da ocupação do rio, uma “aparência” sobre uma imagem cuja realidade omite a importância histórica do rio e sua, ainda, dependência aquífera. No passado, o projeto de Attílio Corrêa Lima e, posteriormente de Armando Godói, demonstrava o respeito à topografia e à paisagística através de uma generosa malha verde articulada à vida urbana com o máximo possível de espaços livres. De uma maneira especial, ambos trataram claramente da importância da defesa e da preservação das áreas ao redor dos córregos e rio, onde as nascentes deveriam ser transformadas em áreas de parques, de defesa do verde e recreação, destacando a “essência” projetual de que a cidade e o rio poderiam conviver harmoniosamente. Compreender a dinâmica urbana que gerou a atual condição do rio, através da análise de suas representações, é uma da maneiras de compreender porque Goiânia é indiferente à situação do rio Meia Ponte, mesmo que tenha se constituído como “berço” para o seu nascimento.

Introdução

A cidade se constrói e se transforma continuamente no espaço como uma obra arquitetônica de grande escala. Ao mesmo tempo, a cidade também se constrói no imaginário de seus usuários, produzindo, a partir da própria paisagem da cidade e por intermédio de seus usuários, os significados. Esse processo desenvolve-se no plano imaterial, mas comunicam imagens públicas/coletivas que expressam como a cidade e seus elementos são percebidos (FERRARA, 2000). Essas representações são fatores que podem contribuir na determinação de como a cidade é usada e construída.

Nesse sentido, a natureza inserida no contexto urbano também se representa por signos como os rios urbanos, elementos topográficos de forte influência espacial no território. Entretanto a condição atual de degradação de muitos rios e suas margens demonstra uma negligencia sobre essas áreas no processo de formação da paisagem das cidades. Essa pratica compromete tanto a qualidade da paisagem das orlas aquáticas dos rios urbanos como a da cidade como um todo. Este artigo contribui para a reflexão sobre os rios urbanos degradados a partir da análise do caso do rio Meia Ponte em seu percurso por Goiânia, GoiásA situação degradante atual do rio contrasta com a intenção projetual na análise realizada a partir de imagens coletivas da mídia jornalística e da revisão bibliográfica.

Compreender os significados do rio Meia Ponte para Goiânia, significa entender como ele era compreendido no passado através da análise de seu primeiro plano diretor. O documento demonstra a intenção do que o rio representava para a formação da cidade e especialmente, o que ele poderia vir a representar traduzindo-se na “essência” do que tanto a cidade quanto os mananciais da região, necessitavam para serem projetados em harmonia como o espaço urbano. Por outro lado a realidade do rio Meia Ponte e suas margens retratadas pela mídia jornalística e os relatórios científicos ao longo da história de Goiânia, representam como ocorreu e ocorre a ocupação das margens do rio, indicando a “aparência” de como realmente o Meia Ponte se relaciona com o goianiense.

Assim como muitos cursos d’água de pequeno e médio porte brasileiros, o rio Meia Ponte tem suas margens comprometidas pela ocupação irregular e pela degradação da água e vegetação, ignorando o seu potencial ambiental e social na produção de espaços sustentáveis. Essa análise se mostra necessária porque identificar os significados e valores estéticos e ecológicos das paisagens fluviais é um fator que permite compreender como o rio é percebido e utilizado pelos moradores do seu entorno e o seu potencial de recuperação (GORSKI, 2011, p. 36).

A leitura da cidade se faz a partir dela mesma, ela se mostra, se faz representar e se dá a conhecer concretamente pelas suas imagens e signos que atuam como mediadoras de seu próprio conhecimento. Esse conhecimento é processado pela unidade imagem/imaginário gerando o significado, a percepção da experiência urbana pelo uso do espaço e seus lugares, manifestado na apropriação do espaço construído. (FERRARA, 2000, p. 115- 117).

A dinâmica da produção do espaço urbano são renovações periódicas na qual a cidade é submetida, onde os signos urbanos novos e velhos são redesenhados dentro de uma lógica que reproduz as características da própria linguagem da cidade (FERRARA, 2000, p. 176). Compreender e precisar os elementos dessa lógica, que se define ao mesmo tempo em que se acompanha o desenho da cidade é um dos caminhos para entender a situação de margens de muitos cursos d’água urbanos no Brasil, cuja história revela a condição de degradação com o desligamento entre o rio e a cidade, a ausência ou informalidade da apropriação das margens dos rios com o empobrecimento de usos e ocupações, a despreocupação com a imagem dos rios e, consequentemente, de seus significados.

 Assim, rios urbanos, como qualquer outro elemento de composição da cidade, estão sujeitos a esse processo de renovações periódicas de signos e imagens passadas e atuais, constatada, principalmente, pelas trocas de usos e ocupações no tempo que configuram a “imagem residual”, ou cicatriz no tecido urbano, lógica característica observada na reprodução da linguagem do espaço urbano de Goiânia pela evolução negativa de suas orlas aquáticas na ausência de apropriação ou ilegalidade da ocupação do rio Meia Ponte. 

Essa mudança de hábitos não é causal, mas define as características das nossas cidades que convivem com a prática de criar espaços, porque falta lugar. Amplia-se o espaço viário para atender à demanda de meios de transporte mais numerosos e velozes; verticaliza-se para multiplicar o espaço habitável, concentram-se o comercio e os serviços para poupar tempo e energia física: a cidade se adapta às necessidades de um cotidiano instável, mas sofre suas consequências; agiganta-se, porque se torna metrópole, mas as cicatrizes desse processo deixam marcas que alteram o seu visual. O tratamento dessas cicatrizes cria a necessidade de ressignificação dos espaços e sua inteligibilidade é responsável por um dos aspectos mais estimulantes para o estudo da cidade como sistema de comunicação e informação. (FERRARA, 2000, p. 178)

Os espaços residuais são espaços que sofreram a perda de identidade com usos e significados sedimentados pela ação de impactos ambientais que não os consideram, se tornando indefinidos. Espaços que parecem desnecessários a cidade, uma sobra física que não se adapta a outros usos funcionais, ou pelo tamanho ou pela topografia. São o produto da decorrência de uma prática contemporânea, o processo construtivo infindável, que destina a cidade a destruir-se e a reconstruir-se sem cessar, ou seja, uma consequência inevitável. Nesse processo a perda da identidade visual abala a imagem urbana confundido-a com os espaços globais de fotografias e televisão, diferente da imagem dos usuários da cidade. Ao mesmo tempo perde-se os pontos de referência abalando também, a percepção da informação urbana forçando a leitura da cidade ser constantemente recomeçada e criando uma busca por identidade urbana. (FERRARA, 2000, p. 179-181)

Nesse sentido, espaços residuais como o rio Meia Ponte, aparecem como cicatrizes do que se destruiu e não foi possível reconstruir totalmente, à exemplo de suas margens muito utilizadas no passado como área de recreação, ou as ruínas abandonadas da Usina do Jaó, primeira fonte geradora elétrica da cidade, espaços com vocação urbana mas que se caracterizam hoje como lugar da descontinuidade, um vazio a preencher de informação e de novos usos.  Segundo Ferrara (2000, p. 181) “[...] os espaços residuais aparecem como pedaços inacabados que parecem agredir ou subverter a ordem visual e funcional pretendida, mas nunca alcançada concretamente. [...]”.

A condição atual do rio Meia Ponte é o principal motivo que levou a produção deste artigo.  Conforme dados da Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos, (SEMARH), são lançados mais de 180 mil m³ de esgoto e uma tonelada de resíduos sólidos todos os dias no leito do rio Meia Ponte, que ocupa o posto de 7° rio mais poluído do Brasil (ABREU, 2011). Em janeiro de 2011 o nível de qualidade da água do rio Meia Ponte na região metropolitana de Goiânia foi considerado ruim segundo Índice de Qualidade da Água (IQA) definido pelo CONAMA (Conselho Nacional de Meio Ambiente). Fatos comprovados pelo lançamento de esgoto doméstico e principalmente industrial no leito do rio Meia Ponte, que obteve as piores avaliações nos quesitos: lixo flutuante ou acumulado nas margens, cheiro fétido, quantidade de sedimentos, presença de coliformes fecais ou termotolerantes, fosfatos e oxigênio dissolvido. (CONAMA apud, COSTA e GOMES, 2011). Da mesma forma a mídia jornalística diariamente representa a degradação dos mananciais da capital. A matéria do jornal “O Diário da Manhã” de 22 de abril de 2014 “Goiânia, a cidade suja” reforça a imagem da condição precária do rio.

Figura 01 Fonte: Jornal O Diário da Manhã 22 de Abril de 2014

A degradação e a poluição são características comuns a muitos mananciais urbanos em capitais brasileiras, em especial os rios de pequeno e médio porte (GORSKI, 2011). Os rios de grande porte geralmente tem em seu favor sua dimensão que impõe uma visibilidade na paisagem. Muitos ainda desempenharam e ainda desempenham funções econômicas e sociais de relevância histórica na formação das cidade em que percorrem. Essas características, embora nem sempre positivas para esses cursos d’água, promovem uma relação mais interativa como a população. Mesmo porque a questão da poluição dos cursos d’água urbanos no Brasil, ainda é pontual e não uma problemática considerada resolvida. Nesse cenário, o rio Meia Ponte, embora não represente um curso d’água como dimensões comparáveis às do rio Amazonas ou do Tietê, possui importância histórica na construção de Goiânia.

A “Essência” pela inspiração projetual.

Uma das características geológicas e hidrológicas de Goiás é a grande quantidade de mananciais existentes em seu território. Esse fator não passaria despercebido aos olhos dos colonizadores e dos governantes que idealizaram a transferência da capital de Goiás. Principalmente em se tratando da construção da nova capital, um novo centro administrativo para o estado. O rio Meia Ponte representou mais do que uma simples fonte aquífera em relação aos demais córregos e nascentes da região. Seu papel é decisivo por se constituir um dos fatores que levou a fixação de seu local de nascimento segundo comissão instaurada pelo Decreto 2.737 de 20 de dezembro de 1932, ao Estado de Goiás, da qual fazia parte o urbanista Armando de Godói. Dentre os mananciais da região o Meia Ponte era o único rio e possuía maior vazão para proporcionar abastecimento hídrico da futura cidade, como foi posteriormente definido por Attílio Corrêa Lima. Esse é também um dos questionamentos que instigam esse trabalho.

No que diz respeito à hidrografia, o sítio era servido pelo rio Meia Ponte, situado a Noroeste, com uma descarga de 15.120.000l/h, tendo ainda em seu leito uma corredeira denominada Jaó, com uma diferença  de nível de aproximadamente 8 metros e, portanto, uma força hidráulica na estiagem de 450 cavalos; pelo rio Anicuns, a Noroeste, com volume de 9.600.000 l/h e água altamente potável; pelo córrego Cascavel, a Oeste, com descarga de 1.200.000l/h e com água potável, pelo ribeirão Macambira, a Sudoeste, com volume de 800.00 l/h e também com água potável; e finalmente pelo rio Santo Antônio, a Sudoeste, com descarga de 5.870.000 l/h. [...] (RIBEIRO, 2004, p. 30)

Dessa forma, a necessidade de abastecimento se coloca como um das prioridade para a escolha da localização da capital. A posição geográfica do rio com suas características geográficas e hidrográficas foram importantes para determinar o desenho da futura cidade. Aliado ao fato de que Goiânia possui a peculiaridade de ser uma das quatro capitais projetadas do Brasil, ao lado de Belo Horizonte, Brasília e Palmas. Esses pequenos detalhes deveriam contribuir para representação simbólica da “essência” da imagem do rio Meia Ponte na memória goiana, pois poderíamos destacar que Goiânia nasceu em um berço banhado pelo rio, córregos e suas águas.

Essa característica ainda teria suas implicâncias lembradas no futuro de Goiânia nos desenhos de Attílio Corrêa Lima e Armando de Godói. O projeto previa a organização e zoneamento da cidade, a regulamentação das construções e a prestação de serviços de limpeza, esgoto, luz e força. Através dele e de seu primeiro plano diretor, os urbanistas articularam tanto as questões ambientais como as sociais. Eles demonstraram o respeito à topografia e à paisagística, recomendando a preservação e conservação das áreas verdes. A criação das park-ways adequadas a região e ao clima local, formaria um eixo cujas bases agradaram a população, resultando em uma generosa malha verde que articulava a vida urbana com o máximo possível de espaços livres.

Figura 02: Localização da Usina do Jaó e do rio Meia Ponte no Plano de Attílio Correa Lima

Fonte: Celina Manso (2001)

 

 De uma maneira especial, ambos profissionais trataram claramente da importância da defesa das matas de galeria, e na proteção das encostas dos leitos e nascentes, num raio determinado por técnicos competentes, demonstrando sua preocupação com a preservação das áreas ao redor dos córregos e rio, onde as nascentes seriam transformadas em áreas de parques, de defesa do verde e recreação, em harmonia com as park-ways que percorreriam ao longo dos leitos (RIBEIRO, 2004, p. 61-72) A atitude projetual desses dois profissionais também contribui para a construção da “essência” pela consciência da preservação das orlas aquáticas para cidade e seu futuro. Através da proposta de integrar os espaços verdes e os espaços de recreação, usos e ocupações capazes de proporcionar uma imagem positiva e criar uma identidade da natureza, dos espaços verdes e também dos cursos d’água para com a cidade. 

  O rio Meia Ponte ainda foi cenário para a instalação da Usina do Jaó bem como do Clube de Regatas Jaó (hoje, Clube Jaó). Attílio Corrêa Lima previu nas possibilidades da represa do Jaó, condições para o estabelecimento de um centro de atrações esportivas para todos os esportes aquáticos, inédito no Estado, considerando sua extensão de alagamento. (MONTEIRO, 1938, p. 144-145) Dando continuidade ao trabalho de Attílio, Armando de Godói estabeleceu como elemento estratégico, dentre outros, o Parque da Represa do Jaó, área pública de função social relevante, mas também preservando as condições indispensáveis de saneamento, saúde pública e salubridade. (RIBEIRO, 2004, p. 61-72)

Na área de alagamento da represa do rio Meia Ponte, numa extensão calculada de mais ou menos quatro quilômetros, faziam-se necessárias medidas imperiosas de limpeza e manutenção. Para isso, ficou projetada ao redor de toda represa a Avenida Parque, que além de sua beleza proporcionada por um paisagismo bem cuidado e pela visão do lago artificial da área inundada, cumpriria a função de vigilância ininterrupta das áreas marginais e da bacia alagada.

O projeto previa que, em todo o contorno da Avenida-Parque, determinado conforme o perímetro calculado pelos técnicos e pela área de alagamento, as bordas seriam gramadas e ainda seriam plantadas no local espécies variadas da flora nacional, apresentando-se como um jardim botânico. As áreas marginais receberiam um loteamento cuidadosamente estudado, com a valorização da paisagem e com construções rústicas e casas de campo.

Nesse local, instalar-se-iam ainda clubes náuticos, com o Yacht Clube, o Regatas e outros, com ancoradouro, lanchas, barcos, veleiros e toda sorte de esportes aquáticos, a exemplo da Lagoa da Pampulha de Belo Horizonte. Haveria, ainda, uma grande pista e estação para hidroaviões, com rota para a Lagoa Feia em Formosa.

Esse conjunto de estudos e projetos de logradouros públicos, parques de diversões e turismo, nos quais a recarga ambiental, além de estética urbana, era valorizada, seria um dos maiores símbolos de beleza paisagística urbana da capital. (GODÓI, Apud: RIBEIRO, 2004, p. 75)

O projeto dos urbanistas para o rio Meia Ponte previa uma intervenção de grande porte, sobretudo com a formação de extenso lago, formado pelo represamento no trecho da cachoeira do Jaó de aproximadamente quatro quilômetros de extensão e de grande largura, superior a 500 metros em alguns pontos. Muito embora um represamento envolva questões ecológicas e ambientais a serem consideradas, a formação do lago daria ao rio, nesse trecho, a visibilidade dos grandes cursos d’água, deixando sua presença ainda mais representativa. O projeto ainda previa a instalação de uma estrada no contorno de toda a represa que posteriormente seria ampliada para uma “Avenida Park” com função de sanear e manter constante vigilância; a barragem não deveria ser fechada nas áreas marginais a serem alagadas, deixando-as isentas de vegetação por menor que fossem para a facilidade de escoamento e evitar estagnações perniciosas ou focos de mosquito. (LIMA, 2011 p. 16).

A paisagem certamente teria um impacto forte no imaginário do goianiense e também nacional. Os urbanistas tinham essa noção pela comparação feita à Lagoa da Pampulha de Niemyer e o que representavam para Belo Horizonte e para o Brasil. Pelos estudos realizados, a Avenida-Parque viria a ser uma das mais belas do Brasil Central, contornando o enorme lago represado e ligada ao setor norte de Goiânia, por uma ampla estrada, a “Avenida das Indústrias”, via de acesso as áreas dos terrenos marginais, constituídos por loteamentos formados por pequenos sítios e chácaras de explorações diversas. Como estímulo ao reflorestamento, no trajeto da Avenida-Parque, em uma distância entre as bordas da lagoa, foram sugeridas a plantação de espécies vegetais variadas da flora nacional, de modo a formar um Jardim Botânico para atrações turísticas.

O projeto ainda demonstra maior complexidade ao prever áreas para diversos usos no entorno da lagoa. Entre eles a instalação de Clubes Náuticos, “Yach Clube”, o regatas, ancoradouro para lanchas, veleiros e dependências para toda a sorte de esportes aquáticos, como centro de educação física e de diversões, um programa muito similar ao da lagoa da Pampulha em Belo Horizonte. Outro fator importante foi a possibilidade da instalação de chácaras de pequeno porte, ao longo da futura “Avenida das Indústrias” com a função de promover o abastecimento da capital, o que demonstra também, uma preocupação de ordem econômica da área com usos diversos.   Nesse sentido, o sistema de malha verde do projeto promoveria a relação da natureza e da população, em especial da cidade com o rio Meia Ponte. A abrangência do projeto iria ainda, além da intenção de promover harmonia cidade/natureza, mas dá a sugestão de como ela poderia ser mantida. Attílio coloca essa preocupação nas questões de saneamento, salubridade pública e da preservação da qualidade da água com o tratamento do esgoto sanitário antes de esses serem emitidos no rio Meia Ponte, bem como do aproveitamento dos resíduos como adubo:

O sistema aconselhável para o caso é o separativo. A rede de águas pluviais relativamente simples, pois serão despejadas nos córregos, não obrigará a utilizar grandes seções. Quanto à rede de materiais fecais deverá se coletada num emissário que transporte os resíduos abaixo da represa do Jaó, não sendo aconselhável de maneira alguma que o despejo se faça acima desta; embora este só seja aconselhável após um tratamento bacteriológico ou químico. Este último, de preferência, para serem aproveitados como adubo os resíduos. (MONTEIRO, 1938, p. 145)

A Usina do Jaó foi inaugurada em 15 de novembro de 1936 após o lançamento da pedra fundamental de Goiânia. O nome da represa deriva do trecho utilizado do rio para o represamento cachoeira do Jaó. Ele alude ao grande número de pássaros Jaó que se aglomeravam nas margens do rio Meia Ponte. A cidade moderna passou a ser iluminada do aproveitamento da força promovida pelas corredeiras do rio para produzir energia, conforme o Correio Official, jornal do governo estadual, quando a primeira dama “A Eximª Srª Dnª Gercina Borges Teixeira ligou, na grande Usina do Jaó, a chave da rede que iluminou pela primeira vez a cidade”.

 A Usina do Jaó com seus 180 “quilovoltsampère” (KVAs) de potência, estrutura impressionável para os padrões da época, contribuiu para o desenvolvimento nos primeiros anos da capital, uma vez que a advento da energia ainda era raro no Brasil, sobretudo no Centro-Oeste (LIMA, 2011 p. 17-18). O represamento do rio para a formação da lagoa marcou de maneira definitiva a ação do homem sobre a natureza, e ao mesmo tempo criou na cidade imagens do que o rio poderia possibilitar para Goiânia. Tanto a lagoa como a própria estrutura da Usina são elementos que marcaram urbanisticamente a paisagem da cidade. Essa intervenção insere na história mais um argumento a favor da importância da “essência” da imagem do rio Meia Ponte para a memória do goianiense.

 

 

 

 

Figura 03: Construção Usina do Jaó

Fonte: Imagem cedida Celg.

 

Quase trinta anos depois, na década de 60, foi lançada a pedra fundamental do Clube de Regatas Jaó por intermédio de Ubiratan Berrocan Leite e sua esposa Stella Berrocan, idealizadores e financiadores do empreendimento.  Com o projeto de Sérgio Bernardes, o clube iniciou sua inauguração em 1965 com entrega da cobertura das dependências sociais. O clube oferecia, além das atividades de um clube social aquático, a prática de esportes náuticos, como barco, esqui, lancha e remo proporcionados pelo represamento do rio Meia Ponte. Na década de 70, com a desativação da Usina do Jaó e a implosão da mesma, o clube deixou de oferecer as atividades e passou a se chamar, Clube Jaó. (LIMA, 2011 p. 45-50).  A existência do clube até a atualidade confirma as qualidades estéticas do rio que foram valorizadas no passado e ignoradas no presente. A beleza paisagística do represamento proposto no primeiro plano diretor, ainda exerceu influência na construção no clube nos moldes de Ubiratan e Stella Berrocan. Outra forte imagem que configura a importância do rio Meia Ponte para Goiânia que permanece em atividade como uma lembrança do valor desse curso d’água.

A “aparência” pela situação das margens do rio Meia Ponte.

O projeto urbano para Goiânia em si constitui apenas uma parte da construção de imagens e signos, o começo de um processo cuja intenção poderia extrair significados positivos ou não. Contudo, a finalização completa desse processo exige à construção do objeto, a execução da obra, a concretização do lugar gerando a imagem para, depois, proporcionar a experiência urbana através de um sujeito, no caso o, goianiense. A partir daí, tem -se início ao processo de construção dos significados e da leitura da cidade, ou seja, do entendimento individual e coletivo do que o sistema de malha verde e o rio Meia Ponte representam para Goiânia. Inúmeros fatores contribuíram ou impediram a realização dos projetos de Attílio Corrêa Lima e Armando Godói. Porém, independentemente de sua efetivação, um cenário foi construído e o resultado de sua leitura será percebido nos meios de comunicação da época e da interpretação cientifica na bibliografia existente. Nesse ponto, o significado do que foi proposto no projeto, é entendido aqui como uma “essência” porque propunha uma relação harmônica entre a cidade e a natureza muito valorizada na atualidade. Ela nunca poderá ser analisada enquanto significado almejado neste trabalho, já que a experiência urbana do projeto proposto não existe, uma vez que ele não foi construído segundo as proposições dos urbanistas.

O único caminho a ser percorrido agora é compreender qual o significado do que foi construído as margens do rio Meia Ponte em Goiânia. A ocupação ao longo do rio tanto no que foi utilizado dos projetos de Attílio e Armando, quanto relativa ao processo de crescimento da cidade é o resultado da sua condição atual. Esses usos e ocupações formam as paisagens e representam a maneira como o goianiense se relaciona com o rio Meia Ponte. É a partir desses lugares e da experiência urbana da população com eles, que o rio Meia Ponte pode ter sua imagem construída.

Na década de 80 a mídia jornalística já apontava sinais da degradação da condição dos mananciais de Goiânia. No jornal Diário da Manhã de Outubro de 1989 com a matéria “Morte Inexorável dos Mananciais Urbanos”, entre eles o rio Meia Ponte, o jornal aponta a condição degradante dos cursos d’água da cidade, ressaltando a sua importância histórica para a localização da capital. A revista Afirmativa da UFG nº 7 de Janeiro de 2013, já demonstra a evolução desse processo de degradação 23 anos depois como o avanço da cidade sobre as margens do rio Meia Ponte com a matéria “A Cidade Invade o Rio” destacando sua importância como principal manancial do Estado.

Tanto as imagens jornalísticas quantos os bibliografia cientifica contribuem para o entendimento de que aquela relação harmônica entre cidade e natureza, entre cidade e o rio Meia Ponte, não se perpetuou, uma vez que o rio figura entre os sete mais poluídos do Brasil. Essa compreensão determina a condição de espaço residual do rio Meia Ponte, um espaço sem significados que, tendo sido objeto de um planejamento preocupado com seu futuro e em vista de sua importância histórica para a construção da cidade, revela a “aparência” concretizada nos significados reproduzidos do que realmente o rio representa atualmente.

Figura 3:Invasão de Goiânia sobre as margens do rio Meia Ponte.

Fonte: Revista Afirmativa UFG nº 07 Janeiro 2013

 

Muito embora essa condição do rio Meia Ponte, e certamente dos demais cursos d’água da capital, seja uma realidade alarmante, faz-se necessário compreender como essa realidade se desenvolveu, uma vez que existia um planejamento que conduzia ao extremo oposto desta realidade. A inconclusão do projeto original para a área do rio Meia Ponte conforme as recomendações necessitam ser compreendidas. Segundo Ribeiro (2004, p. 62), o que poderia ser o maior trunfo do projeto, mesmo demarcadas às áreas do sistema da malha verde, acabou se restringindo a pequenas manchas pontuais, descaracterizando o equilíbrio natureza/cidade. Nas últimas cinco décadas, o sistema de áreas verdes foi paulatinamente desmontado pela negligencia administrativa, e pela atitude agressiva em relação às áreas verdes de propriedade pública, transferidas a particulares ou simplesmente invadidas, tanto por particulares como pela população de baixa renda.

 Da oficialização do plano e durante todo o período do Estado Novo, ele foi respeitosamente utilizado como instrumento real de ocupação e crescimento da cidade pela administração pública, que conteve os especuladores em Goiânia, detendo o controle do uso do solo. Mas, no início da década de 50, o poder cedeu à pressão dos proprietários das glebas lindeiras às zonas urbanizadas e dos especuladores imobiliários, gerando um crescimento em progressão geométrico e uma explosão demográfica que descaracterizou o plano original. Attílio Corrêa Lima tinha ciência da possibilidade que a expansão de loteamento pudesse acontecer desordenadamente, e acreditava que a demarcação das áreas, seria uma maneira de salvaguardar a áreas livres.

O arquiteto previu que, com o tempo, a evolução do desenvolvimento natural da cidade, haveria a depredação e a dilapidação das áreas verdes pelo mau uso da população e do governo. Assim a tendência natural foi a redução dessas áreas. Demonstra clareza e conhecimento da realidade econômica local do pais, e sabedoria, por entender que, naquele momento, seria impossível instalar os parques, mas era imperioso prevê-los como forma de assegurar sua existência futura. (RIBEIRO, 2004, p. 64)

Do projeto original para a área do rio Meia Ponte, foram construídos somente a Usina do Jaó e o Clube de Regatas Jaó, posteriormente Clube Jaó, sendo o restante da área totalmente invadida (RIBEIRO, 2004, p. 38-75). O Clube Jaó atualmente apresenta-se como um clube privado e não se utiliza do rio Meia Ponte devido a implosão da Usina do Jaó. Porém, continua a exercer um papel importante no cenário social goianiense. Na Usina do Jaó, desde o início das obras, os engenheiros responsáveis se esforçaram no sentido de que, na área do terreno prevista para essa enorme represa, não fossem vendidas chácaras a quem quer que seja, afim de não dificultar ou impossibilitar mais tarde a execução do plano, com a construção da avenida-parque do contorno da lagoa. (LIMA, 2011 p. 17).

A usina foi desativada em 1971 e sua estrutura pertence ao estado como parte do patrimônio em liquidação da antiga Metago, substituída pela Superintendência de Geologia e Mineração. As turbinas foram reutilizadas em outros projetos de energia. Ainda na década de 70, a represa foi implodida, deixando um buraco na parte superior da barragem de concreto. Com o maior escoamento o nível da represa baixou, expondo terrenos submersos desde o início das obras – logo ocupadas por loteamentos irregulares. Em 2003 foi proposta uma reativação da usina, pensando em transformar a velha estrutura em uma usina-escola. Um estudo da CELG constatou a impossibilidade, do projeto, devido aos impactos ambientais, também pelas condições sanitárias do trecho do Meia Ponte. Assim a ideia de implosão voltou à baila, e em 2011, ainda não foi definido o futuro das ruínas da primeira usina de Goiânia, que daria uma bela atração turística.  (LIMA, 2011, p. 23).

 

 

Figura 4: Situação atual da Usina do Jaó.

 

Fonte: Usina do Jaó disponível: http://www.riomeiaponte.com.brbacias.php

Na conclusão de Ribeiro (2004, p.121-123), a aprovação indiscriminada de loteamentos na década de 50 deu início ao processo de redução das áreas verdes. Mesmo sendo proibidas posteriormente, esse processo continuou de forma clandestina na décadas de 60, 70 e 80, ocupando os vazios urbanos, entre uma área loteada e outra, redividindo as chácaras urbanas, em geral confrontantes como os fundos de vale e aprovadas na explosão dos parcelamentos. As áreas verdes obrigatórias, sobretudo as relativas ao rio Meia Ponte, encontram-se invadidas principalmente pela população de baixa renda, tendo em vista a inconsistência legal dessas áreas durante o processo de ocupação. Sua situação é quase o da irreversibilidade da degradação ambiental.

Conclusão

A oposição entre natureza e cidade nunca esteve tão evidente no cenário do planejamento urbano. Essa discussão exige a necessidade de refletir a relação entre o meio ambiente e a cidade. Os rios urbanos têm apresentado destaque nesse discurso, em especial os grandes rios, pois conseguem impor sua presença ao ponto de promover e exaurir alguma vontade de preservação. Por outro lado, um grande número de mananciais de médio e pequeno porte enfrentam, um esquecimento social e carregam geralmente o status de esgoto urbano encarregado de conter os dejetos humanos. Esses rios, como o Meia Ponte em Goiânia, capital de Goiás, apresentam dificuldade em conseguir apoio social e político para a manutenção de sua sobrevivência, muito embora, esse curso d’água represente historicamente símbolos importantes para a formação da capital.

Nos planos de Attílio Corrêa Lima e Armando de Godói, pode-se inferir que a preocupação legítima sobre a área do rio Meia Ponte exprimia uma vontade de criar um ambiente social positivo que constituísse área de usufruto público. A construção da Usina do Jáo também representa uma das ações positivas para promover uma valorização do rio Meia Ponte agregando função. O represamento para a construção da Usina do Jaó propiciou a construção do Clube Jaó, contudo restringindo o uso a classes sociais mais abastadas. Muito pouco do que foi pensado foi construído, e o processo de crescimento desordenado com a ocupação através de loteamentos legais e clandestinos, aliados a falta de infra- estrutura para o tratamento do esgotamento sanitário, hoje temos um rio muito poluído e degradado.

O rio Meia Ponte evolui junto com Goiânia, principalmente em relação ao seu significado a partir dos anseios da sociedade. Mesmo ele tendo apresentado importante papel para o assentamento da capital e apresentar importantes elementos históricos, seu significado evoluiu à espaço residual, uma cicatriz, sem importância para a sociedade, como se tivesse tornado uma paisagem invisível.  Como se Goiânia resistisse a significação do que o Meia Ponte pudesse lhe representar positivamente, ignorando um elemento urbano que poderia refinar a legibilidade de Goiânia:

[...] Seria necessário em seguida explorar as imagens profundas dos elementos urbanos. Por exemplo, numerosas pesquisas ressaltaram a função imaginária do curso" que, em toda cidade, é vivido como um rio, um canal, uma água. Existe uma relação entre a estrada e a água, e sabemos muito bem que as cidades que oferecem maior resistência à significação, e que além do mais muitas vezes apresentam dificuldades de adaptação para os seus habitantes, são justamente as cidades privadas de água, as cidades sem beira-mar, sem espelho d'água, sem lago, sem rio, sem curso de água; todas essas cidades apresentam dificuldades de vida, de legibilidade. (BARTHES, 2001, p. 230)

Um rio se torna degradado porque o seu espaço, imagem, função e qualidade se transformaram, ou seja, são locais onde o programa se tornou obsoleto e não consegue acompanhar o desenvolvimento da cidade, não consegue reprogramar o seu uso e por isso perde o seu significado. No momento o rio precisa de condições construtivas para definir-se conforme os repertórios culturais que se apropriaram dele no decorrer da história.

Uma espécie de projeto inconcluso, porque passível de acomodar-se à impressivibilidade do uso. Um projeto que se redesenha dentro da própria transformação do desenho urbano. Um projeto cuja provisoriedade não esta no seu partido, mas num programa que vai assumindo contornos novos na medida em que se reprograma o uso. Dessa forma, o significado do projeto está na ressiginificação da cidade. Ambos, arquitetura e cidade projetados. Nessa perspectiva, desconsidera-se a monumentalidade construtiva, visto que se assume que os ambientes urbanos são, na essência, provisórios; se envelhecem ou degradam é porque transformaram-se o espaço, sua imagem, função e qualidade. Na vida de uma cidade, os impactos ambientais não são impunes, pois deixam cicatrizes que se traduzem como perda de significados irrecuperáveis; o que se redesenha não é o espaço passado para novos usos e significados. (FERRARA, 2000, pg. 184)

Goiânia, assim como no passado, continua sendo uma cidade banhada por inúmeras nascentes, córregos e pelo único rio da região, o Meia Ponte. Porém, o que antes representou vivamente na sociedade com destaque e importância, hoje mostra uma “aparência” indigna, porque Goiânia ainda sobrevive parcialmente do abastecimento hídrico do rio. Mesmo tendo nascido da “essência” intencional da harmonia entre cidades e natureza dos desenhos de Attílio Corrêa Lima e Aramando de Godói, o processo de crescimento desordenado da cidade ignorou a importância do rio, no desenho da cidade pela implantação das áreas verdes, da Usina do Jaó e do Clube Jaó que marcam mesmo em ruínas, no caso da Usina do Jaó, insistentemente, o seu lugar. Se hoje é preciso existir trabalhos como esse para chamar a atenção da comunidade para a realidade de um elemento crucial para a vida de Goiânia, ao invés de contribuir para continuar algo que na essência já era grandiosa, significa que talvez não seja a cidade quem precisa se mostrar, mas o olhar que precisa mudar o foco.

 

Bibliografia:

ABREU, Vandré. Empresas poluem e o Meia Ponte. Jornal O Hoje. 20 de Agosto de 2011.

BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

COSTA, Rhadá e GOMES, Janaina. Meia Ponte: um grito de socorro. Revista Hoje. Editora Caraíba; Ano 5, 55ª ed.,jul., 2011.

FERRARA, Lucrécia d’Alessio. Os Significados Urbanos. São Paulo: Edusp: Fapesp, 2000.

GORSKI, Maria Cecília Barbieri. Rios e cidades: Ruptura e Reconciliação. São Paulo: Ed. Senac, 2010.

LIMA, Nádia. História do Setor Jaó. 2ª Ed. Goiânia: Editora PUC/GO: Kelps, 2011.

MANSO, Celina Fernandes Almeida. Goiânia: uma concepção urbana, moderna e contemporânea. - um certo olhar. Edição do autor; 2001.

MONTEIRO, Ofélia Sócrates do Nascimento. (1938). Como Nasceu Goiânia. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais.

RIBEIRO, Maria Eliana Jubé. Goiânia: os planos, a cidade e o sistema de áreas verdes. Goiânia, Ed. Da UCG, 2004. 

VEIGA, Patrícia da; A Cidade Invade O Rio; Revista Afirmativa Metrópole, n° 7, janeiro de 2013: UFG