Da Eficácia
E Virtude das Letras
Quanto às letras, bem se vê que elas não careceram daqueles mistérios que nos nomes consideramos, significando por si mesmo sem ajuda de outros vários e notáveis efeitos, naturalmente porque, como vemos e lemos, por elas se denota já honra, já vitupério, escravidão, liberdade e causas semelhantes, e daqui procede a observação de algumas nações políticas, que põem na face o S ao escravo, e nas costas o L ao ladrão. Sabemos que Esopo, que floresceu muito antes da primeira guerra troiana, pela virtude e força das letras que achou em certa coluna de um templo interpretadas em modo cabalístico, descobriu ao rei Xanto um preciosíssimo tesouro. (Thomas Garçon, Discursos).
O próprio vinham a ser aqueles celebrados símbolos pitagóricos, entre os quais a letra ypsilon se denotava por final de vida, como disse um poeta: Litera Pithagorae discrimine secta bicorni Humanae vitae speciem praeferre videtur. Donde é verossímel que pela figura que faz a letra ipsolon, nesta maneira escrita como os gregos a formavam Y, se copiasse a figura do deus Jano por ídolo da paz, que é árvore da vida, denotando que por esta razão com semelhante imagem inculcavam sua virtude; porque com duas cabeças sobre um corpo o pintou a fabulosa antiguidade: a esta letra ypsilon era oposta a letra thita, como final de morte, pelo que outro poeta cantou: O´ multum ante dias infaelix litera Thta.
Os sábios Gregos observavam quase religiosamente o mistério daquelas cinco letras, a que chamaram místicas por testemunho de S. Isidoro, as quais eram ypsilon Y, thita, taf T, alfa A, Omega. E se a primeira, segunda e terceira vemos ilustres com a significação da vida, como o ypsilon; da morte, como o thita; da cruz, como o taf, a quarta e quinta letras, alfa e ômega, são muito mais enobrecidos por havê-las Deus tomado por próprios nomes seus e balizas da sua imensidade, quando de si disse: Ego sum Alpha ET Omega. Isto é, princípio e fim de todas as coisas; donde é muito para notar que, havendo no mundo tantos termos por que Deus pudesse demonstrar sua grandeza e imensidade, recorre aos pólos das letras tomando a primeira e a última do alfabeto grego, para mostrar, assim, que divina e superior é a Onipotência Divina, princípio e fim de tudo, e que por modo místico entre a primeira e a última letra se compreende também tudo quanto no mundo é compreensível, que fora de Deus é tudo.
A letra thau era fautíssima entre os hebreus, e já por seu grande valor lhe aplicaram a valia da maior quantidade, denotando-se nela o número 400, cuja ignota veneração pode ser lhe viesse por semelhante da Cruz Santíssima, e antes pela vara e serpente de metal que por figuras da Cruz se lhe assemelhavam. O que tudo parece, que se disse naquele lugar de Ezequiel, onde se lê: Et signa Thau super frontes virorum, gementium, ET dolentium, que se corrobora com o próprio que Deus mandava no Êxodo, e explica São João no Apocalipse, dizendo: Nolite nocere terrae, ET mari, neque arbiribus, quo ad usque signemus servos Dei nostri in frontibus eorum.
São Jerônimo receia explicar liberalmente todas as virtudes das letras hebraicas, sendo de parecer que nenhuma carece de mistério no alfabeto hebraico, e assim nos inculca o Aleph por doutrina; o Beth por Senhor; e a este modo, ghimel por complemento; jod, princípio; caph, mãos; lamed, coração; thet, bom; nem, sempiterno; samech, socorro; hayn, fonte; zaddi, justiça; coph, vocação; res, cabeça; sein, dentes; e depois de outras, ultimamente thau, sinal, sobre as quais interpretações, que nos dá o Santo Doutor da Igreja, e as mais, que faltam a todas as letras hebréias, a sessenta assenta conexões, ou combinações, que por brevidade omitimos, das quais tira altíssimos mistérios em benefício de nossa Fé, como se vê na Epístola a Paulo e no perfazimento dos Comentários sobre Jeremias.
Mas os rabinos, com singular erudição das Escrituras Sagradas, explicam assim seu alfabeto, conferindo-o logo com o lugar donde tomaram sua explicação, e dizem: Aleph sit via, seu Institutio, e se prova de Job Docebo instituam te sapientiam.
Beth, Domus: David, Habitado in domo Domini.
Ghimel, Retributio: David, Quia Dominus Rebribuet tibi.
Daleth, Ostium, fores, vel Janua: Gênesis. Et prope erant, ut frangerent ostium.
He, Ecce: Genesis, Ecce vobis semina.
Vau, Uncinus, retortus: Êxodo: Quarum erunt capita áurea.
Dsain, Arma: Regum, Et arma laverunt juxta verbum.
Heth, Terror: Jó, Terrebis me per somnium.
Thet, Declinatio per Matathesim: Provérbios, Ne declines ad dextram, ET ad sinistram.
Jod, Confessio laudis: Gênesis, Laudabunt te fratres tui.
Caph, Vola: Eclesiástico, Melius vola plena requie.
Lamed, Doctrina: Salmo, Doce me facere voluntatem tuam.
Mem, Aquae: Isaías, Omnes sicientes venite ad aquas.
Nun, Filiatio: Isaías, Filium, ET nepotem.
Samech, Appositio: Deuteronômio, Quia imposuit (isto é, apposuit) Moisés manus suas super eum.
Ain, Oculus: Êxodo, Oculum pro óculo.
Pe, Os: Êxodo, Quis posuit os homini.
Tsade, Latera: Êxodo, Sex calami egredientur de lateribus ejus.
Kuph, Revolutio, vel Circuitus: Êxodo, Redeunte anni tempore, id est, Circuit anni.
Res, Egestas: Provérbios, Pavor pauperum egestas, eorum; outros lêem haereditas.
Sin, Dens: Job, Et dentes catulorum contriti sunt.
Thau, Signum: Ezequiel, Signa Thau super frontes virorum.
Tal é a gramática, ou, para melhor dizer, mística exposição, origem e derivação das letras hebréias, cujo venerável mistério a Igreja observa, como se vê nos três ofícios santos da semana maior, onde sucessivamente canta em três capítulos Jeremias, primeiro, segundo e terceiro (Jeremias, cap. 1, 2 e3), todos fundados como glosa ou exposição nas próprias letras do alfabeto hebraico, como, por exemplo, lemos na primeira lição das Matinas da Quinta-feira Santa, Aleph, Quomodo sedet sola civitas plena populo. E logo Beth, Plorans ploravit. E logo Ghimel, Migravit Judas. Mas a razão por que aquelas tais letras se expliquem por aqueles tais lugares, com que se autorizam, ou os lugares por elas, fica para os muitos sábios na língua e lição das Escrituras, bastando-nos a nós mostrar qual era a interpretação que lhes aplicavam por modo cabalístico os rabinos, julgando e penetrando pelas letras, segundo os segredos que nelas se continham na forma referida.
Mas por que os argumentos naturais são nestas questões de não menor utilidade e curiosidade que os exemplos (além de ser este o costume, que vamos seguindo), tornaremos também nas letras, como nos nomes, a fazer reflexão à ciência da música, donde se verá tem tanta força a qualidade ou virtude intrínseca das letras, que para regular universalmente todas as partes desta poderosa ciência é preciso que ela se valha dos próprios elementos do alfabeto. Porque aquela comum entoação: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si nenhuma outra coisa é senão o tom, com que por mais ou menos alento pronunciamos as letras a, e, i, o, u, que são as que vulgarmente chamamos letras vogais. Donde acharemos que a letra A tem virtude intrínseca para formar o tom do Fá e do Lá, usado e expresso com mais ou menos força. A letra E nos dá a entoação Ré; e desta própria maneira, a letra I dá a entoação Mi e Si; a letra O dá a entoação Sol.
Prova-se esta observação com o que se vê que cada dia fazem os destros compositores, quando tomam um tema sobre que vão compondo sua solfa; o qual tema sempre é uma palavra, ou mote, cujas letras lhe ministram as letras de suas composições, como, por exemplo, fez Jusquim, mestre de música do Duque Hércules de Ferrara, o qual a outro fim doutamente alega nosso ilustríssimo autor da Defesa da Música Moderna.Quis este mestre Jusquim tomar por mote o nome de seu senhor Hércules, Duque de Ferrara, e fez a este nome fundamento de toda uma missa, que por esta razão se chamou do próprio nome, a qual música sempre vai dizendo nas entoações o que dissera nas letras, Ferrariae Dux Hercules, repetindo-se nesta maneira: Fe Ré Ra Fá Ri Mi ae Re Dux Ut Her Ré Cu Ut Les Ré. O que, imitando Felipa Rogério, também notável autor de música, compôs outra missa semelhante sobre o nome de Dom Felipe segundo rei de Castela, levando sempre o cantochão às letras com que se diz Philipus secundus Rex Hispaniae, por Mi. Mi Ut Ré Ut Ut Ré Mi Fá Mi Ré. Donde se a qualquer das partes desta entoação tirássemos as letras consoantes com que se organiza o nome que lhe serve demote, ou fundamento, ficarão as vogais por si só fazendo o mesmo ofício e dando igual motivo à música, que se todas as letras, vogais e consoantes, estivessem juntas. Porque à música importava o mesmo se se dissesse A, que Fá. E, que Ré. I, que Mi. O, que Sol, pois é certo que em nenhuma destas dicções entoadas soa o F do Fá, o R do Ré, o M do Mi, o S e o L do Sol. Antes, o que dá virtude, tom e força às entoações ré, mi, fá, sol vem a ser as letras vogais e naturais elementos A, E, I, O, U.
Como veremos facilmente, se uma composição semelhante fosse feita sobre alguma daquelas palavras que se escrevem e pronunciam sem mais letras que as cinco vogais, de que temos exemplo, (quase regulares) um em português, verbo, que dizem a primeira pessoa do tempo pretérito, avoei, do verbo avoar; e em castelhano o nome oveja. Suposto que, no primeiro, a letra v e, no segundo, a letra j têm força de consoante, contudo, se para este nome e verbo se aplicassem as entoações da música e lhes tirasse aquelas letras consonantes, que realmente são supérfluas, porque o mesmo disseram sendo letras que sendo nomes, não era necessário buscar algum valor fora do próprio mote, porque a letra dera a entoação, e a entoação, a letra, pois juntamente ficavam dizendo sol, ré, mi, fá, que, livres das consoantes, dissera o, v, i, a. Ou fá, sol, ré, mi, que, livre das consoantes, dissera a, v, o, e, i.
Da mesma maneira, a dialética achou e separou certas letras, nas quais denota seus mistérios. Donde se prova que tanto necessitou delas esta ciência, que, não achando nomes feitos, nos quais concorressem as letras de que queria servir-se para sua explicação, os fingiu e inventou, a fim de poder melhor explicar-se pela virtude daquelas letras, notando em umas a afirmativa universal, e em outras a negativa universal; naquelas, a afirmativa particular, e nestas a negativa particular; como se vê nos versos que os lógicos trazem a este propósito, que nenhuma coisa querem dizer, nem servem de mais que de dar letras que sirvam à definição dos argumentos, e são estes:
Barbara, Celarente Darij, Ferio. Baralipton
Celantes, dabitis, Fapesmo, Frisesomorum,
E também em outras:
Cesare, Camestres, Festino, Baraco, Darapti,
Felapton, Disamis, Datisi, Bocardo, Ferison.
Donde, por exemplo, se vê que nesta palavra Barbara, que consta de A A A, se acharam três afirmativas universais, sendo a maior e a menor, e a conseqüência de afirmação inegável, como se alguém dissesse:
Todo o bem se há-de seguir
Toda a virtude é boa
Logo toda virtude se há-de seguir.
A estas três afirmativas concorrem as três letras A, de que o nome Barbara se forma. Porque aquele elemento, ou letra A, é tão simples, que não tem negação, porque não pode outra coisa, e por esta causa tem virtude demonstrativa de afirmação universal, a que corresponde sua simplicidade, por aquela intrínseca razão que faz como sempre seja uma mesma coisa, que não pode ser outra. E por ela vem a ser a letra A afirmativa universal, e daqui julgou Aristóteles por tão forte o poder deste argumento, que lhe chama Aquiles.
E se porventura se dissesse que a variedade dos idiomas faz desfalecer esta virtude das letras, porque na forma do caracter e prolação da voz, uns de outros são diversos, por exemplo a letra a que os latinos chamam A, e se pronuncia com esta prolação A, escrevem os gregos, ainda que na própria forma com prolação diversa, dizendo alha, e os hebreus a pronunciam Aleph. Os caldeus a pronunciam elpha. Os árabes a pronunciam elifa. Os egípcios athonius. Os asiáticos elipha. Os sírios alin. Os sarracenos alemoxi. Os ilíricos hás; ainda São Jerônimo e São Cirilo, e antes deles Esdras tiveram seus alfabetos particulares, como afirma Palatino. Então responderemos que nestas letras, como já nos nomes dissemos, que se devia considerar alma e corpo, havemos de entender também, para maior clareza, matéria e forma, sendo a forma a figura do caráter, a matéria o tom que por ele exprimimos; em maneira que pouco importará se escreva diversamente, e variamente se pronuncie esta letra com várias figuras e prolação em seu idioma se sempre tem o lugar daquele primeiro elemento da voz humana, ou lhe chamam A, ou alpha, ou Aleph, existindo e vogando em um próprio modo em qualquer língua, por ser o tom que faz aquele primeiro de alento, que proferimos, comum a todos os homens e nações do mundo; nem importa que o nome da letra A, naqueles idiomas, não seja simples como o é nas mais línguas da Europa, porque em todas (como se vê) cai a imposição sobre a voz A, ou começa por ela, segundo vimos no alfa dos gregos, que começa com A, e no Aleph dos hebreus; ou como na dos caldeus e árabes, que acabam em A, dizendo elpha e elifa. A razão natural de que o A goze da primazia das letras é por ser a primeira pronunciação humana, mais fácil e simples (como afirma Santo Isidoro), porque nunca se poderá ferir o ar com um leve estrondo, que formando a voz não soe entre ela a letra A. Donde já alguns filósofos naturais foram de parecer que as aves falavam e articulavam dicções distintas, em tal sorte que se podiam entender umas às outras: o que se prova quando vemos que, para imitar o canto e voz das aves, nos servimos de artigos e letras da voz humana, pelos quais se imitam os cantos e vozes dos animais e de qualquer coisa que tem voz.
João Paulo Bonet, na sua arte dos mudos, tem para si que a forma do A latino é a melhor de todas, com que os homens se explicam, e tem em sua própria figura força energética; porque (diz ele) as formas das letras não foram feitas ao acaso, senão que quiseram guardassem ordem, e esta fosse a da semelhança que podia haver entre a ação da boca e a forma da letra, para que em tudo se correspondessem as letras e as palavras; de maneira que ao A, porque requer para sua pronunciação que a boca esteja aberta e lance de si muita respiração, lhe deram esta figura de trombeta, significando que na garganta se há de fazer o ponto onde se juntam as linhas para lançar o alento fora, e que um beiço se não há-de ajuntar nunca com o outro para formar o A, e disto serve a risca que atravessa de uma linha à outra, que nunca deixa como se ajuntem, porque então não se podia dizer A.
Da própria maneira diremos da letra E latina, e original a todas as línguas que do latim procedem, que como o A tem também sua figura significativa; e assim discorreremos pelas vogais somente por não fazer prolixa esta investigação nova e curiosa. Esta letra E tem seu sonido na garganta e nos beiços, de todo contrário ao A; porque assim como no A se expele o vento para fora, no E se recolhe para dentro, de tal sorte que se o E se quer pronunciar mui sonoro, obriga a franzir algum tanto as ilhargas da boca, porque fazendo menor o arco da boca em que há de formar-se o E, fará menos e mais suave sonido. Demonstra-se toda esta especulação na própria forma do E latino, onde as duas riscas, superior e inferior, significam os dois beiços, e a risca do meio mostra o lugar da língua para forma a letra E; porque se a língua sair mais fora, ou se encurvar mais para dentro, já não poderá pronunciar a dita letra.
Uma das letras que, por seu caracter, melhor se demonstra é a letra I, porque verdadeiramente é uma voz simplíssima e sonora, reta e sutil, que sai direita sobre a língua e se prolonga até topar nos dentes, donde suavemente reflata, e parece que não pode fazer outra que a figura do próprio caracter, que o significa nesta maneira, que é uma linha reta, demonstrando, como aquele sonoro espírito I, sai direito pegado, ou paralelo, à superfície da língua, onde somente quebra aquela pequena parte que é necessário dar-lhe de vento entre os dentes a sua pronunciação, que a faça mais sutil e sonora, como se nota na vaza do I sendo nesta maneira -.
Não menos declara o tom de sua voz a letra O de que havemos dito das outras vogais, porque a forma deste caracter significa a própria figura que faz a boca quando a pronunciamos. Porque se bem observarmos a postura da boca e beiços do homem quando diz O, veremos que com eles faz a própria figura O, franzindo os beiços, lançando-os algum tanto para fora e deixando um redondo orifício, por onde despede o espírito que dá tom e sonido a esta letra, que em outra maneira não é possível pronunciar-se.
A quinta e última letra vogal U é parecida com a letra A na figura e com a letra O na prolação, tanto que os castelhanos as confundem na pronunciação vogal como na consoante com a letra B, que já foi herdada dos gregos. Forma-se de um espírito que se lança fora da boca, de tal sorte que mais soa fora que dentro dela. A forma do carater com que se explica é assaz semelhante ao modo com que a boca pronuncia, deixando sair o alento sem alguma moção da língua, se pronunciará a letra U; a linha que atravessa o A e falta no U mostra que não é necessário estar a boca tão aberta para a pronunciação do U como do A, segundo se verá facilmente quando alguém quiser fazer esta leve experiência.
Conforme a especulação destas cinco letras vogais, que são os cinco simplíssimos elementos com que todas as vozes humanas se podem exprimir, é indubitável que nas letras há proporção implícita e virtude demonstrativa, a qual não só nas vogais, mas nas consoantes, se acha da própria maneira. Porque, como prova Julio Cesar Escaligero no livro que escreveu de Causis linguae latinae contra os gramáticos antigos, a etimologia das letras não é de inter legendum (como ele diz), senão do lineamento com que as letras se formam; querendo assentar que estas não são outra coisa que umas demonstrações do modo com que se pronunciam, para que vendo os olhos o retrato do voz entendessem pelo retrato o que pelo original deviam de entender os ouvidos; e que, assim, da palavra línea se derivou a palavra litera.
E suposto se obsta a esta opinião dizendo-se que se Escaligero falara somente de letras latinas, tivera mais razão, porém que se há de entender de todas as letras; e é sem dúvida que nas dos hebreus se havia de verificar mais que nas outras esta observação, porquanto são os elementos primitivos e originários de todas as mais línguas do mundo; mas, visto que os caracteres hebreus, parece, são nesta parte os menos regulares, porque apenas entre eles e os movimentos de que necessita a voz humana para se pronunciar há alguma proporção, fica logo corrente que os caracteres primitivos não são imagens dos movimentos da voz para que por eles se denote. Porém, este argumento tem sua resposta de não pequena força fundada na autoridade de São Jerônimo, quando diz que Esdras, escriba e doutor da Lei, depois do cativeiro e reedificação do Templo, debaixo do domínio de Zorobabel, achou outras letras diversas das antigas, que são as que de presente usam os hebreus; sendo assim, que até àquele tempo os caracteres dos hebreus e dos samaritanos foram os próprios e depois diferentes.
Eu, contudo, antes de acabar com a especulação natural da virtude das letras, não deixarei de fazer memória acerca delas de uma rara observação, da qual com grande espanto meu e de muitos fui testemunha, vendo por várias vezes que Federico Colona, condestável de Nápoles, fazia juízos sobre as compleições (e ainda sucessos) de algumas pessoas pela letra que escreviam naturalmente, sem mais as haver conhecido. Os quais juízos de ordinário acertava. De cuja filosofia duvidando eu então muito, vim depois a sentir que podia ter algum fundamento natural, a respeito da forma impulsiva que a mão dá à letra guiada do braço animado das artérias, que têm por raiz o coração, da qual por participação de partes mediatas se deduz à escritura muitas de suas paixões; donde vemos que o fleumático escreve devagar e com bem formadas letras; o colérico escreve feroz e mal concertadamente, cujos caracteres indicam o humor predominante, donde sem falta o condestável de Nápoles deduziria seu juízo.
Todavia, porque os mais forçosos argumentos naturais podem ser confrontados e convencidos com outros de maior eficácia, rematarei este ponto da virtude e mistério que nas letras se supõem com outra consideração mais alta, a que não vi resposta, ainda que vi contradição. Suposto que o Doutor Valle impugna este argumento no lugar atrás citado de sua disputa contra a língua hebréia; porque (dizem os cabalísticos) se nas letras não houvesse algum interior secreto, nem outra aptidão que aquele valor casual com que delas nos servimos, que motivo teria Deus para mandar que Abraam acrescentasse a seu nome a letra H e se chamasse Abraham? E para que Sara, chamando-se antes Sarai, tirasse um I e se chamasse Sara? E para que Benjamin, sendo primeiro dito Benoni, se chamasse Benjamin? E para que Israel perdesse todas as letras de seu nome e se chamasse Jacob? O que Cristo Nosso Senhor, como verdeiro Filho de Deus, imitou no Testamento novo, convertendo ao Apóstolo S. Pedro o nome Cephas, Ciphas e Barjonano, diferentíssimo nome de Pedro; e o de Saulo em Paulo, como consta da Escritura Santa. As quais mudanças parece que seria temerário negar que se haviam feito com profundíssimo mistério; e, pois, se não pode negar, claro também parece que fica assim nos nomes, como nas letras, se achará alguma virtude intrínseca significativa de ocultos segredos; e são aptos para conterem essência determinada fora da ordinária ordem e valor que lhes concede o uso humano.