Da Aceleração Discreta à Aceleração Contínua: Tradução, Tradição e a Lenta Transição para a Física Moderna
Por Rodrigo Araújo da Silva Vartuli | 09/07/2025 | EducaçãoA história do pensamento científico é, muitas vezes, apresentada como uma sucessão de descobertas repentinas ou revoluções súbitas, promovidas por figuras de gênio isoladas. No entanto, um olhar mais atento revela uma realidade bem mais lenta e intricada, onde fatores culturais, textuais e até filológicos desempenham papel fundamental. A transição do conceito medieval de aceleração para a concepção moderna, contínua e matemática, exemplifica esse processo — e uma de suas chaves pode estar, como sugeriu Stillman Drake, num erro de tradução dos Elementos de Euclides.
1. O legado de Euclides e o problema da tradução medieval
Os Elementos de Euclides, base da geometria ocidental, chegaram à Europa medieval não em sua forma original grega, mas principalmente por traduções árabes, posteriormente vertidas para o latim. Durante esse trajeto, especialmente nos livros que tratam de proporções (V e VII), ocorreram alterações e simplificações conceituais importantes.
Em sua leitura original grega, o Livro V trata de proporções de grandezas contínuas — retas, áreas, volumes — sem referência obrigatória a números inteiros. Essas proporções permitem comparar grandezas mesmo quando não comensuráveis (isto é, sem uma razão expressa por números inteiros). Já o Livro VII, voltado para teoria dos números, lida com proporções entre inteiros — portanto, com objetos discretos.
Segundo Stillman Drake, uma confusão textual nas traduções fez com que os medievais aplicassem aos problemas de movimento físico uma noção de proporção própria do Livro VII, discreta e aritmética, ao invés da concepção contínua e geométrica do Livro V. Isso teria efeitos duradouros no modo como fenômenos como a queda livre foram pensados.
2. O impacto no pensamento físico medieval
O resultado desse desvio textual foi a cristalização de uma forma de pensar o movimento essencialmente discretizante: os calculatores de Merton e Paris, como Thomas Bradwardine, Alberto da Saxônia e Nicole Oresme, trataram a variação de grandezas físicas — intensidade de calor, velocidade de movimento, densidade de matéria — como uma série de estados distintos e ordenados, não como grandezas variando de modo contínuo.
Surgiu assim o conceito de "latitude das formas" (latitudo formarum), no qual propriedades como velocidade eram representadas como faixas compostas por graus discretos — cada qual mantendo-se constante por um instante mínimo antes de "saltar" para o próximo valor.
Mesmo quando diagramas gráficos (como os de Oresme) começaram a surgir — com eixos semelhantes aos modernos gráficos de velocidade-tempo — os incrementos de velocidade continuaram sendo tratados como blocos finitos, somados sucessivamente, não como elementos infinitesimais de uma grandeza contínua.
Exemplo:
A queda livre de um corpo não era vista como uma aceleração contínua (onde a velocidade varia suavemente a cada instante), mas como uma sequência de "degraus de velocidade", nos quais o corpo adquire um novo valor de velocidade após certo intervalo de tempo discreto.
3. Os limites desse modelo: o impasse escolástico
Esse modelo discretizante limitou o pensamento físico medieval de duas formas principais:
- Ausência do conceito de velocidade instantânea:
- Sem a ideia de variação contínua, os medievais não conceberam a noção de velocidade "num dado instante". As variações só faziam sentido ao longo de intervalos finitos de tempo.
- Incapacidade de formular uma relação matemática contínua:
- A distância total percorrida por um corpo acelerado não era expressa como o resultado da integração de uma função de velocidade contínua (s=∫v(t) dts = \int v(t) \, dt), mas como a soma de distâncias percorridas em cada estado sucessivo de velocidade constante.
Em outras palavras: não havia ainda o conceito de função contínua aplicada ao movimento físico.
4. Galileu e a ruptura com o modelo discretizante
É apenas no século XVII, com Galileu Galilei, que a transição conceitual se completa. O florentino, familiarizado com traduções mais fiéis dos clássicos gregos e profundamente influenciado pela obra arquimediana — centrada em grandezas contínuas — reconfigura o modo de pensar o movimento.
Galileu rejeita a ideia de graus discretos de velocidade: propõe explicitamente que a velocidade de um corpo varia continuamente com o tempo, sem "saltos".
Em sua análise da queda dos graves (como no Dialogo sopra i due massimi sistemi e nos Discorsi e dimostrazioni matematiche), Galileu formula pela primeira vez a relação distância ∝ tempo² para corpos acelerados uniformemente:
s=1/2at 2
Isso corresponde, modernamente, à integração de uma função contínua de velocidade sobre o tempo — algo que os medievais não podiam conceber por estarem presos a uma matemática de proporções discretas.
5. Conclusão: Uma transição mediada por texto e tradição
A hipótese de Stillman Drake sugere, portanto, que um erro filológico — a má interpretação dos Livros V/VII de Euclides — ajudou a manter o pensamento europeu preso a uma visão discreta do movimento por mais de três séculos.
Mas não se trata de mera limitação técnica ou ignorância: tratava-se da consequência inevitável de um sistema textual imperfeito e de uma tradição geométrica mal transmitida.
A transição para o modelo contínuo da física moderna não foi apenas científica — foi também hermenêutica, filológica e cultural. Somente com o resgate direto dos textos gregos autênticos e o surgimento da matemática moderna de variáveis contínuas — precursora do cálculo diferencial — foi possível abandonar o paradigma discretizante que havia governado o Ocidente desde Alberto da Saxônia e Oresme.
O caso revela, por fim, uma verdade desconfortável e fascinante: o destino das ideias científicas pode depender tanto da qualidade de uma tradução quanto da genialidade de um Galileu.
Referências indicadas:
- Drake, Stillman. Galileo: Pioneer Scientist. University of Toronto Press, 1990.
- Grant, Edward. The Foundations of Modern Science in the Middle Ages. Cambridge University Press, 1996.
- Clagett, Marshall. The Science of Mechanics in the Middle Ages. University of Wisconsin Press, 1959.
- Murdoch, John E. The Analytical Character of Late Medieval Learning. In: Lindberg, David C. (Ed.), Science in the Middle Ages. University of Chicago Press, 1978.