A criação de um documento que norteie e oriente as políticas pedagógicas nacionalmente é almejada há alguns anos pelos atores e envolvidos na área educacional. Aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, em dezembro de 2017, a Base Nacional Curricular Comum servirá de referência para a formulação dos currículos dos estados e dos municípios. Tudo isto leva-nos a perguntar: a homologação da BNCC terá que ser cumprida de forma obrigatória? Em função disso, neste artigo abordamos o currículo à luz de uma concepção freiriana, propondo questionamentos críticos e preocupados com o impacto de tais mudanças nas relações de ensino e aprendizagem. Apresentamos brevemente os seguintes conceitos: ser humano; conhecimento; educação e metodologia do ensino em Freire. Também faz parte do nosso objetivo contextualizar e, de alguma maneira, revisitar alguns conceitos inerentes à Pedagogia Freiriana, insistindo por um currículo emancipatório.

Introdução e contextualização

A Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que foi homologada pelo presidente de república em dezembro de 2017, provocou e têm provocado muitas polêmicas. Uns a defendem porque a veem como algo necessário e que especifica direitos, outros a criticam porque consideram que tem uma visão fragmentada do conhecimento, visto que desconsiderou as questões de orientação sexual e gênero e incluiu, às pressas, de forma descontextualizada, o Ensino Religioso, que passa a ser uma área do conhecimento do ensino fundamental. Tudo isto leva-nos a inúmeros questionamentos: a homologação da BNCC terá que ser cumprida de forma obrigatória? Será que existe consciência da importância desta temática e de que a aprovação da BNCC terá consequências que impactarão em várias ações educacionais como a gestão escolar, a formação dos professores, o tipo de avaliação, entre outras? Qual é o conceito de currículo das Bases Nacionais? É possível definir um currículo único para todo país? Qual conhecimento deve ser ensinado? Estas e outras questões são centrais nesta discussão, especialmente porque, em última análise, busca-se responder à outra questão, bem mais ampla, que, conforme Silva (2009, p. 15) enfatiza, “é saber qual é o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade.”
De fato, ao realizarmos uma análise da temática currículo como instrumento de ação política e pedagógica na educação brasileira, fica claro que, nos últimos tempos, a educação tem sido vista como uma mercadoria e que uma mudança de currículo, com todas as suas consequências (avaliações padronizadas, livros didáticos, pacotes educacionais...), tornou-se um negócio altamente valorizado, pois a educação é um nicho de mercado amplamente rentável, inclusive, para editoras e corporações que oferecem ao estado “pacotes” educacionais que, uma vez contratados, são aplicados por coação. Assim, tem-se ampliado as escolas e universidades que ficam nas mãos das grandes corporações. O capital financeiro, a economia neoliberal, nutridos pela busca de novas fontes de mais valia1, bem como das oportunidades de ação deixadas nos textos constitucionais, nos colocam diante da prática de um projeto neoliberal que perpassa toda política educacional brasileira. Nesse particular, e tendo em vista que este é um assunto que demanda um pouco mais de estudo e informação, sua análise ficará para outro momento. Assim, dada a importância do tema e tendo por base as revisões de literatura sobre currículo, destacamos as ideias de Padilha (2003, p. 112) quanto às orientações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96) [...] ao se referir aos “currículos” ou a “componentes curriculares” o faz tratando diretamente de conteúdos escolares para os diferentes níveis de ensino. Além disso, o artigo 27 da referida Lei trata das diretrizes que devem ser observadas no estudo de tais conteúdos escolares, que se voltam principalmente ao tipo de valores que deverão estar presentes nesses estudos, às condições de escolaridade dos alunos que deverão ser consideradas, à orientação para o trabalho e, também, à promoção do desporto nacional, incentivando, neste particular, o apoio às práticas desportivas não-formais (artigo 27 da LDB 9394/96). De acordo com o autor, a legislação estabelece o que o aluno deve aprender de fato, de como os conteúdos devem ser organizados, bem como a forma como a escola deve se adaptar às peculiaridades de cada região. Padilha ainda aponta em seus escritos que “quando discutimos sobre currículo, estamos no âmbito das decisões concernentes a quais conhecimentos devem ser ensinados, o que deve ser ensinado e por que ensinar este ou aquele conhecimento” (PADILHA, 2003, p. 115).
O autor, em sua argumentação, sem se esquecer dos aspectos legais, se posiciona em busca de respostas a partir do pensamento freiriano, em sua tese de doutorado defendida em 2003, na Faculdade de Educação da Universidade de São
1 Para Karl Marx, criador deste conceito de economia política ou sociologia, a mais valia significa, grosso modo, a diferença entre o valor que o trabalhador recebe por seu trabalho e o valor real, sempre maior, do trabalho realizado. O conceito que pode ser traduzido como “mais valor” – “trabalho excedente de um assalariado” (PRESTIPINO, G. in. LIGUORI, G; VOZA, P. (orgs.) Diocionário Gramisciano, São Paulo: Boitempo, 2017. p. 499.
Paulo (FEUSP), intitulada “Currículo intertranscultural: por uma escola curiosa, prazerosa e aprendente”. Porém, se utilizarmos o texto de Tomaz Tadeu de Silva (2009), concluímos que Padilha (2003) constrói um diálogo entre as teorias críticas e as pós-críticas de currículo. Nossa intenção, contudo, é manter a discussão dentro da teoria crítica de currículo, o currículo da Pedagogia do Oprimido, aqui nomeada como “perspectiva crítico-emancipatória do currículo”. Sabe-se que Freire não publicou um texto específico sobre Teoria do Currículo, contudo entendemos que uma Teoria Curricular que tenha uma perspectiva freiriana contempla as questões aqui levantadas, já que no pensamento educacional de Paulo Freire vamos encontrar uma posição sobre: a concepção de ser humano que queremos educar; visão de conhecimento na prática educacional; o que é educação, além de reflexões sobre conceitos como dialogicidade, problematização, “de cultura (ou culturas?!) como arena de lutas e contradições, identidade, alteridade, poder, enfim, um vasto campo conceitual para se discutir questões de currículo” (BERTOLINI, 2004, p. 361). Porém, mesmo sendo vasto o campo conceitual, existe um eixo central, que é o projeto humano de libertação. Paulo Freire afirma que o currículo deve se configurar como um projeto humano de libertação, de modo que a escola ensine a “pensar certo”. Nesse sentido, Bertolini faz destaque às ideias de Freire, ressaltando que
Para Freire, a escola ensina muito mais que conteúdos, ensina uma forma de ver o mundo. Neste sentido, o que ensinar não poder (sic) [pode] estar desvinculado de outras questões que precisam ser feitas no ato de educar: quem educa? Por que educa? O que ensina? Como ensina? A quem serve, contra quem e a favor de quem? (BERTOLINI, 2004, p. 362).
A partir dessa concepção, o conceito de currículo abrange aspectos importantes que levem em conta a realidade sócio-político-histórica da comunidade, para uma educação voltada “para a justiça social [...] a fim de dar poder às pessoas por meio do conhecimento” (TORRES, 2008, p.49). Portanto, é de extrema importância ter claro para quem serve, contra quem e a favor de quem está o currículo escolar. Desta forma, entendemos que currículo é tudo o que precisa ser ensinado para a formação integral e humana do indivíduo que aprende.
Assim sendo, traçaremos neste artigo, além desta ampla contextualização introdutória e das considerações finais, uma reflexão sobre alguns conceitos-chave inerentes à Pedagogia de Paulo Freire e uma reflexão sobre “Currículo Emancipatório”.