*Rosimeire Santos

Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda.

Cecília Meireles

No próximo dia 21 de abril, seremos agraciados por mais um feriado nacional em memória de um dos grandes ícones do nacionalismo à brasileira: Tiradentes.Estranho no ninho em meio aos figurões da elite mineira que sonhavam com os louros da autonomia local, sem influências, posses ou tradição, tornou-se o bode expiatório da "pedagogia do terror" executada pela forças coercitivas do contraditório e contestado governo colonial. Mas como um réu considerado abominável e infame pelo poder monárquico transformou-se num herói, mito nacional? É no processo de formação da identidade nacional brasileira, iniciado pela República, que vamos acompanhar o percurso construído por essa resposta.

Se considerarmos que a identidade nacional, ao contrário daquilo que a construção ideológica nos leva a crer, não faz parte de nossa natureza essencial, mas constitui-se numa distintividade moderna, numa representação cultural, ou como argumenta Benedict Anderson cria-se como uma "comunidade imaginada" (1983), compreenderemos o porquê do esforço republicano em forjar uma figura capaz de sintetizar simbolicamente o novo regime. Segundo José Murilo de Carvalho, a proclamação da República fora um desfecho de um movimento de poucas raízes populares, praticamente um golpe militar, que precisava de legitimação (1990). Era o momento de constituir uma figura heróica capaz de congregar diferenças, de unificar a nação e conferir legitimidade popular ao novo regime. O perfil de herói que acabou prevalecendo foi o do mártir Tiradentes, tornado uma figura cívico-religiosa.

Todavia, a tentativa de transformar Tiradentes em um herói nacional construindo uma estátua em frente ao prédio da Câmara e declarando, em 1926, o feriado nacional, não foi uma exclusividade dos primórdios da República. Durante o Estado Novo, foram encenadas peças teatrais, com apoio oficial, exaltando a figura do herói. Em 1940, Coube a José Walsht Rodrigues, especialista em uniformes, a primeira tentativa de modificar o estilo nazareno idealizado pelos pintores positivistas. De Cristo com barbas longas, Tiradentes foi pictoricamente promovido a alferes da 6ª Companhia do Regimento dos Dragões! Enfim, o herói cívico galgava nas telas sua gloriosa carreira militar. Falando em militares, não podemos deixar de mencionar que estes não se contentaram com homenagens graves, foram muito mais longe. Em 1965, decretaram uma lei que outorgava ao cirurgião prático o pomposo título de patrono cívico da nação brasileira além de mandar colocar seu retrato em todas as repartições públicas do país.

Vigendo no calendário oficial, nas salas de aulas, nos livros didáticos e no imaginário social, 21 de abril, 22 de abril, (republicanamente esquecido) 7 de setembro, 15 de novembro, etc. continuam a serviço da construção de um determinado projeto de nação, que no dizer de Nilo Odalia defini-se como "Branca e Européia" (1997). Que pensar de um projeto de nação cujas identidades continuam a serem formadas pela perpetuação de mitos e heróis sejam eles novos ou velhos?

Referências não são heróis. Heróis excluem a coletividade. Exemplos não são mitos. Meros consumidores não são cidadãos. História não é nem dogma nem ficção. A veracidade histórica é construção: temporal, ideológica e perspectiva.

Referências bibliográficas

ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Londres, 1983.

CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas; o imaginário da República no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

ODALIA, Nilo. As formas do Mesmo. Ensaio sobre o pensamento historiográfico de Vanhargem e Oliveira Viana. São Paulo. Fundação Editora UNESP, 1997.

 

* Mestre em Educação pela Université Rennes 2. Licenciada em História pela UCSAL. Membro do Grupo de Pesquisa Epistemologia do Educar e Práticas Pedagógicas do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA. E-mail: [email protected]