CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS

 

0. A obra possui o subtítulo: "Como filosofar com o martelo".

Esse escrito que não chega a cento e cinquenta páginas, fatal e alegre no tom, um demônio que ri -- obra de tão poucos dias que hesito em dizer seu número, é a exceção entre os livros: nada existe de mais substancial, mais independente, mais demolidor -- de mais malvado. Querendo-se rapidamente fazer uma ideia de como antes de mim tudo estava de cabeça para baixo, comece-se por este livro. O que no título se chama 'ídolo' é simplesmente o que até agora se denominou verdade. "Crepúsculo dos ídolos -- leia-se: adeus à velha verdade... (EH/EH - Crepúsculo dos Ídolos: como se faz filosofia com o martelo, §1)

1. O livro Crepúsculo dos Ídolos foi elaborada em meados de 1888, em Sils Maria, com parte do material acumulado para a produção de Vontade de potência ['Wille zur Macht']. Os projetos para essa obra datam desde 1885 ou 1886, por exemplo: A vontade de potência: Experimento de uma transvaloração de todos os valores em quatro livros. Primeiro Livro: O perigo dos perigos (Caracterização do niilismo); Segundo Livro: Crítica dos valores; Terceiro Livro: O problema do legislador (inclui a história da solidão); Quarto Livro: O martelo (o meio para sua tarefa). Entre 26 de agosto e 3 de setembro de 1888, Nietzsche abandona efetivamente esse projeto, substituindo-o por um novo, também em quatro livros. Transvaloração de todos os valores ('Umwerthung aller Werthe'). Em um fragmento póstumo de setembro de 1888, temos o seguinte plano, um entre vários semelhantes; Livro I: "O Anticristo. Ensaio de uma crítica do cristianismo; Livro II: O espírito livre. Crítica da mais funesta espécie de ignorância, a moral; Livro IV: Dioniso. A filosofia do eterno retorno. Essa tetralogia acabou também não sendo produzida, e, ainda em 1888, "O Anticristo acabou por ser considerado a realização de todo o projeto da transvaloração. Inicialmente, o filósofo preparou um texto que juntava partes do que veio a ser depois Crepúsculo dos Ídolos e O Anticristo, mas o primeiro tornou-se uma espécie de resumo de sua filosofia e o segundo, o primeiro livro do novo projeto.

Manter a jovialidade em meio a um trabalho sombrio e sobremaneira responsável não é façanha pequena: e, no entanto, o que seria mais necessário do que jovialidade? Nenhuma coisa tem êxito, se nela não está presente a petulância. Apenas o excesso de força é prova de força. -- Uma 'tresvaloração de todos os valores', esse ponto de interrogação tão negro, tão imenso, que arroja sombras sobre quem o coloca -- uma tarefa assim, um tal destino, compele a sair ao sol a todo instante a sacudir de si uma seriedade pesada, que se tornou pesada em demasia. Todo meio é bom para isso, todo "caso" um acaso feliz. Sobretudo a 'guerra'. A guerra sempre foi a grande inteligência de todos os espíritos que se voltaram muito para dentro, qu ese tornaram profundos demais; até no ferimento se acha o poder curativo. Há algum tempo, minha divisa é uma máxima cuja procedência eu subtraio à curiosidade erudita: 'increscunt animi, virescit volnere virtus' [crescem os espíritos, o valor vicera  com a ferida!] [...] (CD/GI - Prólogo)

2. Sendo parte de seus últimos escritos, "Crepúsculo dos Ídolos é mais do que uma pequena obra com dez seções, uma grande declaração de guerra. Uma guerra que nada mais é do que uma distração de uma pesada tarefa  que o filósofo alemão se impôs, ou seja, um alívio para a seriedade da transvaloração de todos os valores. Tarefa própria de um psicólogo, cujo martelo não é utilizado apenas para demolir os ídolos eternos, mas para investigá-los, diagnosticá-los. No prefácio de Crepúsculo dos Ídolos, escrito no mesmo dia do término de O Anticristo (30 de setembro de 1888), o martelo é um instrumento que toca os ídolos para ressoarem, como faz o médico que ausculta ('aushorchen') o corpo do paciente, o músico com seu diapasão ou ainda o geólogo com sua pedra. Estamos diante do psicólogo que interroga o objeto de sua investigação acerca de seus sintomas. O som emitido pelos ídolos? Um ídolo que é considerado eterno, imutável e absoluto só pode emitir um tipo de som: o oco, ou seja, o vazio.

Uma outra convalescença, em algumas circunstâncias ainda mais desejada por mim, está em 'auscultar ídolos'... Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é 'meu' "mau olhar" para este mundo, é também meu "mau 'ouvido'"... Fazer perguntas com o 'martelo' talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas -- que deleite para alguém que tem outos ouvidos por trás dos ouvidos -- para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio 'tem de manifestar-se'..." 

Também este livro - seu título já o revela - é sobretudo um descanso, um torrão banhado de sol, uma escapada para o ócio de um psicólogo. Talvez também uma nova guerra? E serão perscrutados novos ídolos? ... Este pequeno livro é uma 'grande declaração de guerra'; e, quanto ao escrutínio de ídolos, desta vez eles não são ídolos da época, mas ídolos 'eternos', desta vez eles não são ídolos da época, mas ídolos 'eternos', aqui tocados com o martelo como se este fosse um diapasão -- não há, absolutamente, ídolos mais velhos, mais convencidos, mais empolados... E tampouco mais ocos... Isso não impede que sejam os 'mais acreditados'; e, principalmente no caso mais nobre, tampouco são chamados de ídolos... [...] (CD/GI - Prólogo)

3. O título do livro é um trocadilho e uma ironia em dois sentidos. No primeiro, Nietzsche atinge Richard Wagner, já que a última ópera da tetralogia "O anel dos nibelungos é Crepúsculo dos deuses ('Götterdämmerung'). No segundo, temos a insinuação de 'Götzen-Hämmerung', ou seja, martelamento dos ídolos. Esta interpretação é validada pelo próprio Nietzsche, pois, em uma carta de dezembro de 1888 a Jean Bourdeau (escritor e tradutor francês), o próprio filósofo alemão fala de seu livro como "Marteau des Ídoles para seu possível tradutor. 

4. O texto foi concebido como o repouso, o ócio de um psicólogo. Este é, aliás, o primeiro título imaginado por Nietzsche para ele: "Ociosidade de um psicólogo. O ócio que se exerce com luta, com serenidade e alegria ('Heiterkeit') no diagnóstico e na derrubada dos valores absolutos, produzidos por organismos mórbidos que não suportam a mutabilidade do mundo, o vir-a-ser. Em Ecce Homo, o filósofo alemão fala sobre o novo título, explicando que "ídolo" significa simplesmente o que até agora se chamou verdade, e que ela, acredita, se aproxima de seu fim. Tarefa para a qual Nietzsche se sente habilitado a contribuir, pois afirma que só a partir de seu trabalho há esperança para a elevação da cultura. Contra a seriedade do filósofo metafísico mórbido, o ócio do psicólogo nietzschiano saudável.

5. As noções de psicologia e de decadência que perpassam "Crepúsculo dos Ídolos, como também "O caso Wagner, estão sob a influência das leituras nietzschianas da psicofisiologia francesa (Théodule Ribot, Charles Féré e dos autores que aparecem nas páginas de "Revue philosophique de la France et de l'Étranger), e de outros franceses, cmo Paul Bourget e Charles Baudelaire. Nesse contexto, a psicologia nietzschiana é propriamente uma fisiopsicologia, ou seja, a análise de sintomas, ou seja, da relação que as produções humanas estabelecem com a vida: uma investigação a partir da interpretação do homem como um conjunto de impulsos em luta por mais potência. A investigação psicológica nietzschiana coloca-se como antagonista da moral vigente, das virtudes estabelecidas e da metafísica tradicional, pois não se baseia na dualidade de opostos qualitativos absolutos, como corpo e alma ou bem e mal, mas no pressuposto do estado fisiológico, ou melhor, na dinâmica da vontade de potência.

A ociosidade é a mãe de toda psicologia. "Como? A psicologia seria -- um vício?" (CD/GI - Máximas e flechas, §1)

Mesmo o mais corajoso de nós raras vezes tem a coragem para o que realmente 'sabe'... (CD/GI - Máximas e flechas, §2)

Para viver só, é preciso ser um bicho ou um homem -- diz Aristóteles. Falta o terceiro caso: é preciso ser as duas coisas -- 'filósofo'... (CD/GI - Máximas e flechas, §3)

"Toda verdade é simples". -- Não é isso uma dupla mentira? (CD/GI - Máximas e flechas, §4)

De uma vez por todas, muitas coisas eu 'não' quero saber. -- A sabedoria traça limites também para o conhecimento. (CD/GI - Máximas e flechas, §5)

6. A guerra e o ócio estão presentes na primeira seção do livro, um conjunto de 44 breves aforismos: Máximas e setas (ou flechas). A guerra está no próprio título, e o ócio é expresso logo no primeiro aforismo, ou seja, quando Nietzsche afirma que a ociosidade é o início de toda psicologia. O psicólogo em seu ócio, isto é, na sua desvinculação dos valores estabelecidos, confronta-se contra os sistemas filosóficos e metafísicos tradicionais, desafiando-os.  

'Da escola de guerra da vida'. -- O que não me mata me fortalece. (CD/GI - Máximas e flechas, §8)

7. Nietzsche não poderia escolher melhor o seu vício ou o de sua filosofia, o ócio, pois a sua negação encontra-se na raiz mesmo da metafísica: Sócrates, ou a personagem Sócrates que aparece nos diálogos de Platão, entende a filosofia como um esforço de busca da verdade que afasta o vício do ócio. Não é à toa, portanto, que a segunda parte de Crepúsculo dos Ídolos, logo após os aforismos, intitula-se "O problema de Sócrates". Esse texto, "Máximas e setas" e as próximas quatro partes da versão final ("A 'razão' na filosofia"; "Como o 'mundo verdadeiro' acabou por se tornar fábula"; "Moral como contranatureza"; e "Os quatro grandes erros") fazem parte dos planos da obra abandonada "Vontade de potência, organizados de forma diferente. Nessas e nas outras seções, os "ídolos" da humanidade são investigados, ou seja, as noções eternas, imutáveis e absolutas que sustentam a modernidade. 

Em todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: 'ela não vale nada'... Sempre, em toda parte, ouviu-se de sua boca o mesmo tom -- um tom cheio de dúvida, de melancolia, de cansaço da vida, de resistência à vida. Até mesmo Sócrates falou, ao morrer: "Viver -- significa há muito estar doente: devo um galo a Asclépio, o salvador". Mesmo Sócrates estava farto. -- O que 'prova' isso? -- Antigamente se teria dito (-- oh, foi dito, em em voz alta, e com os nossos pessimistas à frente!); "De todo modo, deve haver alguma verdade nisso! O 'consensus sapientium' [consenso dos sábios] prova a verdade". -- Ainda falaremos assim hoje? 'Podemos' falar assim? "De todo modo, deve haver alguma 'doença' nisso" -- é o que nós respondemos: esses mais sábios de todos os tempos, é preciso antes observá-los de perto! Talvez todos eles já não tivessem firmeza nas pernas? Fossem tardios? titubeantes? 'décadents'? Talvez a sabedoria apareça na Terra como um corvo, que se entusiasma com um ligeiro odor de cadáver? ... (CD/GI - O Problema de Sócrates, §1)

8. Em "O problema de Sócrates", a configuração fisiológica decadente de Sócrates (anarquia dos instintos) é a mesma de todos os filósofos que avaliaram que a vida não vale nada, o que quer dizer de praticamente toda tradição. A busca pela verdade, a dialética e a moral socráticas são remédios que pretendem curar, mas não curam, a decadência generalizada de Atenas; são formas de combater os instintos, já que eles estão doentes e não conseguem o domínio do organismo.

Não apenas a anarquia e o desregramento confesso dos instintos apontam para a 'décadence' em Sócrates: também a superfetação do lógico e a 'malvadez de raquítico' que é sua marca. Também não esqueçamos as alucinações auditivas, que foram interpretadas como "demônio de Sócrates", em sentido religioso. Tudo nele é exagerado, 'buffo' [burlesco], caricatura; tudo é ao mesmo tempo oculto, de segundas intenções, subterrâneo. -- Tento compreender de que idiossincrasia provém a equação socrática de razão = virtude = felicidade: a mas bizarra equação que existe, e que, em especial, tem contra si os instintos do helenos mais antigos. (CD/GI - O Problema de Sócrates, §4)

9. Em "A 'razão' na filosofia", Nietzsche aponta a idiossincrasia dos filósofos: a falta de sentido histórico e a postulação do incondicionado como o conceito mais elevado. Isso resulta na rejeição do vir-a-ser e na oposição entre realidade e aparência, também sintomas de decadência.

Vocês me perguntam o que é idiossicrasia nos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam fazer uma 'honra' a uma coisa quando a des-historicizam, 'sub specie aeterni' [sob a perspectiva da eternidade] -- quando fazem dela uma múmia. Tudo o que os filósofos manejaram, por milênios, foram conceitos-múmias; nada realmente vivo saiu de suas mãos. Eles matam, eles empalham quando adoram, esses idólatras de conceitos -- tornam-se um perigo mortal para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, assim como a procriação e o crescimento, são para eles objeções -- até mesmo refutações. O que é não se 'torna'; o que se torna não 'é'... Agora todos eles crêem, com desespero até, no ser. Mas, como dele não se apoderam, buscam os motivos pelos quais lhes é negado. "Deve haver uma aparência, um engano, que nos impede de perceber o ser: onde está o enganador?" -- "Já o termos", gritam felizes, "é a sensualidade! Esses sentidos, 'já tão imorais em outros aspectos', enganam-nos acerca do 'verdadeiro' mundo. Moral: desembaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-a-ser, da história, da mentira -- história não é senão crença nos sentidos, crença na mentira. Moral: dizer não a tudo o que crê nos sentidos, a todo o resto da humanidade; tudo isso é 'povo'. Ser filósofo, ser múmia, representar o 'monotonoteísmo' com mímica de coveiro! -- E, sobretudo, fora com o 'corpo', essa deplorável 'idée fixe' dos sentidos! acomedito de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante para portar-se como se fosse real!..." (CD/GI - A 'razão' na filosofia, §1)

10. A história da filosofia é sintetizada em "Como o 'mundo verdadeiro' acabou por se tornar fábula", tendo como fio condutor a dualidade realidade-aparência. Se, no início, a filosofia acreditava alcançar o mundo verdadeiro, ela passa a considerá-lo inalcançável e depois inútil, processo que culmina com a eliminação da própria dualidade realidade-aparência, o que coincide com a filosofia do meio-dia e Zaratustra.

O mundo verdadeiro, alcançável para o sábio, o devoto, o virtuoso -- ele vive nele, 'ele é ele'. (A mais velha forma da ideia, relativamente sagaz, simples, convince1nte. Paráfrase da tese: "Eu, Platão, 'sou' a verdade".) (CD/GI - Como o 'mundo verdadeiro' se tornou finalmente fábula, §1)

11. A estratégia de espritualização das paixões, realizada pelo cristianismo e também sintoma de decadência, é exposta em "Moral como contranatureza". É uma revolta contra a vida, contra a ascensão de potência, daqueles incapazes de superar sua impotência. 

Todas as paixões têm um período em que são meramente funestas, em que levam para baixo suas vítimas com o peso da estupidez -- e um período posterior, bem posterior, em que se casam com o espírito, se "espiritualizam". Antes, devido à estupidez na paixão, fazia-se guerra à paixão mesma: conspirava-se para aniquilá-la -- todos os velhos monstros da moral são unânimes nisso: "il faut tuer les passions" [é preciso matar as paixões]. A mais célebre formulação disso está no Novo Testamento, naquele Sermão da Motanha em que, diga-se de passagem, as coisas não observadas 'do alto'. Lá se diz, por exemplo, referindo-se à sexualidade: "se teu olho te escandaliza, arranca-o de ti"; felizmente, nenhum cristão age conforme esse preceito. 'Aniquilar' as paixões e os desejos apenas para evitar sua estupidez e as desagradáveis consequências de sua estupidez, isso nos parece, hoje, apenas uma forma aguda de estupidez. Já não admiramos os dentistas que 'extraem' os dentes para que eles não doam mais... Com alguma equidade se deve admitir, por outro lado, que o conceito de "espiritualização da paixão" não podia absolutamente ser concebido no solo do qual brotou o cristianismo. A Igreja primitiva lutou, como se sabe, 'contra' os "inteligentes", em favor dos "pobres de espírito": como se poderia dela esperar uma guerra inteligente contra a paixão? -- A Igreja combate a paixão com a extirpação em todo sentido: sua prática, sua "cura" é o castracionismo. Ela jamais pergunta: "Como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?" -- em todas as épocas, ao disciplinar, ela pôs a ênfase na erradicação (da sensualidade, do orgulho, da avidez de domínio, da cupidez, da ânsia de vingança). -- Mas atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz: a prática da Igreja é 'hostil à vida'... (CD/GI - Moral como antinatureza, §1)

12. "Os quatro grandes erros" se remetem todos às noção de causalidade, e não estão apenas no âmbito da lógica, mas também no da moral, o que reflete o pensamento de Nietzsche que a verdade é um preconceito moral. São eles: confusão entre causa e consequência; falsa causalidade; causas imaginárias; o livre-arbítrio. O filósofo alemão traz uma elucidação psicológica para esses erros: o medo, sendo que qualquer explicação é melhor do que nenhuma. O homem sente necessidade de dar sentido para as coisas, porém, segundo Nietzsche, ninguém dá ao ser humano suas características, nem Deus, nem seus ancestrais, nem a sociedade, nem ele próprio . Enfim, o homem não é algo separado do mundo.

Erro da confusão de causa e consequência. -- Não há erro mais perigoso do que 'confundir a consequência e a causa': eu o denomino a verdadeira ruína da razão. Porém, esse erro está entre os mais antigos e mais novos hábitos da humanidade: ele é até santificado entre nós, leva o nome de "religião", "moral". 'Cada tese' formulada pela religião e pela moral o contém; sacerdotes e legisladores da moral são os autores dessa corrupção da razão. -- [...] (CD/GI - Os quantro grandes erros, §1)

Erro de uma falsa causalidade. -- Em todos os tempos as pessoas acreditam saber o que é uma causa: mas de onde tiramos nosso saber, ou, mais precisamente, a crença de sabermos? Do âmbito dos famosos "fatos interiores", dos quais nenhum, até hoje, demonstrou ser real. [...] (CD/GI - Os quantro grandes erros, §3)

Erro das causas imaginárias. -- Partindo do sonho: a uma determinada sensação, devida a um longínquo tiro de canhão, por exemplo, é atribuída posteriormente uma causa (muitas vezes todo um pequeno romance, no qual justamente o sonhador é o personagem principal). A sensação perdura, enquanto isso, numa espécie de ressonância: ela como que aguarda até que o impulso causal lhe permita passar a primeiro plano -- não mais como acaso, mas como "sentido". [...] (CD/GI - Os quantro grandes erros, §4)

Erro do livre-arbítrio. -- Hoje não temos mais compaixão pelo conceito de "livre-arbítrio": sabemos bem demais o que é -- o mais famigerado artifício de teólogos que há, com o objetivo de fazer a humanidade "responsável" no sentido deles, isto é, de 'torná-la deles dependente...' Apenas ofereço, aqui, a psicologia de todo "tornar responsável". [...] (CD/GI - Os quantro grandes erros, §7)

13. Não existem fatos morais, diz Nietzsche, apenas uma interpretação moral dos acontecimentos. Assim, em "Os 'melhoradores' da humanidade", revela-se que o que a moral cristã entende como melhorar o homem, isto é, tornar o homem bom é, fisiopsicologicamente, o seu adoecimento instintual, seu amansamento, sua domesticação ('Zähmung').

Conhece-se minha exigência ao filósofo, de colocar-se 'além' do bem e do mal -- de ter a ilusão do julgamento moral 'abaixo' de si. Tal exigência resulta de uma percepção que fui o primeiro a formular: 'de que não existem absolutamente fatos morais'. O julgamento moral tem isso em comum com o religioso, crê em realidades que não são realidades. Moral é apenas uma interpretação de determinados fenômenos, mais precisamente, uma 'má' interpretação. O julgamento moral é parte, como o religioso, de um estágio de ignorância em que falta inclusive o conceito de real, a distinção entre real e imaginário: de modo que "verdade", nesse estágio, designa coisas que agora chamamos de "quimeras". Portanto, o julgamento moral nunca deve ser tomado ao pé da letra: assim ele constitui apenas contra-senso. Mas como 'semiótica' é inestimável: revela, ao menos para os que sabem, as mais valiosas realidades das culturas e interioridades que não 'sabiam' o bastante para "compreenderem" a si próprias. Moral é apenas linguagem de signos, sintomatologia: é preciso saber antes 'de que' se trata, para dela tirar proveito. (CD/GI - Os 'melhoradores' da humanidade, §1)

14. Em "O que falta aos alemães", o declínio da cultura e da educação alemãs é investigado por meio de uma perspectiva fisiopsicológica: a incapacidade de resistir a um estímulo, a falta de um caráter seletivo.

Entre os alemães não basta ter espírito nos dias de hoje: é preciso tomá-lo, 'arrogar-se' espírito... Talvez eu conheça os alemães, talvez possa até dizer-lhes algumas verdades. A nova Alemanha representa um enorme 'quantum' de capacidades herdadas e adquiridas, de modo que por algum tempo ela pode gastar prodigamente o tesouro acumulado de energias. 'Não' foi uma cultura elevada que com ela ganhou ascendência, menos ainda um gosto delicado, uma nobre "beleza" dos instintos; mas virtudes 'mais viris' do que as que qualquer outro país da Europa é capaz de mostrar. Muito ânimo e respeito de si própria, muita segurança no trato, na reciprocidade dos deveres, muita laboriosidade, muita perseverança -- e uma moderação herdada, que carece antes de aguilhão que de freios. Acrescento que aqui ainda se obedece, sem que a obediência humilhe... E ninguém despreza seu adversário... (CD/GI - O que falta aos alemães, §1)

15. A arte, mesclada com outros temas, como a moral, a filosofia, a ciência e a política, é apresentada como exemplo da decadência fisiológica da modernidade em "Incursões de um extemporâneo".

'Meus impossíveis'. -- 'Sêneca': ou o toureador da virtude. -- 'Rousseau': ou o retorno à natureza 'in impuris naturalibus'. -- 'Schiller': ou o trombeteiro moral de Säckingen. 'Dante': ou a hiena que 'escreve poesia' nos túmulos. -- 'Kant': ou 'cant' como caráter inteligível. -- 'Victor Hugo': ou o farol no mar do absurdo. -- 'Liszt': ou a escola da agilidade -- com as mulheres. -- 'George Sand': ou 'lactea ubertas'; em linguagem clara: a vaca leiteira com "belo estilo". -- 'Michelet': ou o entusiasmo que despe a jaqueta.. 'Carlyle': ou pessimismo como almoço mal digerido. -- 'John Stuart Mill': ou a clareza ofensiva. -- 'Les frères de Goncourt': ou os dois Ajaxes em luta com Homero. Música de Offenbach. -- 'Zola': ou "a alegria de cheirar mal". -- (CD/GI - Incursões de um extemporâneo, §1)

16. Nietzsche, em "O que devo aos antigos", sempre numa perspectiva fisiopsicológica, apresenta aquilo do mundo antigo a que ele, seletivamente, disse Sim. Afirma que "O Nascimento da Tragédia foi sua primeira transvaloração de todos os valores, considerando-se o último discípulo do filósofo Dioniso e o mestre do eterno retorno. 

Por fim, uma palavra a respeito desse mundo para o qual busquei acessos, para o qual talvez tenha encontrado um novo acesso -- o mundo antigo. Meu gosto, que pode ser o contrário de um gosto transigente, também nisso está longe de dizer Sim totalmente: em geral ele não gosta de dizer Sim, acha melhor Não, preferivelmente Nada... Isso vale para culturas inteiras, isso vale para livros -- vela também para lugares e paisagens. No fundo, é um número pequeno de livros antigos que conta em minha vida; os mais famosos não se acham entre eles. [...] (CD/GI - O que devo aos antigos, §1)

17. A conclusão da obra, com um trecho do discurso "Das novas e velhas tábuas" do terceiro livro de "Assim falava Zaratustra, parece reforçar a associação de Nietzsche com a personagem Zaratustra (mestre do eterno retorno). Intitulado "Fala o martelo", o excerto exalta a necessidade da dureza -- entendida aqui como afastamento da negação da vida perpetrada pela religião e filosofia -- para o criador, para aquele que, diagnosticando com o martelo a decadência dos valores eternos vigentes (o "crepúsculo dos ídolos"), possa também com o martelo -- demoli-los e erigir uma nova cultura.

Por que tão duro? -- falou certa vez ao diamante o carvão de cozinha; não somos parentes próximos? Por que tão moles? Ó meus irmãos, assim vos pergunto: pois não sois meus -- irmãos? (CD/GI - Fala o martelo)

 

Referências:

FREZZATTI Jr., Wilson Antonio. "O problema de Sócrates": um exemplo da fisiopsicologia de Nietzsche. In: Revista de Filosofia Aurora, v. 20, nº. 27, pp.303-320, 2008.

MARTON, Scarlett. À la recherche d'un critère d'évaluation des évaluations. Les notions de vie et de valeur chez Nietzsche. In: DENAT, Céline; WOTLING, Patrick (orgs.). Les hétérodoxies de Nietzsche. Lectures du Crépuscule des idoles. Reims: Épure, 2014, pp.321-342.

________. [ed. resp.] Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.

NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos: como filosofar com o martelo. In: Obras Incompletas. Seleção de textos Gérard Lebrun; Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho; Apêndice Antônio Cândido de Mello e Souza; Introdução (pesquisa) Olgária Chaim Ferez; consultor da introdução Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

___________. Crepúsculo dos Ídolos: ou como filosofar com o martelo. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

___________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. 2. ed. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2000.


STEIN, J. & CAMPOS, M. D.