Covardia

Parece covardia.

Sim, é covardia.

Parece medo.

Sim, é medo.

De vez em quando, em certos momentos da vida,

Dá vontade de jogar tudo pro alto.

Dá vontade de sumir e ficar 10 ou 20 dias incomunicável,

inacessível e esquecível.

“Mas cadê ele?”

“Não sei, sumiu.”

“Como assim, sumiu? “Sumiu como?”

“Sumiu.” Simples assim.

Esqueçam-me. Não estou.

Estou ausente, off-line, desmaterializado, perdido em Marte.

Será que dá pra começar tudo do zero?

Não dá pra voltar à infância e crescer de novo?

Só que com a sabedoria de hoje; com as experiências vividas fresquinhas na memória?

Aí eu cresceria sabendo mais,

Fazendo melhor, errando menos,

Aproveitando as oportunidades e

Fugindo daquilo que, agora sei, não dá certo.

Adeus, confiar na pessoa errada.

Até nunca mais fazer aquele empréstimo

Que mais degola do que salva.

Jamais seguiria uma profissão

Que não me permite pagar as contas direito

E que me impede de investir em negócios rentáveis,

De adquirir patrimônio e conforto, enfim,

De dar mais tranquilidade a mim mesmo e à família.

Envolver-me emocionalmente com quem só quer brincar de amar?

Jamais isso aconteceria novamente.

As decisões seriam mais bem pensadas.

Só na certeira.

Só a melhor opção, conforme a voz da experiência me dissesse.

As decepções, assim, seriam minimizadas.

As alegrias seriam constantes.

Os planos não falhariam.

Fracasso zero.

Parece covardia querer viver sem errar,

Sem se decepcionar comigo mesmo e com os outros.

Que covardia querer voltar a ser uma criança irresponsável,

No bom sentido do termo.

Sem preocupações, sem contas para pagar,

Sem satisfação a dar a patrão, esposa, sócio, credor...

Que covardia desejar isso.

E é covardia mesmo.

Querer curtir a infância novamente significa tentar negar o presente,

A vida real e atual, diriam alguns psicólogos.

Estão certos.

E estão errados.

É como se jogássemos e soubéssemos as cartas dos outros.

É como se prevíssemos a próxima jogada.

Para nunca perder...

Deixem-me desejar a utopia!

Deixem-me ansiar pelo impossível!

O paciente exige a anestesia pré-cirúrgica.

A grávida moderna faz questão da cesariana:

“Quero tudo sem dor, doutor”.

Por que não posso desejar a anestesia emocional também?

Chorar menos, menos angústia.

Menos dor, menos decepção na vida.

Mais acertos, mais alegria.

Parece covardia. E é.

Sou um covarde, pois queria começar de novo.

Igual a Ivan Lins.

Queria uma nova chance,

Passar uma borracha.

O desenhista apaga seu traço errado e o refaz.

O engenheiro corrige a obra,

Senão as consequências seriam desastrosas.

O diretor refaz a cena.

Mesmo que seja um beijo molhado.

O escritor reescreve a frase (antigamente rasgava a folha).

O oleiro endireita o vaso.

O chef refaz a receita.

A criança remonta o castelo na areia.

Queria, então, poder começar do nada,

Ou do quase nada e consertar a vida.

A folha da vida em branco e o meu lápis apontado (sou das antigas).

Novas armas, novas defesas.

Aí sim: que venham os desafios;

Que venham os futuros (velhos) problemas para serem cortados pela raiz.

Há, há, há! Não terão vez!

Eu é que mandarei nos fatos e nas consequências.

Ditarei os resultados.

Darei nomes aos bois e serei seu boiadeiro.

Que venham as futuras decepções e as repelirei de minha vida.

Não me farão sofrer.

Não estragarão o meu prazer em viver.

Não me embranquecerão os cabelos e nem os farão cair.

Não prevalecerão, pois antecipar-me-ei aos fatos, às causas.

Sairei ileso e, contraditoriamente, ainda mais forte, mais confiante.

Parece covardia. E é.

Deixem-me ser covarde.

Melhor do que não ser nada.

A coragem não me faz melhor.

Ou faz, porém, não sinto.

Deixem-me ser um covarde.

Não quero mais enfrentar de frente o desconhecido, o indominável.

Quero ter a vantagem do fator-surpresa.

Quero ter a melhor estratégia, a melhor solução.

Quero que minha certeza da vitória seja inabalável.

Quero que minha fraqueza seja não ter fraqueza.

E que minha sorte seja constante.

E, assim, ter cem por cento de aproveitamento.

Nenhuma perda, nenhuma baixa.

Quero sair vencedor.

Quero viver e vencer.

Só isso: viver e vencer.

Deixem-me sonhar.