Corpo Vivo: Alta Tensão e Universalismo
Por Izabel Ghissoni Filha | 16/12/2008 | LiteraturaIzabel Cristina O. Ghissoni Filha
Sindarina Neta L. B.Malaquias
Este ensaio busca conhecer e analisar o romance "Corpo Vivo" do escritor baiano Adonias Filho (1915-1999), integrante do grupo de escritores que, a partir de 1945, constituíram a terceira fase do Modernismo. A partir da leitura da obra e da observação biográfica do romancista (que foi também, jornalista, crítico e ensaísta), pretende-se ressaltar suas marcas estilísticas e compreender "Corpo Vivo" sob uma perspectiva que utiliza o ambiente regional como plano de fundo para tratar de temas inerentes à natureza humana.
Adonias filho em Corpo Vivo retrata de modo envolvente e dramático as guerras, a ambição, a crueldade e a violência que caracterizou a região do cacau no sul da Bahia. O enredo já se inicia de forma chocante. Cajango, o personagem central, tem toda a sua família assassinada devido à disputa pelas terras produtoras de cacau. Ele, único sobrevivente, passa a ser perseguido e é, por isso, levado pelo padrinho Abílio para ser criado pelo índio Inuri, irmão do seu pai.
Vivendo na selva do Camacã, incentivado e influenciado pelo tio, dedica sua vida à luta por vingança. O massacre de sua gente e a sede por vingar-se é o que vai dar impulso a todo desenrolar do livro, tornando-o, a cada página, mais tenso e dramático:
"Talvez sinta na carne aquele sangue dos pais e dos irmãos, sobre o qual se arrastou na fuga, com os gritos da mãe ainda vibrando nos ouvidos. Sangue entranhado nos nervos, que os anos de chuvas não lavaram, alimentando o ódio e a crueldade. (...) não descansará enquanto não tiver, em suas mãos, as cabeças dos assassinos."(ADONIAS FILHO, 1970, 40)
A partir desse momento a vida de Cajango muda de forma drástica, e o menino transforma-se rapidamente em homem, no qual "os olhos verdes e os cabelos ruivos davam a ele um aspecto esquisito. fortes eram os seus braços e tão fortes que pensei em pedras. (...). nada como um peixe, percebe o ruído mais leve, não sabe o que seja o medo (...). O bugre [Inuri] não criou um homem, criou a fera pior que a pior fera." (P.36).
Em torno de si, sob suas ordens e a favor de sua vingança, forma-se um grupo de homens que vivem na floresta e espalham o terror por onde passam. Estes personagens possuem o porte físico, força, agilidade, pontaria, fora do que seria comum, com características dignas de super-heróis. Mas, ao mesmo tempo, são tão duros, frios, cruéis e desumanos que podem ser aproximados dos mais atrozes vilões:
"Um dos bandos de Cajango esteve em Barra de São José, a meia hora dali, caçando o sarará. O homem já não estava, tinha arribado dias antes, mas o chefe do bando não tardou em saber onde ele se hospedara. Invadiram a casa e seguraram o seu dono, aquele caboclo Juca, que disse nada saber.(...). O bando cercou o arruado e, de quintal a quintal, reuniu todos os cães brabos. No centro da praça, com arame farpado, fizeram a jaula que os mourões sustentaram. Um a um, conduzidos pelos donos, os cães foram ali colocados. Doze horas durou a espera, a noite em archotes, todos se interrogando o que iria acontecer. Famintos, na enorme jaula de arame farpado, os cães ganiam como danados, lutando uns com os outros ferozes e agressivos.
Na manhã de hoje, assim que o sol subiu,obrigaram o povo a se reunir em torno da jaula. Homens, mulheres e crianças eram como sombras mudas. Empurrado por quatro cabras, trouxeram o caboclo Juca e, frente aos olhos apavorados, atiraram-no aos dentes dos cães dentro da jaula. Muitos não viram que fecharam os olhos. Outros não ouviram que taparam os ouvidos. Mas se terrível foi o grito do homem (...), não menos terrível foi a arremetida dos cães. As mandíbulas à mostra, ganindo e aos saltos, dilaceraram o corpo que se converteu numa pasta informe. Rasgando a carne, com os pelos sujos de sangue, teriam comido aquilo não fosse o chefe ter manejado o rifle. Vomitando fogo, em suas mãos, a arma não deixou um só cão vivo. E, no silêncio aflitivo que se fez, em seu calção de couro de carneiro, exclamou:
_ É assim que Dico Gaspar mata os vermes!" (p.12-13).
A descrição de seus homens, assim como a sua, é sempre feita comparando-os a animais e seus instrumentos de luta (faca, facão, rifle, balas) são colocados no texto como se fosse parte inerente de seu próprio corpo:
Dico Gaspar: "a cara é de bugre, os olhos quase sumidos dentro das órbitas, os cabelos lisos descendo nos ombros. Seu riso é de menino, mas os braços, de tão fortes, parecem mourões.(...). Tem os pés miudos descalços, veste um calção de couro de carneiro e, como camisa, apenas as passadeiras de balas. O cinturão é de couro cru e nele, além do facão, se prende a faca de dois palmos."(p.11-12)
Sangrador: "um deles lembra o orangotango, a cara imbecil, as pernas cambaias, o busto acurvado.(...). duas facas na bandoleira que usa como um cinturão (...) com as mãos peludas agarrando o rifle" (p.48)
O Alto: "não largava o revólver um só momento (...). Procuravam-no por oito mortes (...). era um assassino e assassino continua porque mata sem motivo e mata qualquer um: mulher, velho ou criança.
Cludo ou Albino: "um calangro na quietação da tarde.(...). esperou o bando sem atormento, com o olhar frio (...), o rifle entre os braços firmes".(p.51-52)./
João Caio: "homem de tórax tão largo quanto o das bestas que montava, as mãos como cascos,(...). no pulso direito como uma algema partida, a pulseira de ferro. Os dentes limados".(p.10)
Chico das Bonecas : "ruim como uma cobra" (p. 49)
Leonel: não esconde a raiva nos olhos.(...). pesará pouco mais que o rifle (...). nos tiroteios, saltando de moita em moita, é um gato do mato" (p.53).
Pereira: "Duro é o semblante, (...), a mesma dureza que está no olhar. quase de porco-espinho aquela barba. Nas mãos, que se põem na luz as cicatrizes se mostram" (p.53).
Essa busca insana e incansável por vingança, os ataques efetivados pelo grupo fazem dele alvo de perseguições, sendo procurados em toda a região. São obrigados, assim, a viverem no Camacã. Este lugar oferece-lhes uma proteção como a de uma verdadeira mãe (a mãe natureza) "atravessar a selva, abrindo caminho com os próprios pés, apenas Cajango e Inuri. O Camacã é deles e tão deles que, na única investida para apanhá-los aí, de cinqüenta jagunços que ousaram dois não saíram para contar. Há pântanos do começo do mundo. Há palmas que cortam como navalhas. (...), é preciso saber pisar e onde meter o corpo." (p.45)
No decorrer do romance, algumas vezes, aparece referências a Hebe, "a bruxa doida" que profetizara o fim. Esse fim, segundo ela, começaria por uma mulher. A mulher aparece na vida de Cajango despertando nele sentimentos que até então estavam escondidos sob o desejo de vingança. Seu nome é Malva, ela é filha de Pereira e irmã de Leonel.
A profecia se concretiza. É o fim do bando, o fim da caça aos criminosos que destruíram a sua família. Por causa da presença dessa mulher, o grupo se dissolve, Cajango mata o próprio tio e "provoca" a morte de Pereira e Leonel. Após a separação, todos são mortos, com exceção de Cajango, Malva e João Caio. Os dois primeiros fogem para a serra, onde não serão encontrados, pois, de acordo com Inuri, "os homens não a conhecem(....).A serra que é uma montanha, as nuvens encobrindo o dorso, ladeira que pés não subirão em dez anos."(p.112).
Quanto a João Caio, ao voltar para tentar uma vida normal, é reconhecido, espancado e obrigado a levá-los até Cajango. Ao chegarem se deparam com a imensidão da serra e compreendem que foram derrotados, pois jamais conseguirão penetrar ali. Assim, "agrupam-se os homens, nos braços os rifles inúteis, o assombro nos olhos. Cem despenhadeiros se aprumam sobre sem despenhadeiros". (p.131)
Ao final do romance, após a consciência da derrota, regressam e libertam João Caio. Este não esquecerá o que vivera ali, as imagens não se apagarão. Nele "não há febre, o calor diminui, mas é a serra que se levanta dentro do seu olhar. Cajango e a mulher, as mãos nas mãos, pisam o chão úmido. As rochas como se movem, dobrando-se a serra, para recebê-los. Descobrirão as cavernas, examinarão os fossos, encontrarão o ninho." (p.134).
O livro é dividido em quatro partes. Tem-se, antes de cada parte, uma espécie de prefácio que é uma antecipação da quarta e última parte, mesclada por imagens e pensamentos referentes às outras três. O desenrolar da historia se dá de forma não linear, num vai e volta constante no tempo em que os narradores e acontecimentos se confundem, mas ao invés de desconcentrar o leitor o deixa cada vez mais intrigado e curioso.
Obra final de uma trilogia que resgata o regionalismo da década de 1930, "Corpo Vivo" traz à literatura baiana e brasileira, aspectos relevantes da cultura nacional, mas concentra-se numa temática muito mais alargadora. De um cenário plenamente regionalista, é extraída uma essência universal, ou seja, retrata as guerras, a violência, a ganância e o desejo de vingança, incutido e alimentado, desencadeados devido à luta por terras produtoras de cacau e ao poder econômico que este conferia na época. Importante é perceber que a linguagem regional da obra aparece apenas como veículo para tratar de temáticas mais abrangentes, aspectos estendidos pela sociedade, cada uma com suas peculiaridades. Seja por questões políticas, religiosas, econômicas ou até mesmo à criminalidade que assola países como o Brasil, a violência – retratada em Corpo Vivo – tem dimensões universais. Encontra-se também no romance, assim como na realidade, o amor ou desejo, embora sem grande sentimentalismo, sempre presente no tempo e no espaço que já foi e é responsável por grandes produções escritas, cinematográficas e telenovelísticas.
A temática regionalista brota reinventada. O sertanejo frágil e inserido no caminho dos fazendeiros, sucumbe, a principio, ante a força bruta do mais forte. Porém, a necessidade de sobrevivência, transforma-o em bruto, destemido e símbolo de medo.
A técnica desenvolvida por Adonias ao longo do romance, transforma o leitor numa sentinela: sempre alerta para não deixar escapar nenhuma informação e conseguir acompanhar todos os fios condutores. Muitos são os fios, pois, além do narrador onisciente João Caio, o livro é percorrido por uma série de opiniões dos demais personagens, cada um com sua singularidade e perspectivas.
O tropeiro João Caio, predomina como narrador da trama, porém seguido por uma cadeia de micro-narrativas dos seus companheiros de bando:
"Eu, o Alto, fiquei ao lado de Cajango. Os olhos viam pouco, mas sabíamos que os cabras estavam nas palhoças. Cobertos pela noite, andando lentamente pelo capinzal, armamos o cerco. E esperamos sem pressa que o negro Setembro levantasse o incêndio. Lembro-me que o fogo cresceu de uma vez, suas línguas lambendo o ar, a barcaça e a metade do campo iluminadas pelas chamas. Os homens saíram das palhoças, desprevenidos, mas tempo não tiveram de ganhar o capinzal. Os nossos rifles dispararam e gritos e gemidos agitaram ainda mais o nosso sangue." (ADONIAS FILHO, 1979, 37).
Curiosamente, o(s) narrador(es) nos permite, através de especulações que surgem no transcurso da trama, inferir sobre o que pensa, ou como se sente Cajango. Estes questionamentos, por vezes trazidos à tona, nas observações de alguns personagens, alimentam o interesse e a imaginação do leitor, o qual também tenta desvelar o mundo de Cajango, que sorvido pela selva, constitui-se mais bicho que homem.
Ao contar a trajetória – do menino Cajango a homem-mito – Adonias Filho carrega a obra de uma tensão extrema desde o início. Sua concisão verbal é precisa, e a linguagem simples, sem sofisticações: forte e adequada. Nem por isso, deixa de ser rica literariamente, pois utiliza recursos estilísticos, dentre elas a reiteração, muito expressiva como na expressão "aspereza de palha" que aparece várias vezes na terceira parte do livro. Emprega também a metáfora, quando compara, por exemplo, os homens a animais ou plantas: "O gorila [Sangrador] está na frente, o facão na mão pesada. A seguir em sua magreza de umbaúba, o Alto anda." (p.51). Ocorrem pleonasmos com a repetição de termos em frases como "Todos sabem agora que sangue puxa sangue" (p.44) ou em "Longe, nas brenhas das brenhas, é a serra" (p.129) Há de forma bastante freqüente o aspecto da personificação, especialmente, no que se refere à natureza e ao fogo: "as pontas da serra mergulham nas nuvens. (...) os lajedos que parecem querer saltar. As florestas como que se encolhem para o sono nas trevas" (p.91) e "o fogo espera, sem extinguir-se, como alimentado pela curiosidade (...) [Cajango] deita-a, então, no chão de barro onde o fogo ainda devora a lenha". (p.96-97).
A realidade de Cajango é construída o tempo todo por outros. Ele traz o ódio gravado em suas veias, alimentado por todos os anos em que esteve exilado na selva. Como na tragédia grega, ele não possui o controle de sua consciência. O que conhece da vida lhe foi passado por homens dominados pelo ódio. Foi criado para vingar-se. Predestinado a ter seus sentimentos ceifados. De traços humanos, sobrou-lhe muito pouco, em alguns momentos, supõe-se, nada. Mas, esse resquício subjetivo é que desfere o rumo final da sua vida. Através dos mesmos olhos, tão verdes quanto a selva, por onde, escapou-se sua infância e inocência, penetra a paixão, a atração, de modo carnal, mas sublime.
"Único ser no mundo a não temê-lo, aproximando-se, a mulher desfaz a sua cólera. Colocaram-na em seu caminho, sem que a esperasse, incapaz de perguntar-lhe porque matava. Não recua quando a abraça. E, enquanto ela volta a sentir nas mãos a aspereza da palha, ele lhe diz, como se estivesse a falar para si mesmo:
– É pena que só agora esteja a nascer." (ADONIAS FILHO, 1979,98).
E essa paixão, como o romance na íntegra, não poderia ser de outra maneira, senão "divisora de águas":
"Nua dentro da luz. Os cabelos são mais negros, agora, descido sobre os ombros. Empinam-se os seios que sombreiam o ventre. Lisas como o ventre, a mesma pele morena, as coxas úmidas. A vontade é a de diminuir o peso das mãos para não machuca-la e conter o sangue que corre solto em seu próprio corpo. Os braços, porém, já se distenderam. E, nas mãos tomando os seios, aperta-os de leve enquanto os olhos são brasas e as pernas estremecem como se fossem andar. Debruça-se para beijar os ombros, correndo a boca ate o pescoço, sentindo na outra carne a fome da sua carne. Deita-a, então, no chão de barro onde o fogo ainda devora a lenha." (ADONIAS FILHO, 1979,98).
Cajango não estava dividido entre o seu bando e sua descoberta. Ele tinha certeza, que não viveria mais sem a sua vida, Malva. Dane-se o bando, a vingança, o ódio, o que lhe restou da família. Cajango queria viver. Agora ele tinha sua razão, algo pelo qual não lhe ensinaram a lutar, mas pelo qual ele lutaria contra o que fosse preciso. Queria sentir-se vivo. A energia oposta, tão poderosa quanto a que o acompanhou por toda vida – o amor – o despertara. Alta voltagem. Alta tensão. Não era apenas um "corpo vivo". Passou a humano novamente.
O desfecho da trama permite a Cajango um fim isolado da humanidade, porém, feliz. Refugiados, no meio da selva, num retorno à vida, lhes é concedido um paraíso perdido. Inexplorável por outro homem. Em sua selva, poderia viver, amar, iniciar uma nova jornada. Desta vez, sem homens, sem mortos, sem fantasmas, sem ódio. A civilização que ele conhecia não lhe oferecera o que precisava. Estava pleno novamente. Apenas ele e sua mulher.
Deste modo, pode-se concluir que Adonias Filho, não trata apenas da realidade regional. Vai além, para uma perspectiva norteada pelos instintos humanos mais tensos: dor, ódio, brutalidade, medo, angústias, paixão e amor.