CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS EM FACE DO PARADIGMA NEOCONSTITUCIONALISTA¹

Marcos Henrique Sacramento Brito e Mozaniel Vaz da Silva²

 

INTRODUÇÃO

É sabido que o Direito como um todo, tradicionalmente encontra-se envolto em um positivismo exacerbado que impõe aos atos e fatos jurídicos um conjunto de dogmas fechados e impassíveis às intempéries da sociedade moderna. Também é de conhecimento geral o desenrolar do movimento atual de progressiva defasagem do antigo modelo positivista radical, com vistas à implementação de uma nova forma de interpretação e aplicação dos antigos e novos dogmas jurídicos, agora passíveis de um controle axiológico e mais aberto e de uma harmonia com a natureza invariavelmente dogmática do Direito. Entretanto, o que a vasta experiência proporcionada pela doutrina e pela prática permite concluir é que, tal superação do modelo positivista atua não apenas como uma transição natural desencadeada pelo próprio positivismo (como uma espécie de evolução natural, por assim dizer), pelo contrário, tal transição tende a se revelar como um movimento mais dramático: uma verdadeira viragem paradigmática marcada por crises de estrutura e divergências pontuais.

No meio desse turbilhão característico de uma viragem paradigmática encontra-se, como não poderia deixar de ser, o Direito Administrativo que, por sua posição ativa no que se refere aos atos praticados pelos três poderes (principalmente em relação aos atos administrativos praticados pelo poder executivo visando a satisfação do interesse público) envolve-se na vanguarda das modificações trazidas por este novo modelo denominado por neoconstitucionalismo. Dentro deste contexto, a problemática pertinente ao presente estudo debruça-se sobre os atos administrativos discricionários, sua compatibilidade clássica com o modelo jurídico administrativo e as implicações que o neoconstitucionalismo trouxe ao mérito e suas oportunidades assim quanto à contenção do mesmo no que se refere ao controle de natureza judicial de tais atos eivados de discricionariedade. 

1 ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS: SUA NATUREZA E COMPATIBILIDADE COM O MODELO VIGENTE 

A evolução dos homens e da sociedade ao longo dos anos, em seus aspectos físicos, culturais e sociológicos dinamiza e delineia seus aspectos sociais, bem como sua organização política, fazendo surgir assim, uma estrutura complexa que precisa ser regida por um conjunto de normas disciplinadoras, via de regra, legitimadas por uma ordem política legal, que devem ser seguidas para que se estabeleça a organização para o bem público em todos os âmbitos. Assim, um Estado de Direito politizado nasce em conjunto com a necessidade de congruência entre particulares e o Estado, e entre o Estado consigo mesmo a uma ordem jurídica, chamada de Administração Pública, e regida pelo Direito Administrativo, que é viés do Direito Público brasileiro.

O Direito Administrativo, portanto, disciplina as atividades administrativas necessárias à realização dos direitos fundamentais e a organização e o funcionamento das estruturas estatais e não estatais encarregadas de seu desempenho. Por seu cunho objetivo, também denominado funcional, o direito administrativo se conceitua, por exclusão, como atividade relativa à função administrativa, isto é, aquela que não é legislativa ou jurisdicional, mas sim, estendida à função e execução das atividades públicas, atividade concreta e não contenciosa que visa o interesse público. (JUSTEN FILHO, 2014).

Ao assumir e exercer essas variadas funções, o Estado pratica atos da Administração Pública, numa visão mais extensiva: todo ato praticado no exercício da tal função. Sendo composto de forma restritiva por atos administrativos que abrange apenas uma categoria de atos praticados na função pública, se caracterizando como manifestação estatal que se sujeita a um regime jurídico administrativo e produz efeitos de maneira imediata.

Ato administrativo é toda medida editada pelo Estado, por meio de seus representantes, no exercício regular de suas funções, ou por qualquer pessoa que detenha, nas mãos, fração de poder delegada pelo Estado, que tem por finalidade imediata criar, reconhecer, modificar, resguardar ou extinguir situações jurídicas subjetivas, em matéria administrativa.  (CRETELLA JÚNIOR, 2002, p. 152)

Assim os atos que controlam os interesses da coletividade possuem cargas de classificação variadas, de acordo com sua destinação, e são controlados através de instrumentos adequados para evitar a ocorrência de arbitrariedades e lesões aos direitos subjetivos. Dentre as classificações adotadas neste estudo, dentre os atributos que o definem estão a presunção de legitimidade: conformidade daquele ato com a lei, é verossímel até que se prove o contrário, com presunção juris tantum; imperatividade: imposição de tais atos à terceiros, aos administrados, quando os atos são dotados de obrigatoriedade; auto-executoriedade: independem de outros poderes para incidir no mundo dos fatos, apenas partir da administração pública para prática dos atos; tipicidade: ato administrativo corresponde a uma descrição legal, com efeitos previamente definidos pela lei. É uma decorrência do principio da legalidade. Significa que para cada ato há uma finalidade específica a ser perseguida pela Administração Pública.

Quanto à margem de liberdade do Administrador os atos podem ser vinculados ou discricionários. Isto é, os atos vinculados têm como principal característica a legalidade, a mera execução do que está previsto na Lei, o que possibilita pouquíssima liberdade de ação ao legislador. Os atos discricionários, por sua vez, tema principal deste capítulo, é aquele que dá certa liberdade de escolha ao legislador, certo subjetivismo legal, ao contrário dos atos vinculados, numa decisão da melhor solução para a coletividade, dentro do juízo de oportunidade e conveniência, também conhecimentos como atos de mérito administrativo.

O regramento não atinge todos os aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas validas perante o direito. A adoção de uma ou outra solução é feita sobre os critérios de conveniência, oportunidade, justiça, equidade, próprios da autoridade porque não definidos pelo legislador. (DI PIETRO, 2006, p. 222)

A conveniência e oportunidade, parâmetros que medem os atos discricionários possuem uma linha tênue com a arbitrariedade, visto que o ato discricionário não dá margem a liberdade total do administrador, mas o vincula de certa maneira a competência, forma, finalidade e a própria lei, quando omissa em relação a hipóteses de decisão; espécie de conduta a ser adotada quando há competência; ou conveniência quanto á serviços prestados. A discricionariedade, portanto, é inegavelmente alinhada aos princípios jurídicos, sejam eles o princípio da motivação, legalidade, dentre outros.

Quanto a congruência com os princípios se observa

Em razão disso, o ato administrativo discricionário não excepciona o princípio da legalidade. Muito pelo contrário, dele decorre. Somente há margem discrionária porque a norma assim prevê e, não obstante o grau de liberdade maior do administrador, a finalidade (consubstanciar o interesse público) do ato administrativo e a observância aos princípios basilares do direito administrativo devem ser respeitadas. (MEZZOMO, 2014, p. [?])

Assim, a discricionariedade dos atos administrativos se adequa ao ordenamento jurídico vigente de acordo com as mudanças ocorridas no Direito, que perpassa desde o Estado Liberal ao Estado de Direito, no século XIX, cujos atos não sofriam qualquer limitação á discricionariedade, e passaram a obter discricionariedade administrativa analisada também perante o Judiciário, com matérias específicas. Com o advento do Estado Social, reformulou o conceito de discricionariedade para acompanhar as demandas sociais e o fenômeno do constitucionalismo e irradiação dos princípios ao longo de todo ordenamento. Assim a discricionariedade dos atos administrativos é permeada pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, sendo a discricionariedade um filtro passível de controle pelo poder jurídico brasileiro, em adequação ao ordenamento.

O conceito de mérito pode ser considerado sob dois aspectos: sob o aspecto meramente negativo, como limite ao poder de cognição do juiz de mera legitimidade (em sentido estrito) e sob o aspecto positivo, para indicar o pleno e perfeito ajustamento da medida à norma jurídica, ou seja, sua correspondência ao concreto interesse público, segundo um critério de efetiva oportunidade e conveniência. Sob o primeiro aspecto, o conceito de mérito se põe em antítese com o de legitimidade em sentido estrito – adquirindo um e outro um valor meramente processual – enquanto sob o aspecto positivo o conceito de mérito está compreendido no conceito de legalidade – ou legitimidade em sentido lado – da medida, adquirindo (ALESSI, 1949 apud MULATO, 2014, p. 7)

Se observa, ainda, que existem diversos embates doutrinários e práticos acerca da discricionariedade de tais atos administrativos, debates estes que perpassam por inúmeras teses, mas o que se deve observar, ao final, é a congruência dos atos administrativos com as demandas sócias, para que o Estado não se torne apático, assim como o Direito, devendo o administrador considerar além da conveniência e oportunidade outros aspectos aliados à finalidade, como os econômicos e sociais, sendo instrumento da Constituição na busca da satisfação dos direitos sociais, e não apenas estar atrelado a um tecnicismo da ordem do mérito no aspecto apenas legal.

2 A VIRAGEM PARADIGMÁTICA DO NEOCONSTITUCIONALISMO E SUA FACE POSITIVA EM RELAÇÃO AOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS.

Observadas as características dos atos administrativos discricionários abordadas no item antecedente, parte-se, agora, para uma descrição da viragem paradigmática que ocorrera com a chegada do denominado neoconstitucionalismo, e a partir da compreensão dessa viragem, propõe-se uma abordagem conjuntural aos atos administrativos discricionários.

O Direito no Brasil tem passado por perceptíveis modificações no decorrer dos últimos tempos, principalmente no quesito que diz respeito a novas perspectivas nas teorias e nas práticas jurídica; tal proposta de novas perspectivas tem sido denominada de “neoconstitucionalismo” (SARMENTO, 2010).

A viragem paradigmática do neoconstitucionalismo mostra-se fortemente presente no Brasil a partir da vigência da Constituição Federal de 1988; e, segundo Daniel Sarmento (2010, p. 233), as mudanças trazidas por essa viragem podem ter como síntese:

(a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou "estilos" mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; (c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da Filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.

No presente artigo é trabalhada com destaque a perspectiva do neoconstitucionalismo ligada à valorização dos princípios jurídicos aplicados ao Direito, à irradiação das normas e valores constitucionais, à inter-relação entre Direito e Moral; levando à conjuntura de que o neoconstitucionalismo pode ser compreendido como um movimento de mudança paradigmática que propõe realizar a descrição das modificações observadas nos diversificados âmbitos jurídicos, focando-se principalmente no que tange à irradiação das normas Constitucionais aos demais ramos do Direito, fazendo com que haja a incidência destas normas na aplicação e na interpretação do ordenamento jurídico e nos demais atos característicos dos diversos âmbitos do Direito (CORDEIRO, 2011).

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