Resumo

Com a disseminação de conteúdos aleatórios através das redes sociais, faz-se necessário um maior critério de qualidade nas corporações. Se antes uma deficiência de conteúdo, ou fragilidade de processos, podia ficar camuflada através de uma imagem ilusória, atualmente não só os processos são obrigatoriamente mais transparentes, como se impõe a qualidade à imagem de qualquer empresa ou setor. Neste contexto mais do que nunca, os cuidados com a segurança tem de ser priorizados, tornando os processos menos sujeitos a interpretações sociais críticas, desenvolvendo uma cultura perene de contribuição ao bem-estar social. Melhorar índices de segurança pode ser mais desafiador do que se espera, há sempre a contribuição de fatores imprevistos. Neste texto procura-se elencar possíveis entraves a uma postura profissional (e porque não dizer de vida) mais segura. São examinadas as dificuldades presentes no inconsciente dos indivíduos que tornam a segurança ocupacional um desafio tão grandioso. São estabelecidas as relações da má formação do narcisismo primário com deficiências na autopreservação e com base nestas, são elencadas algumas sugestões para proporcionar maior autoconfiança no trabalho e assim compensar a estrutura de um possível narcisismo mal investido.

Introdução

Um conceito central para a psicanálise é a hipótese do desenvolvimento do narcisismo primário(1) como um constituinte natural da psique, o qual segundo Freud seria uma parte natural do desenvolvimento da criança, sendo alimentado pelo investimento afetuoso(libidinal) da mãe ou qualquer outra pessoa que a pudesse substituir. Ao contrário do narcisismo secundário, que implica em um retorno da libido antes depositada em um objeto perdido, o narcisismo primário bem desenvolvido faz com que a pessoa possa ser mais segura de sua existência, situando-se como algo valioso para si e àqueles que o cercam. Tal formulação baseava-se em uma sociedade patriarcal tradicional do início do século XX, onde à mãe cabia a função fundamental de dedicação aos filhos e a casa. Com tal exclusividade a afetividade materna (ou de quem a substituísse) era intensa, alimentando o ego do indivíduo de forma a conduzir a uma autoestima típica de alguém ainda em desenvolvimento. Falho, hesitante em suas investidas pelo mundo, um ser humano necessita do encorajamento típico do amor incondicional materno para se constituir. Freud chegou a cunhar a expressão “sua majestade o bebê” para esta primazia. Posteriormente tal primazia narcísica seria quebrada (complexo de édipo) quando se percebe que a mãe não é exclusiva de si (esvaziamento do chamado complexo de Édipo) conduzindo a uma aceitação das limitações da existência, desenvolvendo aos poucos a conscientização da vida em sociedade. É importante perceber que o desenvolvimento do narcisismo primário está relacionado à própria autopreservação do indivíduo. Segundo Freud: “pode-se considerar que o indivíduo não morre porque se ama, e não porque possui um instinto de autoconservação” (1).

Atualmente quase todos derivam de uma sociedade onde a maternidade, e mesmo a relação parental, vem se diluindo, ora pela exigência material, ora pelo pouco valor da dedicação à família. Cada vez mais mães e familiares vão se distanciando de suas crianças e delegando as atenções a outros, que nem sempre apresentam o mesmo afeto ou dedicação.  Assim o indivíduo deixa de ser “Sua majestade o bebê” na maior parte do tempo, voltando a sê-lo nas poucas horas de que seus familiares dispõem para lhe dar. Muitas vezes tenta-se compensar a falta de tempo com excesso de bajulação, de forma que a criatura, normalmente negligenciada, se vê eventualmente com atenção excessiva. Desta forma teremos a indução a uma espécie transição oscilante entre narcisismo primário mal desenvolvido, constitutivo do ser, e o secundário, de caráter mais patológico, visto que as variações de expectativa não podem ser claramente interpretadas. Este jovem irá se desenvolver procurando ainda se constituir sem saber direito como e com o quê. Esta busca poderá encontrar algo que lhe garanta a atenção necessária de seus pares e logo preencher este vazio(2).

Muitas vezes é esta pessoa que se apresenta para o trabalho, e acaba desenvolvendo um processo de autoconstrução, através do qual o trabalho passa a ser parte de si tanto quanto qualquer membro de seu corpo ou aspecto da vida. Logo o compromisso pessoal se expressa em boa vontade e disponibilidade, no entanto o mesmo sentimento interior pode se transformar em excesso de dedicação, o que necessariamente vem acompanhado de autosacrifício. O risco aparece quando inconscientemente o indivíduo se excede e se expõe excessivamente ao perigo. O trabalho é parte dele e assim será sentido, faz-se então uma complementação do narcisismo através do trabalho e se torna arriscado confundir suas prioridades fazendo de si mesmo um meio de realização na tarefa. Este processo exige uma nova construção, porque se o indivíduo torna-se mais dedicado também vai se tornar mais propenso a se arriscar pelo resultado profissional. Todo este processo é potencializado por atitudes instantâneas e imprevistas de qualquer planejamento, onde o inconsciente deturpado por um baixo autovalor, decorrente do narcisismo mal desenvolvido, entra em ação solicitando uma reação despropositada, irracional e nada previdente. É o objeto fora de controle que o indivíduo tenta desesperadamente controlar, mesmo que além de suas possibilidades.

            Como o narcisismo primário ainda não se constituiu é justo imaginar que o indivíduo ainda não tem a maturidade de perceber as limitações da existência, desta forma ainda se desafia, eventualmente colocando-se em risco de maneira a mostrar uma falsa superpotência. Potencializa assim a tendência de risco, com uma espécie de “desafio à castração”, levando a um comportamento afrontoso desafiador e extremamente arriscado. Assim temos uma tendência a um risco pessoal associado a um desafio constante ao ambiente. Tal construção não passará aparte dos riscos associados ao trabalho. Com o instinto de autopreservação prejudicado, com a valorização excessiva daquilo que o cerca, o trabalhador pode tender a uma postura inconsciente mais próxima à audácia excessiva, submetendo-se por vezes a situações de risco extremo, sem nem sequer percebê-lo.

Sendo o trabalho algo obrigatório à condição de sobrevivência do homem comum, não há como elegê-lo como fonte de prazer direta. Como mencionado por Mendes(3); “Há uma articulação entre um funcionamento perverso da organização e o comportamento de submeter seu desejo a necessidade de produção”. Assim podemos inferir gasto de energia psíquica neste interesse, desta forma o trabalho só pode se imbuir de prazer através do processo de sublimação, segundo o qual a energia libidinal pulsional é direcionada através da mudança de metas e objetos para algo socialmente aceito, no caso o trabalho produtivo(4), ou seja a pessoa tem de fazer um exercício psíquico para transformar o trabalho em algo compensador. Enriquez associa diretamente o reconhecimento no trabalho como alimentador do narcisismo primário(5) . Assim se por um lado o trabalho recebe o impacto das dificuldades de desenvolvimento narcisista, por outro o mesmo pode se constituir em remediação para esta carência. Logo podemos concluir que o bom trabalhador faz de sua função parte de seu orgulho, parte de seu ser. O trabalho se transforma em uma razão nobre para viver em caso de ser visto como um sucesso, ou extremamente frustrante em caso de ser reconhecido como um fracasso. Assim é fundamental dissociar os atos equivocados da pessoa em si, fazendo a sensação de fracasso ser subestimada enfatizando os acertos que normalmente são muito superiores aos erros. Outra maneira de favorecer a vinculação do trabalho como um constituidor positivo é reconhecer o mérito da intenção e não apenas os resultados alcançados, pois sendo o ser humano dotado de racionalidade é de se esperar que a boa vontade conduza a mais acertos do que erros. Infelizmente o senso comum da gestão tende a valorizar mais os poucos erros do que os acertos, o que acaba por potencializar a falsa sensação de fracasso. Sentindo-se fracassado o trabalhador é facilmente vítima de seu narcisismo mal desenvolvido, o que inconscientemente pode acentuar os comportamentos de risco.

Acidentes que Evidenciam Dificuldades de Desenvolvimento Psíquico

De uma maneira geral pode-se suspeitar que situações, envolvendo posicionamento inadequado, possam ter contribuições da desvalorização narcisista. É possível que o mau posicionamento seja resultado de um mecanismo inconsciente, o qual jamais estará acessível a uma abordagem convencional. Assim cursos, treinamentos e alertas podem ser desprezados em função de qualquer pequeno “ganho produtivo”. Desta forma toda preparação coletiva convencional pode estar sendo “sabotada” pelo inconsciente individual. É importante se atentar para isto e desenvolver práticas que combatam a eventual baixa autoestima. Abaixo são elencadas algumas situações reais em que é grande a probabilidade da condição de risco estar associada a um mecanismo inconsciente ligado à má formação do narcisismo primário. Uma situação é a descrição de um alerta de segurança, outras foram pesquisadas no YouTube. E para cada é mencionado o link ao lado do subtítulo.

 

Situação 1 (Alerta de segurança de uma empresa)

Ao içar uma carga ao topo da torre de perfuração com cabos de aço através de uma polia, com ajuda do catline (motor com potência para cargas muito pesadas), o colaborador percebe uma oscilação excessiva do cabo antes da polia. Em ato reflexo (ato falho???) tenta cessar a oscilação segurando o cabo de aço. Sua mão é puxada até a polia onde seus dedos são esmagados.

O que leva a um colaborador a tentar, com a mão, deter um cabo com alta energia, qual é o pressuposto deste inconsciente que leva ao sacrifício da mão para recuperar o “controle perdido”? Senso de onipotência ou desprezo por uma parte de si!? Desafio às limitações da existência? Tudo de maneira muito rápida sem qualquer elaboração consciente. Notável é que na descrição do alerta à atitude é mencionada como sendo “instintiva”, desta forma a percepção é de uma atitude claramente inconsciente e considerada perigosamente como “normal”, visto que, por instinto, jamais qualquer um poderia se aproximar de um cabo energizado. Afinal o instinto comum aos animais é sempre de afastamento do sistema energizado e jamais de aproximação.

 

Situação 2 (https://www.youtube.com/watch?v=NHo2TQEUSio)

Porque dirigir com sono, ganhar algumas horas e colocar em risco uma vida inteira.  O exemplo deixa claro que acidentes no trânsito também podem estar associados ao menor desenvolvimento narcísico primário, seja com desvalor seja pelo desafio às limitações da existência. O tempo como um valor maior que a vida que o gera.

 

Situação 3 (https://www.youtube.com/watch?v=egOltsXTn_s)

O profissional tenta guiar a carga suspensa sobre o caminhão, subitamente a mesma cai e o esmaga. Como falado é impossível não perceber o risco no posicionamento inseguro tão óbvio, então o que o justifica? O ganho para o trabalho é claramente desprezível, o risco é altíssimo; neste caso é claro desafio aos limites da existência.

 

Situação 4 (https://www.youtube.com/watch?v=K3Cw2A4ElJ0)

Diante da possibilidade de queda da empilhadeira a supervisora reage inconscientemente aumentando o risco e se tornando vítima fatal do acidente. Observe o mecanismo de reação contrário ao instinto básico de se afastar de uma condição de perigo, se expondo ao risco e se desvalorizando em relação ao resultado do trabalho.

Em todos estes casos parece que há uma autoestima baixa em relação aos objetivos do trabalho, os interesses externos são tão importantes que valem o auto-sacrifício. Há claramente uma desproporção entre o risco pessoal associado a ganhos “produtivos” insignificantes ou até ausentes. Em um mundo em que a produção é o fim sendo o eu um meio a ser colocado ao seu dispor.

 

Como Melhorar a Contribuição Inconsciente na Segurança

Como mencionado acima haverá sempre gasto de energia psíquica na execução de um trabalho, a própria origem da palavra remete a isto. Segundo Green a pulsão negativa entra em ação toda vez que o sujeito realiza, diante do objeto (neste caso o trabalho), uma desqualificação de sua própria singularidade, de seus próprios atributos (6). Desta forma podemos facilmente inferir que o trabalho será tanto mais custoso para o indivíduo quanto mais alienante for de suas individualidades. Valorizar a pessoa com suas singularidades pode ser essencial para produzir prazer e torna-lo menos custoso.

Dejours indica que a transformação do trabalho em sentimento positivo (sublimação), tem um papel importante na conquista da identidade por meio do reconhecimento social. O trabalho só pode ser recompensador se associado à idéia da de transformação da meta e dos objetos para algo socialmente aceito como o trabalho produtivo. A tarefa tem que ter sentido para o indivíduo tendo em vista sua singularidade(4). Assim o reconhecimento é a contribuição fundamental à sublimação, que se constitui na mudança de algo custoso e cansativo em uma contribuição social recompensante(7). Como pré-requisito à sublimação o mesmo autor estabelece que a mesma só é possível caso às exigências intelectuais, motoras e psicossociais do trabalho estejam de acordo com as capacidades do indivíduo. Desta forma é possível que o construto do trabalho seja fonte de satisfação sublimatória(8). Ferreira e Mendes indicam que o prazer no trabalho necessita de bem-estar físico e nas relações pessoais, gratificação, realização, reconhecimento, liberdade, valorização. Somente com estas condições o trabalho pode se tornar um construtor do ego(9).

Logo podemos postular algumas ações para os supervisores capazes de tornar o trabalho edificador do ego mal construído:

  • Ser capaz de reconhecer os méritos comuns, normalmente não valorizados.
  • Estar aberto a escutar toda sugestão em qualquer origem ou propósito, utilizá-las quando possível. Senão o for, justificar a alternativa valorizando os pontos positivos da sugestão.
  • Comunicar toda a operação e suas finalidades, justificando seu valor.
  • Reconhecer rapidamente toda a contribuição dada.
  • Valorizar todo e qualquer trabalho, de maneira a visualizar o produto do mesmo de maneira holística.
  • Jamais se colocar como um indivíduo superior.
  • Não exigir qualquer benesse ou privilégio em relação aos supervisionados.
  • Preocupar-se atentamente com qualquer dificuldade do trabalhador.
  • Não propor tarefas audaciosas, as quais possam expor os trabalhadores a um conflito entre a tarefa e seu bem-estar.
  • Reduzir o risco de situações humilhantes ou degradantes, analisar cada pedido ao colaborador evitando demandas desnecessárias.
  • Não tolerar nenhum tipo de assédio, sendo implacável no combate ao mesmo.
  • Buscar dinâmicas para valorizar a relação familiar no trabalho, divulgar virtudes e particularidades qualificadoras das pessoas.
  • Valorizar a singularidade, ou o “jeito de ser” de cada um. Valorizar as diferenças reconhecendo o trabalho de cada setor como contribuinte para um todo exitoso.
  • Exaltar resultados do sistema produtivo maior para o qual cada operação contribui.
  • Quando possível, fazer uso da análise pessoal, para refazer associações tentando elevar a autoestima inconsciente.
  • Não se impor exclusivamente pela hierarquia, evitando posturas autoritárias desqualificadoras do outro.

 

O bom supervisor necessariamente não é aquele que tem as melhores ideias e sim aquele que sabe reconhecer e promover os melhores debates. Não que se deva exigir menos, visto que a exigência é essencial à qualidade; porém é primordial que a atividade profissional se justifique por criar valor para os indivíduos e isto deve ser claro em cada momento do trabalho. A estrutura produtiva não prescinde do humano, na verdade só se justifica por ele.

 

1-FREUD, S. Introdução ao Narcisismo [1914]. In: _. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIV.

2-ROUDINESCO, E. A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

3-MENDES, A.M.(Org). Psicodinâmica do trabalho: Teoria, método, pesquisas.1a ed. São Paulo. Casa do Psicólogo, 2007, p 39

4-DEJOURS,C. O fator humano. 1a ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1997

5-ENRIQUEZ, E. Imaginário social recalcamento e repressão nas organizações. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 36/37;53-94,  jan-jun 1974

6-GREEN, A. Narcisismo de vida. Narcisismo de morte . São Paulo: Escuta,1988.

7-DEJOURS,C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho . 5a ed. São Paulo: Cortez-Oboré, 1992.

8-DEJOURS,C. A banalização da injustiça social . Rio de Janeiro, Ed FGV, 2000.

9-Ferreira, M.C. e MENDES,A.M. Trabalho e riscos de adoecimento - o caso dos auditores fiscais da previdência social brasileira . Brasília: FANAFISP, 2003.