Contribuições do Artigo Educação escolar e cultura(s): construindo caminhos

 

               Esse é uma resenha crítica das principais contribuições do artigo “Educação escolar e cultura(s): construindo caminhos”, de Antonio Flavio Barbosa Moreira (Doutorem Educação Universidade Londres- professor da Universidade Católica de Petrópolis) e Vera Maria Candau (doutora em Educação pela Universidade Complutense de Madrid (Espanha) que professora titular do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do RJ).

               Em outras palavras, sustenta que, além da preocupação com a desigualdade econômica, a escola e o currículo precisam levar em conta a pluralidade cultural de nossa sociedade, buscando desafiar as relações de poder que produzem e preservam as diferenças. Discute a centralidade da cultura na sociedade contemporânea, analisa estratégias pedagógicas para lidar com a pluralidade cultural e apresenta pontos a serem incluídos na formação de professores (as) multiculturalmente orientados.

               No âmbito das escolas como de outros espaços de educação não formal, propondo-se a transcender o pluralismo "benigno" de visões correntes de multiculturalismo e a afirmar as vozes e os pontos de vista de minorias étnicas e raciais marginalizadas e de homens e mulheres das camadas populares. Todavia, a despeito das conquistas e das contribuições dessas experiências, ainda não podemos considerar que uma orientação multicultural numa perspectiva emancipatória (Sousa Santos, 2003) costume nortear as práticas curriculares das escolas e esteja presente, de modo significativo, nos cursos que formam os docentes que nelas ensinam.

               Estamos ainda distante do que Connell (1993) denomina de justiça curricular, pautada, a seu ver, por três princípios: (a) os interesses dos menos favorecidos, (b) participação e escolarização comum e (c) a produção histórica da igualdade. Para o autor, o critério da justiça curricular é o grau em que uma estratégia pedagógica produz menos desigualdade no conjunto de relações sociais ao qual o sistema educacional está ligado. Considerando as especificidades e a complexidade do panorama social e cultural deste início de século, sugerimos que a concepção de justiça curricular se amplie e se compreenda como a proporção em que as práticas pedagógicas incitam o questionamento às relações de poder que, no âmbito da sociedade, contribuem para criar e preservar diferenças e desigualdades. Quer-se favorecer, como conseqüência, a redução, na escola e no contexto social democrático, de atos de opressão, preconceito e discriminação.

               Insiste-se na necessidade de uma orientação multicultural, nas escolas e nos currículos, que se assente na tensão dinâmica e complexa entre políticas da igualdade e políticas da diferença. "As versões emancipatórias do multiculturalismo baseiam-se no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além de diferenças de vários tipos" (Santos, 2003, p. 33).

               Tais mudanças nem sempre são compreendidas e vistas como desejáveis e viáveis pelo professorado. Certamente, em muitos casos, a ausência de recursos e de apoio, a formação precária, bem como as desfavoráveis condições de trabalho constitui fortes obstáculos para que as preocupações com a cultura e com a pluralidade cultural, presentes hoje em muitas propostas curriculares oficiais (alternativas ou não), venham a se materializar no cotidiano escolar.

               Nosso propósito é outro: estimular nossos colegas a construírem e desenvolverem novos currículos de forma autônoma, coletiva e criativa. Julgamos ser possível e desejável que as pesquisas realizadas no âmbito das universidades, principalmente as que se desenvolvem sobre e com a escola, possam catalisar experiências que tornem o cotidiano escolar não o espaço da rotina e da repetição, mas o espaço da reflexão, da crítica, da rebeldia, da justiça curricular. Mais uma vez recorrendo a Connell (1993), julgamos que, se os currículos continuarem a produzir e a preservar divisões e diferenças, reforçando a situação de opressão de alguns indivíduos e grupos, todos, mesmo os membros dos grupos privilegiados, acabará por sofrer. A conseqüência poderá ser a degradação da educação oferecida a todos os estudantes.

               As transformações culturais desenvolvem-se também de forma bastante aguda no nível do microcosmo. A expressão "centralidade da cultura", tal como empregada por Hall, refere-se exatamente à forma como a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea, tornando-se elemento-chave no modo como o cotidiano é configurado e modificado. Assim, a cultura não pode ser estudada como variável sem importância, secundária ou dependente em relação ao que faz o mundo se mover, devendo, em vez disso, ser vista como algo fundamental, constitutivo, que determina a forma, o caráter e a vida interior desse movimento. Reiteram-se, podem-se observar pontos já enfatizados por autores como Williams e Thompson.

               A escola é, sem dúvida, uma instituição cultural. Portanto, as relações entre escola e cultura não podem ser concebidas como entre dois pólos independentes, mas sim como universos entrelaçados, como uma teia tecida no cotidiano e com fios e nós profundamente articulados. Se partirmos dessas afirmações, se aceitou a íntima associação entre escola e cultura se vê suas relações como intrinsecamente constitutivas do universo educacional, cabe indagar por que hoje essa constatação parece se revestir de novidade, sendo mesmo vista por vários autores como especialmente desafiadora para as práticas educativas.

               Segundo Gimeno Sacristán (2001, p. 21), A educação contribuiu consideravelmente para fundamentar e para manter a idéia de progresso como processo de marcha ascendente na História; assim, ajudou a sustentar a esperança em alguns indivíduos, em uma sociedade, em um mundo e em um porvir melhores. A fé na educação nutre-se da crença de que esta possa melhorar a qualidade de vida, a racionalidade, o desenvolvimento da sensibilidade, a compreensão entre os seres humanos, o decréscimo da agressividade, o desenvolvimento econômico, ou o domínio da fatalidade e da natureza hostil pelo progresso das ciências e da tecnologia propagadas e incrementadas pela educação. Graças a ela, tornou-se possível acreditar na possibilidade de que o projeto ilustrado pudesse triunfar devido ao desenvolvimento da inteligência, ao exercício da racionalidade, à utilização do conhecimento científico e à geração de uma nova ordem social mais racional. Essa é a utopia que impregnou e impregna ainda hoje a educação escolar. Esse tem sido sinteticamente, seu horizonte de sentido. É esse o modelo cultural que vem perpassando, no meio de tensões e conflitos, o seu cotidiano. Tal modelo seleciona saberes, valores, práticas e outros referentes que considera adequado ao seu desenvolvimento. Assenta-se sobre a idéia da igualdade e do direito de todos e todas à educação e à escola.

               No entanto, numerosos estudos e pesquisas têm evidenciado como essa perspectiva termina por veicular uma visão homogênea e padronizada dos conteúdos e dos sujeitos presentes no processo educacional, assumindo uma visão monocultural da educação e, particularmente, da cultura escolar. Essa nos parece ser uma problemática cada vez mais evidente. O que está em questão, portanto, é a visão monocultural da educação. Os "outros", os "diferentes" - os de origem popular, os afrodescendentes, os pertencentes aos povos originários, os rappers, os funkeiros entre outros, mesmo quando fracassam e são excluídos, ao penetrarem no universo escolar desestabilizam sua lógica e instalam outra realidade sociocultural.

               Questionar a visão monocultural da educação que é apregoada pela escola....O grande canal para a escola é romper com a monocultura da educação e partir para a pluralidade cultural 

Essa nova configuração das escolas se expressa em diferentes manifestações de mal-estar, em tensões e conflitos denunciados tanto por educadores (as) como por estudantes. É o próprio horizonte utópico da escola que entra em questão: os desafios do mundo atual denunciam a fragilidade e a insuficiência dos ideais "modernos" e passam a exigir e suscitar novas interrogações e buscas. A escola, nesse contexto, mais que a transmissora da cultura, da "verdadeira cultura", passa a ser concebida como um espaço de cruzamento, conflitos e diálogo entre diferentes culturas.

               Pérez Gómez (1998) propõe que entendamos hoje a escola como um espaço de "cruzamento de culturas". Tal perspectiva exige que desenvolvamos um novo olhar, uma nova postura, e que sejamos capazes de identificar as diferentes culturas que se entrelaçam no universo escolar, bem como de reinventar a escola, reconhecendo o que a especifica, identifica e distingue de outros espaços de socialização: a "mediação reflexiva" que realiza sobre as interações e o impacto que as diferentes culturas exercem continuamente em seu universo e seus atores

               O que caracteriza o universo escolar é a relação entre as culturas, relação essa atravessada por tensões e conflitos. Isso se acentua quando as culturas crítica, acadêmica, social e institucional, profundamente articuladas, tornam-se hegemônicas e tendem a ser absolutizadas em detrimento da cultura experiencial, que, por sua vez, possui profundas raízes socioculturais.

               Em vez de preservar uma tradição monocultural, a escola está sendo chamado a lidar com a pluralidade de culturas, reconhecerem os diferentes sujeitos sociocultural presente em seu contexto, abrir espaços para a manifestação e valorização das diferenças. É essa, a nosso ver, a questão hoje posta. A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença, e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamado a enfrentar.

               Quanto a diversidade cultural e currículo, os autores afirmam que deve ser uma ação docente multiculturalmente orientada, que enfrente os desafios provocados pela diversidade cultural na sociedade e nas salas de aulas, requer uma postura que supere o "daltonismo cultural" usualmente presente nas escolas, responsável pela desconsideração do "arco-íris de culturas" com que se precisa trabalhar. Requer uma perspectiva que valorize e leve em conta a riqueza decorrente da existência de diferentes culturas no espaço escolar.

               Também se deve reescrever o conhecimento a partir das diferentes raízes étnicas para ter a hibridização cultural e o é essencial é que se situe na prática pedagógica multicultural, além da visão das culturas como interrelacionadas, como mutuamente geradas e influenciadas, e procuremos facilitar a compreensão do mundo pelo olhar do subalternizado. Para o currículo, trata-se de desestabilizar o modo como o outro é mobilizado e representado. "O olhar do poder, suas normas e pressupostos, precisa ser desconstruído" (McCarthy, 1998, p. 156). Trata-se de desafiar a pretensa estabilidade e o caráter aistórico do conhecimento produzido no mundo ocidental, segundo a ótica do dominante, e confrontar diferentes perspectivas, diferentes pontos de vista, diferentes obras literárias, diferentes interpretações dos eventos históricos, de modo a favorecer ao  aluno entender como o conhecimento tem sido escrito de uma dada forma e como pode ser reescrito de outra forma. Trata-se, em última análise, não de substituir um conhecimento por outro, mas sim de propiciar aos estudantes a compreensão das conexões entre as culturas, das relações de poder envolvidas na hierarquização das diferentes manifestações culturais, assim como das diversas leituras que se fazem quando distintos olhares são privilegiados.

               Ancorar socialmente o conteúdo: ver como é que ele surgiu, em que contexto social ele surgiu, quem foi que propôs historicamente esse conceito, quais eram as ideologias dominantes. E aí você vai fazendo isso com todos os conteúdos possíveis dentro do currículo e [...] isso é uma maneira de você nem cair naquele vazio de ficar só tentando entender diversas linguagens, diversas culturas, e também não cair na idéia de que o conteúdo é algo fixo. É uma outra vertente.

               Em síntese, os propósitos, nas duas propostas até aqui apresentadas, parecem ser clarificar de quem é o conhecimento hegemônico no currículo, que representações estão nele incluídas, que identidade se deseja que eles reflitam e construam, assim como explorar formas de desestabilizar e desafiar todas essas hierarquias, escolhas, inclusões, imagens e pontos de vista.

               Uma proposta que caminha no mesmo sentido da ancoragem social e que particularmente nos agrada é a de Willinsky (1998). O autor sugere que nos perguntemos se é possível dividir a realidade humana em culturas, raças, histórias, tradições e sociedades claramente diferentes, e sobrevivermos dignamente às conseqüências dessas classificações. Insiste, então, no questionamento do caráter aparentemente natural, às vezes mesmo científico, dessas divisões. É preciso acrescentar a dinâmica histórica das categorias por meio das quais somos rotulados, identificados, definidos e situados na estrutura social. Esse entendimento será favorecido ao focalizarmos, no currículo, a construção das categorias, ao lutarmos por mudar seus significados e por garantir espaço na escola e na sala de aula para a diversidade.

               Ou seja, Willinsky rejeita a idéia de que existe uma verdade, uma essência ou um núcleo em qualquer categoria. Incentiva-nos a, nas diferentes disciplinas curriculares, tornar evidente e contestar a construção histórica de categorias que nos têm marcado, como raça, nação, sexualidade, masculinidade, feminilidade, idade etc. Com essa estratégia, pretende facilitar a compreensão de como o mundo tem sido dividido.

               Em terceiro lugar, propomos que se expandam os conteúdos curriculares usuais, de modo a neles incluir a crítica dos diferentes artefatos culturais que circundam o(a) aluno(a). A idéia é transformar a escola em um espaço de crítica cultural, de modo que cada professor, como intelectual que é, possa desempenhar o papel de crítico cultural (Sarlo, 1999) e propiciar ao estudante a compreensão de que tudo que passa por "natural" e "inevitável" precisa ser questionado e pode, conseqüentemente, ser transformado. A idéia é favorecer novos patamares que permitam uma renovada e ampliada visão daquilo com que usualmente lidamos de modo acrítico. Nesse sentido, filmes, anúncios, modas, costumes, danças, músicas, revistas, espaços urbanos etc. precisam adentrar as salas de aulas e constituir objetos da atenção e da discussão de docentes e discentes.

               Nossa sugestão não implica ficar limitados aos elementos usualmente secundarizados na hierarquia das culturas. Certamente eles precisam ser tratados e trabalhados nas salas de aula. Contudo, esperamos também que as manifestações culturais mais valorizadas socialmente venham a ser conhecidas, debatidas, criticadas e desconstruídas. Desejamos, além da crítica cultural, a expansão do horizonte cultural do alunoe o maior aproveitamento possível dos recursos culturais da comunidade em que a escola está inserida. Se reconhecermos a inexistência, no mundo contemporâneo, de qualquer "pureza cultural" (McCarthy, 1998), se pretendemos abrir espaço na escola para a complexa interpenetração das culturas e para a pluralidade cultural, garantindo a centralidade da cultura nas práticas pedagógicas, tanto as manifestações culturais hegemônicas como as subalternizadas precisam integrar o currículo, devendo ser confrontadas e desafiadas.

               Uma das questões fundamentais de serem trabalhadas no cotidiano escolar, na perspectiva da promoção de uma educação atenta à diversidade cultural e à diferença, diz respeito ao combate à discriminação e ao preconceito, tão presentes na nossa sociedade e nas nossas escolas. Em recente pesquisa (Candau, 2003) realizada com o objetivo de identificar as diferentes manifestações do preconceito e da discriminação nesses espaços, foram claramente evidenciados os sutis processos de discriminação que permeiam nossas práticas sociais e educacionais em suas diversas dimensões.

               Talvez seja possível afirmar que estamos imersos em uma cultura da discriminação, na qual a demarcação entre "nós" e "os outros" é uma prática social permanente que se manifesta pelo não reconhecimento dos que consideramos não somente diferentes, mas, em muitos casos, "inferiores", por diferentes características identitárias e comportamentos.

]              Muitos dos relatos sobre situações de discriminação mostraram, também, que a escola é palco de manifestações de preconceitos e discriminações de diversos tipos. No entanto, a cultura escolar tende a não reconhecê-los, já que está impregnada por uma representação padronizadora da igualdade - "aqui todos são iguais", todos são tratados da mesma maneira - e marcada por um caráter monocultural. Preconceitos e diferentes formas de discriminação estão presentes no cotidiano escolar e precisam ser problematizados, desvelados, desnaturalizados. Caso contrário, a escola estará a serviço da reprodução de padrões de conduta reforçadores dos processos discriminadores presentes na sociedade.

               Convém salientar que os elementos discriminadores afetam distintas dimensões: o projeto político-pedagógico, o currículo explícito e o oculto, a dinâmica relacional, as atividades em sala de aula, o material didático, as comemorações e festas, a avaliação, a forma de se lidar com as questões de disciplina, a linguagem oral e escrita (as piadas, os apelidos, os provérbios populares etc.), os comportamentos não verbais (olhares, gestos etc.) e os jogos e as brincadeiras. É necessário ressaltar que expressões fortemente arraigadas no sentido comum, que expressam juízos de valor sobre determinados grupos sociais e/ou culturais, assim como as brincadeiras, são âmbitos especialmente sensíveis às manifestações de discriminação no cotidiano escolar.

               A problemática da discriminação é certamente complexa e precisa ser trabalhada com base em uma dimensão multidimensional. No entanto, questionar o "silêncio" que a aprisiona é fundamental. Falar abertamente sobre a discriminação com os(as) alunos(as), para alguns dos(as) professores(as) entrevistados(as), assumia quase um caráter antipedagógico. Outros(as), no entanto, consideraram ser muito importante enfrentar o assunto na sala de aula, precisamente para elucidar o sentido ideológico que o encobre.

               A primeira, ponto de partida para se caminhar na direção de uma educação multicultural e antidiscriminadora, implica reconhecer a existência dessa problemática, não silenciá-la, refletir sobre ela.

               Outra iniciativa proposta pelos professores relacionava-se ao trabalho coletivo:

A cultura escolar e a cultura da escola naturalizam com tanta força esses aspectos, que é somente no diálogo, no questionamento, no debate, que é possível desenvolver um novo olhar sobre o cotidiano escolar.

 

favorecer o desenvolvimento da auto-estima, do respeito e da valorização mútuos.

Construindo uma nova perspectiva para a educação escolar

               As questões relativas às relações entre educação escolar e cultura(s) são complexas e, como procuramos mostrar, afetam diferentes dimensões das dinâmicas educativas. Conseqüentemente, a formulação de um currículo multiculturalmente orientado não envolve unicamente introduzir determinadas práticas ou agregar alguns conteúdos, o que corresponderia apenas a uma abordagem que Banks (1999) intitula de "aditiva". Não basta acrescentar temas, autores, celebrações etc.

               É necessária uma releitura da própria visão de educação. É indispensável desenvolver um novo olhar, uma nova ótica, uma sensibilidade diferente. O caráter monocultural está muito arraigado na educação escolar, parecendo ser inerente a ela. Assim, questionar, desnaturalizar e desestabilizar essa realidade constituem um passo fundamental. Contudo, favorecer o processo de reinventar a cultura escolar não é tarefa fácil. Como afirmam os(as) educadores(as), exige persistência, vontade política, assim como aposta no horizonte de sentido: a construção de uma sociedade e uma educação verdadeiramente democráticas, construídas na articulação entre igualdade e diferença, na perspectiva do multiculturalismo emancipatório.

               Para que se possa avançar nesse processo, o papel dos professores(as) é fundamental. Nesse sentido, a formação docente, tanto a inicial como a continuada, passa a ser um locus prioritário para todos aqueles que queremos promover a inclusão destas questões na educação. No entanto, essa preocupação está ainda muito pouco presente nesses processos, ainda que se venha dilatando o espaço que tem conquistado nas diferentes instituições formadoras.

               Nas experiências que temos desenvolvido, tanto em cursos de licenciatura e pós-graduação quanto em seminários, oficinas e assessorias às escolas públicas e particulares, consideramos que alguns elementos, a seguir apresentados, são fundamentais.

              Um primeiro aspecto é partir de uma visão ampla da problemática, em que se analisem os desafios que uma sociedade globalizada, excludente e multicultural propõe hoje para a educação. O marco contextual é fundamental para que se possa construir o novo olhar que desejamos.

Outra questão importante é favorecer uma reflexão de cada educador sobre a sua própria identidade cultural: como é capaz de descrevê-la, como tem sido construída, que referentes têm sido privilegiados e por meio de que caminhos. Temos desenvolvido várias vezes este exercício com os(as) educadores(as) e, em geral, o processo tem-se revelado muito provocador e instigante. Os níveis de autoconsciência da própria identidade cultural encontram-se, na maior parte das vezes, pouco presente e não costumam constituir objeto de reflexão pessoal.

              Muitos profissionais da educação nos têm afirmado, em diversos momentos, que a primeira vez em que haviam parado para pensar sobre essa temática tinha sido por ocasião dos exercícios propostos, que certamente mobilizaram memórias, emoções e experiências. Em muitos casos, os exercícios fizeram aflorar histórias de vida, fortemente dramáticas, em que as questões culturais geraram muito sofrimento. Os relatos de discriminação e preconceito, reprimidos e silenciados por longo tempo, mostraram-se, então, particularmente fortes. Expressar-se, dizer sua palavra, tem um efeito profundamente libertador, permitindo que a experiência do "outro" se aproxime da nossa.

Também o aprofundamento da temática da formação cultural brasileira se faz imprescindível. Ainda está presente no imaginário coletivo o chamado "mito da democracia racial". Questionar os lugares comuns, as leituras hegemônicas da nossa cultura e de suas características, assim como das relações entre os diferentes grupos sociais e étnicos, constituem outro aspecto que carece discutir e aprofundar.

Na medida das possibilidades, outro ponto a ser trabalhado é a interação com diferentes grupos culturais e étnicos. A intenção é propiciar uma interação reflexiva, que incorpore uma sensibilidade antropológica e estimule a entrada no mundo do "outro".

              Consideramos que todos esses aspectos são importantes, na formação docente, para que melhor se analisem as questões curriculares e a dinâmica interna da escola. O principal propósito é que o docente venha a descobrir outra perspectiva, assentada na centralidade da cultura, no reconhecimento da diferença e na construção da igualdade. Esperamos, assim, formar educadores que atuem como agentes sociais e culturais a serviço da construção de sociedades mais democráticas e justas.