As folhas caídas no chão anunciavam o início de uma estação, o outono. Novos tempos, um novo ciclo se aproximava. Aisha colhia rosas do jardim, as pétalas frágeis seriam usadas para o chá floral, uma receita milenar.

 Após a Segunda Guerra, seus pais deixaram a Síria e se estabeleceram em terras lusitanas. Eles abriram uma pequena confecção de roupas.Vinte anos depois, o patrimônio cresceu e aquela lojinha do centro tornou-se uma das maiores lojas da região no setor de vestuário.

Aisha acabara de completar 22 anos, chegou pequena em Lisboa e desde o início se adaptou bem ao lugar. Embora tivesse uma criação rígida conforme os hábitos muçulmanos, Aisha sempre se portou como uma típica ocidental.

Aos 19 anos se matriculou na Faculdade de Sociologia, dois anos já se envolveria em manifestações políticas, focadas na ideologia leninista. Seus pais nunca aprovaram seu engajamento político, inclusive, a sua decisão de cursar a universidade gerou conflitos familiares. Seus pais, Zoraide e Smail Abu Mussaraf não entendiam as inquietações da moça, acreditavam que os ensinamentos da faculdade tinha um propósito; afastar as famílias e propagar conceitos "impuros" e que desafiam os ensinamentos de Deus.

Aisha, ao contrário, sempre disse que a religião é uma das maledicências do mundo,pois promove discórdia e conflitos." Por que seguir regras com medo da punição divina? Eu me recuso a seguir um dogma" disse em uma das brigas com seus pais.

Depois das agressões verbais, a jovem decidiu ir embora, vou viver com duas amigas num apartamento nos arredores da universidade. Abriu mão do conforto, pagou um preço alto pela independência e pela autonomia em deliberar os rumos de seu destino.

O início foi delicado, embora sempre mantivesse contato com a realidade além da mansão a qual vivia. Desde o primeiro ano de faculdade, Aisha participara de projetos sociais e manifestações típicas daquela época. O ano era 1968, várias manifestações estudantis ,influenciadas pelo levante francês eclodiram pelos cantos do planeta. Uma época na qual os jovens engajavam-se em movimentos comumente contraditórios à ordem política vigente.

Era uma nova fase para a jovem, a partir daquele momento seguiria sua vida desvinculada da proteção familiar. Aisha foi à luta, por três dias procurou emprego até  ser contemplada com a oportunidade de trabalhar no Sindicato de Professores.

Em princípio, pareceu-lhe o trabalho ideal, movimento sindical, lutas de classe, a jovem moura colocaria em prática seus dogmas, com base nos ensinos de Marx. Com o tempo, Aisha percebeu os verdadeiros rumos de uma instituição, em tese, criada a fim de atender os interesses de uma classe e promover, mesmo  que timidamente certa igualdade.

Dotada de demasiada utopia, Aisha não entendia por quais motivos os dirigentes do Sindicato se dispunham a fechar acordos ilícitos, aparados por desvio de verbas governamentais. A jovem percebera ser impossível partilhar princípios igualitários e profundamente éticos numa sociedade a qual o poder tende a modificar a vida das pessoas e desviá-las de interesses iniciais.

Aisha resolveu seguir outros rumos, conheceu um grupo de jovens voluntários que atuava na África. Muitos deles com formação em medicina os quais exerciam trabalho de apoio às vítimas de AIDS na Nigéria. Sua primeira missão fora conseguir mantimentos para a população de uma comunidade carente naquele país, através de campanhas.

De fato conseguiu arrecadar alimentos e remédios, pensou em ligar para os seus pais, a fim de pedir contribuição, porém evitou contatá-los. Não tinha certeza se seria bem aceita, afinal afrontara as tradições e se comportara como uma "ocidental", como disse sua mãe na noite em que partiu.

Quando pisou em solo africano sentiu um relaxamento na alma, embora soubesse dos riscos daquela viagem, não se rendeu às mazelas. A jovem entregou-se a sua missão naquelas terras, pela primeira vez sentia-se verdadeiramente útil e parte de um projeto originalmente humanista.

As primeiras impressões daquele país foram contemplativas, impossível ignorar tal beleza. O sol tem um brilho especial, o clima seco e quente reflete as peculiaridades daquela região, os primeiros exemplares da raça humana vieram deste ignorado e não menos enigmático continente.

Aisha foi ao encontro de seu destino, a missão de sua vida. Numa tarde de domingo entrara numa tribo do sul da Etiópia, o propósito era levar roupas e alimentos para aquelas pessoas.Como boa parte das nações africanas, os conflitos étnicos fazem parte do cotidiano dos civis. Num desses embates,  Aisha fora acidentalmente atingida no peito por uma bala de fuzil.

O corpo suava frio, mal conseguia esboçar palavras e tampouco abrir seus olhos. Aisha sentiu que a morte lhe tomava pelos braços. Teve medo, ansiedade, porém sentiu de leve um cheiro de rosas, aquelas que plantara na casa de seus país. Aisha se foi com um leve sorriso no rosto.  

A bela moça de traços expressivos, como poucos, tinha uma imensa capacidade de amar o próximo. Em seu túmulo foram jogadas rosas africanas e no discurso final, centenas de menções carinhosas foram dedicadas por aquele povo sofrido.Parte dessas pétalas foram enviadas para Lisboa em direção à residência dos Mussaraf.

Seus pais permaneceram por meses reclusos e em silêncio, talvez mergulhados em mágoas e arrependimentos. Zoraide e Smail Abu Mussaraf fizeram doações significativas para os projetos dos jovens voluntários na África.