INTRODUÇÃO

            Em um primeiro momento, é importante destacar que a Delação Premiada é uma espécie do gênero Colaboração Premiada. Portanto, ao contrário do que muitos autores afirmam, esses termos não são sinônimos, caso sejam analisados tecnicamente, haja vista que a Colaboração poderá ocorrer sem que venha subsidiada por uma delação dos eventuais coautores ou partícipes do crime investigado. 

            A Delação Premiada não é um instituto novo, existindo em nosso ordenamento jurídico há um bom tempo. Todavia, somente recentemente vem sendo abordado profundamente pela doutrina, assim como vem sendo mais utilizada como mecanismo de investigação pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público. 

            A razão pela qual este instituto está com sua utilização difundida pelos órgãos responsáveis pela persecução penal reside na dificuldade em se fiscalizar os crimes econômicos (crimes do colarinho branco) que estão atualmente em destaque por deflagração de operações policiais de investigação, sobretudo a operação “Lava Jato”.

Isso porque, os crimes econômicos demandam uma maior sofisticação em sua execução, exigindo conhecimento político, técnico e organizacional dos agentes envolvidos, os quais, muitas vezes, são dotados de influência política e social relevante, o que se torna um obstáculo à investigação pelos meios convencionais. 

            A Delação Premiada pode ser conceituada como um mecanismo da Justiça Negociada, a qual, no Brasil, observa os critérios legais, visando à obtenção de provas de infrações penais de difícil elucidação, assim como a apuração dos demais coautores e participes das infrações penais, através da colaboração voluntária de um investigado ou réu, com o suporte do Ministério Público ou da Polícia Judiciária, a ser homologado judicialmente, e que, em caso de eficácia – constatada após a instrução criminal – poderá garantir benefícios penais e/ou processuais para o agente colaborador.  

            No nosso ordenamento jurídico podemos encontrar regramentos diversos sobre a Colaboração Premiada, como na Lei de Drogas (n° 11.343/06, art. 33, §4°), na Lei de Lavagem de Capitais (n° 9.613/98, art. 1°, §5°), na Lei de Proteção a Vítimas e as Testemunhas (Lei n° 9.807/98, arts. 13 e 14) e na Lei de Organização Criminosa (n° 12.850/13, arts. 4° a 6°). Entretanto, é nesta última lei que a Colaboração Premiada é mais bem detalhada, razão pela qual esta terá aplicação subsidiária para as demais leis aqui citadas. 

            Na mesma toada, analisaremos o instituto do Acordo de Leniência, suas diferenças e semelhanças com a Delação Premiada, assim como quem poderá se beneficiar dos seus termos na prática. Por ora, nos incumbe esclarecer que os institutos são mecanismos de colaboração com as investigações que versem sobre atos ilícitos. 

            Enquanto que a Delação Premiada objetiva a colaboração probatória da pessoa física envolvida em infrações penais, o Acordo de Leniência vai servir para ajudar nas investigações que versem sobre infrações civis ou administrativas, como, por exemplo, um cometimento de uma Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92).

            Insta ressaltar que a corrupção generalizada em nosso país foi a causa raiz para a elaboração de diversas normas que versem sobre a investigação, processamento e formas de cooperação com a justiça em crime organizados, haja vista que os meios convencionais da persecução penal se mostraram pouco eficazes nesse combate.             

            Logo, será demonstrado ao longo deste trabalho que os objetivos de ressarcimento aos danos causados à Administração Pública, assim como o comprometimento com o fornecimento de material probatório esclarecedores das infrações são pontos comuns aos dois institutos, entretanto estes não se confundem.  

2 DA NATUREZA JURÍDICA DA DELAÇÃO PREMIADA

 

            Após esta breve introdução, cabe deixar bem cristalina a natureza jurídica da Delação Premiada diante do ordenamento jurídico que nos cerca. 

            Em um primeiro momento, cabe destacar que a própria Lei 12.850/13, a qual tutela as investigações e processos referentes às organizações criminosas, traz expressamente a natureza jurídica desse instituto no seu art. 3°, I, aduzindo que se trata de um meio de obtenção da prova[1].

            Diante da previsão legislativa quanto à natureza jurídica da Delação Premiada, Gustavo Badaró, visando descomplicar os termos técnicos utilizados na doutrina nacional, aduz que:

“enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (ex. depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de prova (ex. busca e preensão) são instrumentos para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (ex. extrato bancário encontrado em busca e apreensão domiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos”.[2]

            

Mostra-se relevante destacar também que o acordo de colaboração não se confunde com o depoimento pessoal do réu colaborador. Enquanto este é um meio direto de prova, capaz de por si só fundamentar uma decisão judicial, aquele tem natureza jurídica de meio de obtenção de prova, servindo apenas como meio indireto de convencimento, necessitando ser corroborado por outros elementos de prova diferentes da Delação Premiada.

            Por ultimo, insta ressaltar a existência de corrente que trata a Colaboração Premiada como um meio de defesa, com base na autodeterminação do réu ou investigado, o qual é visto como ente capaz de escolher o melhor método defensivo, haja vista que o acordo de colaboração premiada poderá ser mais vantajoso para o sujeito do que uma eventual sentença condenatória. 

            Tais doutrinadores normalmente mostram-se adeptos ao sistema de Justiça Negociada, entendendo que esse modelo não ofende o devido processo legal, assim como não se trata de uma não observância dos axiomas garantistas processuais. 

[1]Art. 3o Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova: I - colaboração premiada;

[2]Processo Penal. Rio de Janeiro. Campus: Elsevier. 2012,  p. 270.

SISTEMAS ESTRUTURAIS DO PROCESSO, PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ E COLABORAÇÃO PREMIADA

 

            Neste tópico, o objetivo é distinguir os sistemas estruturais do processo (acusatório, misto e inquisitivo) dos sistemas que regem a atuação do juiz no processo penal (adversarial system inquisitorial system), fazendo-se um contraponto com o instituto da Colaboração Premiada. 

            No sistema acusatório, as funções de julgar, acusar (pública ou privada) e de defender são exercidas por diferentes pessoas, ou seja, não ficam concentradas na competência de um único sujeito processual (actum trium personarum). O juiz deve ser imparcial e tem a incumbência de fundamentar as suas decisões, de acordo com os elementos trazidos aos autos, além de zelar sempre pela manutenção do estado de igualdade entre as partes.[1]

            No Brasil, conforme a maioria da doutrina, o processo tem a estrutura acusatória, haja vista o estabelecido no Código de Processo Penal vigente e a nossa Constituição da República de 1988, apesar de termos ainda vestígios de procedimentos inquisitórios na persecução penal, como, por exemplo, o curso do inquérito policial. 

            No sistema inquisitivo não se vislumbra separação dos atores processuais, restando apenas ao juiz a acumulação da função judicante, defensiva e acusatória. Aqui, a figura do acusado é vista como mero objeto alvo de investigações, sem qualquer autonomia defensiva. O sigilo é inerente a esse modelo processual, assim como a predominância da forma escrita dos seus atos. 

            Por último, cabe informar sobre a existência de um sistema misto processual, na qual são reunidas características dos dois sistemas supracitados. O sistema misto é caracterizado por uma fase preliminar inquisitiva e outra fase processual, respeitando o contraditório e os demais princípios do sistema acusatório. Por esta razão é que alguns doutrinadores preferem defender que o sistema brasileiro é o misto, e não o acusatório, como trazido anteriormente. 

            Sem adentrar no mérito da discussão supracitada, percebe-se que, no que diz respeito às Delações Premiadas, o juiz não poderá adentrar no mérito dos acordos formulados entre Ministério Publico ou Delegado de Polícia com o investigado ou réu colaborador e seu defensor, conforme previsão legal.[2]

            Nesse ponto, percebe-se que o melhor cenário para a instalação do instituto da Delação Premiada é o sistema acusatório, haja vista que ao juiz incube a análise formal e neutra do acordo de Deleção Premiada formulado pelas partes da persecução penal, a fim de homologar e, assim, dar efetividade ao contrato, sem que se deixe contaminar pelo conteúdo da colaboração.

            Quanto aos poderes instrutórios do juiz, percebemos a prevalência de dois modos de atuação judicante no processo. O primeiro é o adversarial system, o qual visa a neutralidade e a imparcialidade do juiz no processo. Segundo esse sistema processual, Pedro Henrique Demercian sustenta que “é plasmado sobre a premissa de que a verdade é mais facilmente descoberta quando há duas partes em litígio e cada uma delas conduz a própria investigação, apresentando diferentes teorias sobre a lei e sobre o caso concreto ao tribunal” (2016, pág. 68). 

            Percebe-se, no direito norte-americano, a predominância na utilização desse sistema processual, o que sempre gerou muitas críticas pelos doutrinadores mais garantistas, haja vista a concreta disparidade de armas entre a investigação acusatória – tutelada por todo aparato estatal – e a investigação defensiva. Esse cenário facilita e semeia a existência da justiça negociada, sobretudo da Delação Premiada como mecanismo de obtenção de prova na persecução penal. 

            Por outro lado, no inquisitorial system, a Delação Premiada não encontra um terreno fértil para florescer. Isso porque, nesse sistema o juiz detém mais poderes instrutórios, podendo conduzir o processo da forma mais conveniente a alcançar a verdade real – ou, verdade possível, como prefere a doutrina mais moderna. Desse modo, o órgão acusatório perde uma parcela significativa do seu poder de barganha, o que dificulta a aceitação do réu ou acusado para colaborar com a investigação. 

            Demercian conclui, citando Malcolm Feeley (The adversary system, cit., p. 763), que o sistema adversarial está longe de ser abolido, aduzindo que: “É ele, como se verá adiante, o que melhor propicia as variadas formas de plea negotiation, nas quais se espera do juiz grande dose de neutralidade e inércia. Esse fato é relevantíssimo, especialmente quando se sabe que cerca de 90% a 95% das condenações no sistema norte-americano provêm da Justiça Negociada.[3]

            Nota-se que, no Brasil, se adota predominantemente o inquisitorial system, haja vista que o magistrado, com base no seu livre convencimento motivado, não ficará adstrito apenas as provas trazidas aos autos, podendo complementar a sua convicção com provas que entenda pertinentes para apuração dos fatos, não ficando de braços cruzados assistindo o embate das partes.

 

[1]Nesse sentido: Demercian, Pedro Henrique. A colaboração premiada e a leis das organizações criminosas. São Paulo. Revista Jurídica ESMP-SP, V.9, 2016: 53-88. Pág. 66.

[2]Art. 4o, § 6o  O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

[3]Nesse sentido: Demercian, Pedro Henrique. A Colaboração Premiada e a Lei de Organizações Criminosas, p. 69.