Conjecturas de um espírito


Eu não acreditava que isso pudesse acontecer... E não é que aconteceu? Por que será que eu fiquei? Eu sempre ouvi falar que isso ou aquilo era o fim do mundo, mas como o planeta é redondo, não tem começo nem fim, não dei bola. Também falavam um ditado que dizia: não ficou nem um pra contar a história; mas não é que eu fiquei? Então vamolá: no princípio era o mundo; o mundo era feio e vazio mas foi nascendo gente, um aqui e outro acolá, foi nascendo, nascendo, mas nasceu tanto que não havia mais lugar nem comida que desse conta. Aí inventaram a troca; se trocava bicho por bicho, rancho por rancho, comida por comida, água por água. O tempo correu, correu, e inventaram o dinheiro. Começaram a vender pedaço de terra, a vender fruta, a vender carne dos bichos. Aí começou a nascer mais mulher do que homem; foi o mal. Tinha briga de todo jeito, muita briga por mulher, por dinheiro, briga até por um buraco pra morar e depois por barraco. Depois foi mudando, foi tudo evoluindo, os que tinham mais dinheiro engoliam os que não tinham, inventaram coisas enormes, cidades, casas, palácios, pontes, edifícios, avião, tudo que era bom e que só tinha quem pudesse ter. Muita mulher, foi nascendo mais e mais gente; gente forte e sabida. O tempo correu mais e chegou a evolução onde só tinha lugar pros fortes. Aí as pessoas fracas foram ficando cansadas e mais fracas, sem dinheiro, doentes, e as doenças foram se espalhando. Tudo aconteceu devagar, muito devagar, desde quando aprenderam a contar o tempo, por séculos e milênios. O planeta virou um mundão de gente, gente diferente, de fala diferente, que aprendeu a viajar pelo chão, pelo mar e depois pelo céu, espalhando uma doença de nome esquisito, que fizeram tudo pra acabar com ela. Ela chegou no ano de 2019. Uns acreditavam que ia acabar, e eu também acreditei, brinquei, zombei, fiz pouco. Vi que aos poucos todos foram indo embora do planeta, mas eu fui ficando. Fiquei sozinho! O troço levou todo mundo mas não me quis; acho que esse troço tinha um plano pra mim: ficar pra contar a história. Sou escritor... Mas contar pra quem, agora que está tudo enterradinho no mundo inteiro e eu aqui sozinho nesse lugar esquisito, sem lápis, sem papel, sem computador, vou escrever o que, se só tem vento, sol, chuva e escuridão? Não sei mais onde é a minha casa. Estarei perdendo a memória? E quem sou eu que estou aqui falando pro vento, esse vento zombeteiro assobiando, me gozando, levando as minhas palavras no meio desse lugar que chamam de campo santo? Parece que esqueci meu nome!
Ah! Acho que entendi. Eu também fui sim, eu não era nenhum boneco... o troço só pegava em gente; e eu sou gente; aliás, era gente! Agora só sei que estou aqui, falando, falando... contando pro vento a história do mundo onde um dia eu nasci, vivi e também morri.
E não é que o mundo se acabou mesmo? Não existe mais mundo, não existe mais gente... E como eu era escritor, gostaria de matar o tempo aqui fazendo o meu trabalho. Mas como, e pra quem ler? Ò céus, quando eu voltarei a ser eu? 

Junia - 01.4.21