Conhecimento e compreensão

         Em tempos obtusos quando o tema é convivência, a tecnologia termina por suprir determinadas carências, ainda que comprometendo importantes vínculos que sustentam relações entre pessoas de gerações diferentes que naturalmente precisam viver em comunidade. Tudo começa em casa. Ora, a partir dessa máxima que tem assumido cada vez mais um papel de grande importância quando se discute onde nascem todos os conflitos, cabe aos agentes da relação social: pais e filhos, não se pode cobrar apenas dos pais que se equivocam, porque, muitas vezes, esses já são produto de lições não cristalizadas quando da sua formação infância/juventude.

       Seria o caso de se atribuir a responsabilidade pelo quadro atual aos pais dos pais de hoje? Teria sido uma sucessão de equívocos que envolveram, senão essa, mas gerações recém -passadas? Afinal, cabe a pergunta: onde se aprende a ser pai? Retomando os eixos de contos que nos levam a lições de vida passadas por personagens de contos e fábulas, cabe a reflexão sobre o discurso de um pai e o exemplo de um companheiro adolescente. Claro que são abordagens que são recebidas de forma adversa e, muitas vezes, compreendidas com grandes vácuos entre o que se diz e o que se entende.

      Conta-se que em um determinado ambiente de estudos, um professor pergunta inesperadamente a um aluno, “quantos rins, nós temos”. Ouvida pela turma a pergunta tem um sentido natural, considerando que o professor ministrava um conteúdo da área de Ciências. O aluno inquirido, talvez no intuito de trazer à baila as várias interpretações que aquela pergunta permitia, respondeu: “quatro, professor”. Silêncio na turma, o professor, do alto do seu espaço e “detentor” do conhecimento, soltou uma gostosa gargalhada e, voltando-se para uma aluna disse sarcasticamente: “Vá à copa e me traga uma xícara de café para mim e,  passe pelo jardim de me traga uma porção de capim, pois temos um ‘burro’ na turma”.  O aluno, sentindo-se agredido, levantou-se e disse: “Professor, o senhor perguntou a mim, QUANTOS RINS NÓS TEMOS. Naquele instante, ficou bem claro que o diálogo era entre mim e o senhor. Na Língua Portuguesa, o pronome pessoal NÓS representa o plural. Assim, se cada um de nós tem dois rins, o total será quatro. Não vou me abater, nem me curvar já que somos protagonistas de um mesmo processo, agentes de uma mesma produção. O café dê à aluna que o pegou e do capim, o senhor faça bom uso, se é que quem se alimenta de capim é o burro, palavras do senhor.

      Nem sempre o conhecimento nos assegura ações coerentes com resultados positivos. O conhecimento é ferramenta e, como tal, precisa ser manipulada com sabedoria e compreensão do que se plantou ao que se pretende colher. No caso das relações entre pais e filhos, crianças e adultos, professor e aluno, pastor e ovelha, idoso e cuidador, treinador e atleta, intelectual e ignorante, pobre e rico, forte e fraco, bem criado e mal criado, com família e sem família precisam ser fundamentadas em fatos que tragam a compreensão como mola mestra de todo o processo. São olhares diferentes, perspectivas opostas, possiblidades conflitantes, mecanismos fragilizados, pessoas emocionalmente fragilizadas na manutenção de valores históricos que foram distorcidos ao longo do tempo.

       Analisando os motivos que levaram o professor a estranhar a resposta do aluno, pontos distintos precisam ser analisados: primeiro, o professor não teria tido a intenção de “debochar” da “insana” resposta. Insana enquanto vista como absurda para o nível da turma; ele quisera demonstrar para todos que apesar de todas as evidências e das aulas dadas, ainda existiam alunos considerados “alheios” ao contexto de aprendizado. Já é em casa, quantas vezes, pais se colocam diante dos filhos e não havendo compreensão da mensagem transmitida a reação da criança é de revolta e os pais pelo olhar de autoridade se acham no direito de reprimir o filho, muitas vezes, sem lhe dá chances de explicações? Tanto o filho, quanto o pai trazem em si seus problemas, suas angústias, suas mágoas, seus medos, resultados de suas relações. O estopim foi lançado, o gatilho foi acionado, o diálogo, pode até acontecer, mas a compreensão já nasceu comprometida, as consequências previsíveis são desfavoráveis e todos. Esse é o grande desafio do homem dos nossos dias: compreender como o conhecimento precisa ser utilizado em favor do bem-estar humano como um todo e não como uma arma para novos levantes.

       Há de se refletir: será que qualquer criança daquela ou de outra sala de aula teria tido essa reação de esclarecer, por meio de uma segura argumentação, o porquê de sua resposta frente ao contexto em que a pergunta fora produzida? Considerando a facilidade com que as linguagens atuais, como as que povoam as redes sociais se aproximam da vulgarização de interpretação, levando os seus agentes a brincarem com a forma em que foram produzidas frases e quais as reais intenções de quem as formulou, o mais comum era que esse “incidente” tomasse um rumo diferente: ao ser chamado de burro o aluno poderia defender-se vitimizando-se por se sentir inferior, de pouca importância, motivo de gozação dos colegas.

      E se, em vez dessas possibilidades, o aluno abrisse referência à discussão de bulliying, preconceito, abuso de autoridade, o ambiente escolar acabara de se tornar inóspito e nada favorável ao aprendizado, ao respeito, ao reconhecimento do valor que cada agente tem, de fato, no processo. Por outro lado, na verdade, quem é a criança que está diante da tarefa que lhe é imposta pelas leis vigentes que estudar, adquirir conhecimentos, aprender a ser para que os fins se justifiquem pelas ações do meio em que cada um vive, estuda, aprende, estuda e corresponde aos ensinamentos recebidos dos seus pais. Pela criação depreende-se o resultado: pela firmeza do “criador”, colhem-se as atitudes do “criado”; pelos métodos utilizados na criação percebe-se, de fato, qual o tipo de discípulo foi forjado, que criança foi colocada na escola para aprender a aprender. Conhecimento é ferramenta, compreensão é sentimento, é comportamento, é acolhimento, é reconhecimento, é competência.

     O capim que o professor pedira para  associar a falta de “conhecimento” do aluno, poderia vir a ser facilmente comparado a um bom livro com excelentes lições para que aquele aprendiz se atualizasse no conteúdo trabalhado no momento; ou quem sabe, uma alusão a um medicamento natural para o tratamento homeopático dos rins e suas funções, ou ainda uma oportunidade para descontrair a turma, tirando-a dos habituais recursos utilizados como foram de motivar a pesquisa, o estudo, o saber.

       Mas retornando ao perfil do novo aluno, que é egresso de um lar onde não houve tempo para se discutir, limites e riscos quando esses são ignorados, esse aluno se fecharia em si mesmo, recuava do seu direito de justificar a sua resposta e, sem saída, ficaria exposto à zombaria, fragilizado pelo fato de não ter sido compreendido, haveria de contabilizar em seu ainda pequeno currículo, uma decepção, um prejuízo, um fracasso. Para o ser humano, uma frustração; para o aluno, um retrocesso; para a sociedade, um risco. “Não me compare com outra criança, isso não ajuda a construir a minha autoestima, deixa eu cometer erros, não me humilhe, nem me machuque, errar faz parte do meu aprendizado”. Nesse apelo, uma criança pede, opina, declara que precisa ser respeitada, que lhe sejam permitidas as oportunidades que a vida pode trazer, e que podem ser interpretadas a partir da segurança que essa criança venha a ter diante do desafio. Quando ela pede para “errar” é declarando que precisa aprender errando é para que alguém lhe oriente, corrija, ensine, mostre por meio de exemplos como é a vida e os seus caminhos, declarando inclusive, os riscos de caminhos não retos, não pautados em valores que a própria sociedade há de cobrar.

   Retomando os termos representados pelos valores: compreensão e conhecimento, qual dos dois é de responsabilidade dos pais e qual desses, deve ser do filho?  No jogo da verdade, os dois segmentos precisam ter domínio dos dois termos, cada um respeitando o seu limite. O conhecimento precisa ser o instrumento de motivação para que pais alcancem seus filhos; a compreensão é o ritmo, o tom, o nível da discussão, a seleção de palavras, a objetividade dos fatos. Com isso, o conhecimento será introduzido no diálogo, na apresentação de propostas seguras.

      Mas para que tanto o conhecimento  quanto a compreensão alcancem os seus objetivos urge que a criança já tenha se apropriado de tais elementos, nas proporções de sua capacidade: conhecendo os seus direitos e limites e compreensão de que é amada e respeitada nos seus direitos e deveres de criança que precisa aprender para crescer segura e conhecedora do seu reconhecido valor de protagonista de um processo rico em respeito e abertura para que se discutam todos e quaisquer assuntos relativos à dignidade inerente ao ser humano que porque conhece, compreende a vida.

  • Sebastião Maciel Costa