Conhecendo o apóstolo (3- Missionário)

É sabido por todos que manuseiam a bíblia que Paulo aparece nas escrituras como perseguidor do cristianismo. Aparece como um forte adversário que, podemos dizer, perseguiu os seguidores de Jesus numa atitude de quem busca um sentido para sua fé judaica. Sua autenticidade o obriga a fazer uma perseguição desenfreada que, na realidade, não passava da procura de uma resposta para sua vida. Uma resposta que se manifesta na própria pessoa de Jesus que se apresenta a ele no caminho para Damasco (At 9,3-5).

E assim com a mesma intensidade com que perseguiu/buscou, passou a dedicar-se ao anuncio por meio das pregações e dos escritos. Sobre essa intensidade da busca, assim se expressou uma jovem, num encontro de estudo sobre os escritos paulinos: “Paulo é sempre muito intenso, naquilo que faz. Como inimigo do cristianismo foi radical ao ponto de matar aqueles a quem perseguia; como apóstolo anunciou o nome do senhor ao ponto de dar a vida por ele.”

 

a- encontro redefinidor

O fato é que a busca de Paulo termina na forma de um encontro redefinidor de vida: esse encontro definiu a vida de Paulo e a vida da igreja.

O encontro no caminho foi o ponto de partida para uma nova missão. Até ali, a missão de Paulo havia sido perseguir os cristãos. A partir dali e após um breve período de interação com os cristãos de Damasco, sua missão passa a ser a difusão e expansão da mensagem cristã.

Após recuperar a visão e as forças, permaneceu em Damasco entre os discípulos, iniciando suas pregações, preparando-se para aquilo a quê Jesus o enviava: “Saulo passou alguns dias com os discípulos que havia em Damasco e logo começou a pregar nas sinagogas, afirmando que Jesus é o Filho de Deus. Os ouvintes ficavam perplexos e comentavam: ‘Não é este o homem que, em Jerusalém, perseguia com violência os que invocavam esse Nome? E não veio aqui, exatamente, para prendê-los e levá-los aos sumos sacerdotes?’ Mas Saulo se fortalecia cada vez mais e deixava confusos os judeus que moravam em Damasco, demonstrando que Jesus é o Cristo” At 9,19-22.

O encontro, no caminho, também define o destino da Igreja, pois Paulo inicia sua nova missão que consistia em anunciar o evangelho “às nações pagãs e aos reis, e também aos israelitas” (At 9,15). Inicialmente pregando em Jerusalém, depois em virtude dos perigos e ameaças, da mesma forma que havia ocorrido em Damasco, foge para outras cidades, passando a pregar noutras localidades. “A partir desse dia, ficou com eles, indo e vindo por Jerusalém e confessando corajosamente o nome do Senhor. Dirigia-se também aos helenistas e discutia com eles, mas estes planeavam a sua morte” (At 9,28-29). Esse foi, efetivamente, o inicio do seu apostolado entre os estrangeiros. Ou seja o inicio da Igreja como obra universal. A catolicidade da Igreja, agora não mais apenas uma seita ou mais um grupo do judaismo, começa com a pregação de Paulo aos gentios. “Os irmãos, porém, ao saberem disto, levaram-no para Cesareia e fizeram-no seguir para Tarso. Entretanto, a Igreja gozava de paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, crescia como um edifício e caminhava no temor do Senhor e, com a assistência do Espírito Santo, ia aumentando” (At 9,30-31).

 

b- Ai de mim

Em que consistiu a nova missão de Paulo, imposta pelo Senhor? Agir em duas frentes: primeiramente dedicou-se a pregar às comunidades, animando-as e corrigindo os rumos; em segundo lugar passou a redigir orientações para as comunidades, animando-as e corrigindo os rumos. Ou seja, nas duas frentes de ação paulina ocorreu um trabalho de pregação, animação e correção. Esse foi o projeto evangelizador desenvolvido pelo apóstolo. Uma incumbência que lhe foi imposta, como ele afirma na primeira carta aos coríntios: “anunciar o evangelho não é para mim motivo de glória. É antes uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o evangelho! Se eu o fizesse por iniciativa minha, teria direito a uma recompensa. Mas se o faço por imposição, trata-se de uma incumbência a mim confiada. Então, qual é a minha recompensa? Ela está no fato de eu anunciar o evangelho gratuitamente, sem fazer uso do direito que o evangelho me confere” (1 Cor 9,16-18).

Nessas palavras Paulo apresenta algumas das características do seu apostolado: é uma necessidade e não motivo de glória; é uma incumbência que lhe foi confiada; ação desenvolvida gratuitamente; renúncia de direitos.

Entretanto, o centro desse discurso é a imposição da missão. Não uma imposição por parte de Jesus, mas da própria consciência do apóstolo. Por isso exclama: “ai de mim se não evangelizar”. Essa consciência da necessidade do anúncio é que o mobiliza para a ação missionária. Daí a gratuidade. Nessa exclamação, também se pode perceber uma espécie de ponto de intersecção entre o resultado do encontro no caminho (At 9,3-5) e a atitude de Isaías (6,1-8). Foi o encontro que gerou a consciência da missão e por isso o apóstolo exclama: “ai de mim”, não como receio de uma punição, mas a partir do imperativo da consciência.

Por seu lado, em Isaías, o profeta de lábios impuros tem os pecados perdoados quando o anjo toca seus lábios. Aqui não é a consciência da missão que gera a exclamação, mas a consciência do pecado. É o perdão que gera a predisposição para a missão.

Então disse: ‘Ai de mim, estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, que habita no meio de um povo de lábios impuros, e vi com os meus olhos o Rei, Senhor do universo!’ Um dos serafins voou na minha direção; trazia na mão uma brasa viva, que tinha tomado do altar com uma tenaz. Tocou na minha boca e disse: ‘Repara bem, isto tocou os teus lábios; foi afastada a tua culpa e apagado o teu pecado!’ Então, ouvi a voz do Senhor que dizia: ‘Quem enviarei? Quem será o nosso mensageiro?’ Então eu disse: ‘Eis-me aqui, envia-me.’” (Is 6,5-8).

Em ambos os casos, o grito de “ai de mim...” manifesta a consciência de uma situação que pede uma resposta. O grito é uma preparação e prontidão para a missão: Paulo se propõe a sair no caminho da evangelização; Isaías percebe-se impuro, mas se oferece para ser enviado. São situações diversas do grito que se ouve em Jeremias (Jr 10,19) “Ai de mim, estou ferida! É grave este meu ferimento! A mim só me resta dizer: ‘É meu ferimento, hei de aguentá-lo!’”. Aqui estamos diante de um lamento, da mesma forma que em 15,10 “Ai de mim, ó minha mãe! Tu me geraste homem de protesto e de contestação por todo o país. Nada devo a ninguém, ninguém me deve nada e todos falam mal de mim.” Os aís, em Jeremias, representam a percepção do abandono: o povo abandonou o Senhor e a consequência é ser pelo Senhor abandonado. O lamento, portanto, aqui representa o medo da ausência.

Assim, enquanto em Jeremias o olhar está no passado, nos caminhos que afastaram do Senhor. Daí o lamento e o sofrimento pela ausência. Por seu lado Isaías e Paulo olham para o futuro. De seu passado e presente pecaminoso e distante do Senhor, permanece o anseio pelo encontro e no encontro a consciência da missão. Trata-se de assumir um novo projeto de vida.

Mesmo na limitação o apóstolo e o profeta estão a serviço da missão; em Jeremias o povo escolhido rejeita a presença divina. “Os pastores se apalermaram, deixaram de procurar o Senhor. É por isso que estão incapazes de governar e o rebanho que conduziam já se dispersou. Ei! Está chegando um barulho! Grande agitação vem da terra do norte! Vão reduzir os povoados de Judá a lugar arrasado, esconderijo de chacais” (Jr 10,21-22).

 

c- missão: riscos e dores

Ao contrário disso, Paulo, ao assumir a missão, assume, também os riscos e as dores. Mas, nem por isso abandona a missão e a pregação. Sabe que seu sofrimento é salutar para a Igreja, como o afirma aos colossenses : “Alegro-me nos sofrimentos que tenho suportado por vós e completo, na minha carne, o que falta às tribulações de Cristo em favor do seu Corpo que é a Igreja. Dela eu me fiz ministro, exercendo a função que Deus me confiou a vosso respeito: a de fazer chegar até vós a palavra de Deus”. (Cl 1,24-25).

O preço de se ter feito anunciador da nova mensagem foi uma enorme lista de castigos, e sofrimentos. Tudo suportado em nome Daquele para quem Paulo devota sua vida. O seu viver e sofrer passa a ser Cristo. Em Seu nome é que, frente à comunidade de Corinto, faz uma lista de dores superadas:“Cinco vezes recebi dos Judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado com vergastadas, uma vez apedrejado, três vezes naufraguei, e passei uma noite e um dia no alto mar. Viagens a pé sem conta, perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte dos meus irmãos de raça, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos da parte dos falsos irmãos! Trabalhos e duras fadigas, muitas noites sem dormir, fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez!” (2 Cor 11, 24-27).

Tudo isso em nome do Senhor. E, mais ainda, o apóstolo sabe que seu sofrimento, também é ocasião de incentivo à pregação. A consciência da missão o leva a momentos felizes, junto aos irmãos, mas também o levam à prisão. Mesmo sua situação de prisioneiro acaba sendo fermento missionário, como explica aos filipenses: “Irmãos, faço questão de que saibais o seguinte: o que me aconteceu tem antes contribuído para o progresso do Evangelho. Com efeito, em todo o pretório e em toda a parte, se ficou sabendo que eu estou na prisão por causa de Cristo. E a maioria dos irmãos, encorajada no Senhor pela minha prisão, redobra de audácia, proclamando sem medo a Palavra.” (Fl 1,12-14).

Retomando o que dissemos no início: a ação missionária de Paulo teve uma dimensão de pregação e uma dimensão de orientação às comunidades, por meio dos seus escritos.

 

d- o centro da pregação

Qual é, então, o centro da pregação paulina? Ele nos responde na carta aos coríntios. Sua pregação consiste em repetir o Querigma, ou o centro do credo: anuncio da paixão, morte e ressurreição do Senhor. Podemos dizer que desse núcleo da fé, mais tarde, foi elaborada nossa oração do “creio”. Eis o que o apóstolo afirma, a respeito de sua pregação:

Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei, que vós recebestes, no qual permaneceis firmes e pelo qual sereis salvos, se o guardardes tal como eu vo-lo anunciei; de outro modo, teríeis acreditado em vão. Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto. É que eu sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado Apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou e a graça que me foi concedida, não foi estéril. Pelo contrário, tenho trabalhado mais do que todos eles: não eu, mas a graça de Deus que está comigo. Portanto, tanto eu como eles, assim é que pregamos e assim também acreditastes” (1 Cor 15,1-11).

Mas ele não só anuncia esse elemento central da fé. Após anunciar o mistério da Paixão/Morte/Ressurreição, o apóstolo faz seus comentários. Dá as devidas explicações. Desenvolve a catequese. E esse ensino vem logo após o anuncio do credo. Ou seja todo o restante desse capítulo 15 (1 Cor 15,12-58) são as explicações do apóstolo em relação àquilo que acaba de pregar. E para essa catequese utiliza não só a tradição rabínica, na qual foi formado, mas também o estilo de argumentação aprendidos na filosofia grega.

Em relação às suas orientações. Cada comunidade recebia suas orientações mediante suas cartas. E que orientações eram essas? Orientava em relação aos problemas ou progressos que havia em cada comunidade. Aos filipenses disse: “Só isto é necessário: comportai-vos em comunidade de um modo digno do Evangelho de Cristo, para que – quer eu vá ter convosco, quer esteja ausente – ouça dizer isto de vós: que permaneceis firmes num só espírito, lutando juntos, numa só alma, pela fé no Evangelho” (Fl 1,27).

Por outro lado, as orientações podiam ser severas, caso a comunidade não estivesse trilhando o reto caminho. Podemos perceber isso neste pequeno trecho da primeira carta aos coríntios: “Peço-vos, irmãos, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que estejais todos de acordo e que não haja divisões entre vós; permanecei unidos num mesmo espírito e num mesmo pensamento. Pois, meus irmãos, fui informado pelos da casa de Cloé, que há discórdias entre vós. Refiro-me ao facto de cada um dizer: ‘Eu sou de Paulo’, ou ‘Eu sou de Apolo’, ou ‘Eu sou de Cefas’, ou ‘Eu sou de Cristo’. Estará Cristo dividido? Porventura Paulo foi crucificado por vós? Ou fostes baptizados em nome de Paulo? Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum de vós, a não ser Crispo e Gaio, para que ninguém diga que fostes baptizados em meu nome” (1 Cor, 1,10-17).

Assim o apóstolo, ao chamar a atenção em relação aos comportamentos da comunidade, reitera sua missão: não é batizar, mas pregar o evangelho: “Na verdade, Cristo não me enviou a baptizar, mas a pregar o Evangelho, e sem recorrer à sabedoria da linguagem, para não esvaziar da sua eficácia a cruz de Cristo.(1 Cor, 1,17).

Em síntese, pregar o evangelho, corrigir os rumos, orientar as comunidades e animá-las foi a missão assumida pelo apóstolo que Jesus escolheu especialmente para isso. Um personagem que, por ser autentico, e de sua fé, encontrou aquele por quem tanto procurou. Cometeu erros, mas tinha a séria e sincera vontade de encontrar o Senhor.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO