Conheça a história de um caipira que passou em concurso para Juiz.
Por Milton Biagioni Furquim | 23/07/2024 | CrônicasConheça a história de um caipira que passou em concurso para Juiz.
Outro dia, um estudante de Direito, após assistir a uma audiência de instrução e julgamento, confidenciou-me que seu desejo é prestar concurso para Juiz de Direito. Ele me fez a clássica pergunta: o que eu fiz para passar no concurso e o que ele teria que fazer para ser bem-sucedido. Respondi-lhe que não o aconselhava a prestar concurso para Juiz, pois hoje já não vale mais a pena por uma série de circunstâncias, a não ser que o desejo fosse um projeto de vida. Prometi que lhe escreveria contando como me preparei para o concurso. Hoje, com esse dia chuvoso e preguiçoso, estou escrevendo para contar-lhe um pouco da minha história de vida.
Infância na Roça
Nasci na roça e, de seis irmãos, sou o mais velho (que saco, como gostaria de ter sido o caçula). Não renego minha origem de ter nascido na roça, ter pisado em bosta de vaca, tirado leite, pegado no cabo de enxada, pisado descalço nos orvalhos porque sequer tinha uma alpargata para calçar, tudo isso ainda criança. Meus pais, roceiros, caipiras, moravam na roça, mas me puseram para estudar na escola da cidade. Naquela época, não havia escola na zona rural, então tive que ir morar com minha avó Elisa (poxa, que vó eu tive, sempre me acudia das agressões irracionais de meu pai).
Discriminação e Superação
Como eu era da roça, pobre, caipira por excelência, alto, magro, banguelo, desajeitado, tímido, mas asseado e limpo (pois a mamãe era muito zelosa), sempre fui vítima de discriminação. A discriminação e humilhação que eu sofria na época hoje é chamada de bullying. Sempre fui motivo de chacota dos ‘engomadinhos’, dos filhos de ‘papais’. Na escola, vivia me escondendo, procurava não chamar a atenção dos ‘mauricinhos e patricinhas’, mas não tinha jeito, eu sempre era o preferido nas gozações. Minha vontade era não ir à escola, não suportava as humilhações, mas o papai não permitia. Se por qualquer motivo faltava à escola, lá vinha ‘porrada’ do papai. Era a forma de diálogo preferida por ele.
Trabalho e Estudos
Quando saía da escola, eu ia vender sorvetes e engraxar sapatos pelas ruas da paróquia para, com o lucro – alguns centavos, poder comprar materiais escolares, gibis, livretos de bolso. A pobreza doía, mas não doía tanto quanto ser humilhado pelos colegas de escola aquinhoados pela confortável situação financeira de seus pais, ao deparar-me pelas ruas vendendo sorvetes e engraxando sapatos.
Meus pais, de tanto trabalhar na lavoura, conseguiram amealhar algumas economias e comprar um bar na cidade, o único que existia. Com isso, tive que voltar a morar com eles e, agora, no bar, fazer sorvetes e ajudar no balcão. Não tinha hora para dormir e, se necessário, ficava até madrugada (eu com 10, 11 anos) por conta dos boêmios que ali ficavam embebedando-se. Com os boêmios, tive que aprender a gostar das músicas sertanejas, dos boleros, enfim, das músicas que retratavam a ‘dor de cotovelos’ dos apaixonados.
Educação e Determinação
Assim terminei o primário (1ª a 4ª série), apanhando de meu pai, às vezes chego a pensar que era por conta de sua úlcera, pois era o diálogo preferido por ele, e sendo motivo de, ora indiferença, ora de chacota dos colegas. Concluí que ser pobre, apesar do desconforto e da carência de tudo, pior é a discriminação e a humilhação por parte daqueles que se achavam no direito de ditar as regras para os infortunados como eu.
Com o término do primário, como na paróquia não tinha o ginasial, imaginei que estava livre da escola, das humilhações, das gozações, mas ledo engano. Então o papai me obrigou, na porrada, é claro, a continuar o estudo, a fazer o ginasial (5ª a 8ª série) em Camanducaia, município vizinho. Fiquei passado com a determinação dele. Estudar em Camanducaia? Até então nunca tinha saído da província e não conhecia Camanducaia que dista apenas 9 km. Mas para isso eu teria que continuar ajudando no balcão e vendendo sorvetes pelas ruas, pois agora teria que pagar a condução e o material escolar.
Superação e Sucesso
Lá continuei com o meu calvário de sofrimento, de humilhação, de discriminação, enfim, ainda ninguém sabia o que era o tal de bullying. Comecei a cursar a 5ª série com direito a todo tipo de discriminação, de humilhação, de gozação, até porque a paróquia sempre foi motivo de piada dos camanducaienses por pertencer a ela e, então, eu era o crucificado. Que sina a minha. Não deu outra, comecei a faltar às aulas e a consequência foi ser reprovado em matemática. Dá para imaginar a sessão de tortura que sofri do papai. Pelo menos pensei, agora ele não me obrigaria a continuar o ginasial. Que engano, ele me obrigou a continuar estudando.
Conclusão
Hoje, às vésperas de minha aposentadoria, sou Juiz de Direito em Monte Sião, isso após ter sido em Guaranésia, minha primeira Comarca, onde aprendi a ser Juiz com a ajuda dos meus amigos e familiares serventuários da Justiça. Você, que queria saber, está lendo nesse exato instante parte da minha história de vida e gostei muito de compartilhá-la com você. É lógico que cada um tem a sua história de vida. Eu a minha que você está lendo, você a sua, que desconheço. Quando for enfrentar algum desafio em sua vida, lembre-se de que para chegar ao seu porto seguro terá que apanhar muito da vida, talvez não tenha que apanhar do papai, como apanhei tanto, mas uns ‘esporros’ é sempre bom, e saiba que nem eu e nem ninguém é melhor do que você. Trata-se apenas de ter disciplina e dedicação. É preciso que seja perseverante. Insistente. ‘Marrentu’. Ter objetivo. Sonhar e torná-lo realidade. Vá em frente. Deixe o seu sonho tomar conta de você e despertá-lo para a vida! Busque concretizá-lo. Se eu consegui, após tudo que passei, após apanhar tanto do papai e da vida, após ser gozado, humilhado, você também pode!
Monte Sião (Reino Encantado), 15/11/11.
Milton Biagioni Furquim