Conforme a sua fé
Por Bernard Gontier | 20/02/2009 | CrônicasConforme a sua fé
O Tribunal de Assuntos Infantis, da Segunda Vara do MP, abriu ontem às 9 em ponto. A fila tinha o comprimento de sempre. O meirinho entrevista a todos, por ordem de chegada e qualifica a triagem.
- O sr.? – indaga o meirinho.
- Eu quero ganhar na loteria.
- Quando o sr. jogou?
- Jogarei amanhã.
- Perfeito. O próximo.
- Gostaria que mudassem o nome da minha rua.
- Como se chama a sua rua?
- João das Couves – explica ela.
- Por qual nome a sra. gostaria que trocassem?
- Alfredo – suspirou ela.
- Perfeito. O próximo.
- Quero que no metro tenha TV de plasma de 44 polegadas, e que sirvam petit-fours e chocolate quente nas estações.
- Com açúcar ou adoçante?
- Ambos.
- Perfeito. O próximo.
- Gostaria de fazer 6 aniversários por ano.
- Quais datas?
- Tanto faz, desde que haja um intervalo de 5 dias entre uma e outra. Fico muito cansado depois de um aniversário.
- Perfeito. O próximo.
- Quero mudar o futuro.
- O seu, ou o da humanidade?
- O meu – diz o homem de cabelos grisalhos,
terno de flanela cinza e gravata preta.
O meirinho coçou a testa com o lápis, e olhou para o teto com expressão vaga.
- Realizamos pequenas coisas nesta repartição – explica ele – e não nos arvoramos quando acham que fazemos o impossível. Para nós é indiferente. Ocorre... – fecha os olhos por um segundo, enche os pulmões de ar e torna ao assunto - existem algumas solicitações que carecem de justificativas. Na verdade são bem poucas. Dá para contar nos dedos. A que o sr. me pede é uma delas. É possível justificar agora, verbalmente, ou trazer por escrito. O que o sr. prefere? De qualquer modo, preciso consultar a tabela.
Dito isso abre uma gaveta e franze o cenho ao afastar a folha de papel pardo, até a distância mais conveniente para sua leitura. Depois corre a folha duas vezes com o indicador e lança um olhar penetrante no homem.
- Consta aqui uma graduação clara. O que o sr. entende por futuro? O dia de amanhã? Mês que vem? Daqui há um ano? Cinco anos?
O homem pensou um instante e disse:
- Não entendo. À entrada da repartição está escrito “conforme a sua fé”. Assim, estou na repartição certa, de acordo?
O meirinho assentiu.
- Mesmo estando no lugar certo, é necessário especificar. O sr. faz idéia da extensão do futuro?
- É a primeira vez que venho a este lugar – volve o querelante, um centímetro mais impositivo – Já tinha ouvido falar. Vi o que se passou com as pessoas que estavam na fila, antes de mim. Pedidos de toda sorte, infantis, ingênuos, como ganhar na loteria, etc. O que o impede de aceitar a minha solicitação?
O meirinho sorriu.
- A mim? Nada. Estamos aqui para servir. Veja, leve o formulário para casa, preencha-o com esmero e traga-o de volta.
- Será aceito? – indagou o homem – haverá algum impedimento?
- De nossa parte nada. Nenhum. Já lhe disse que não nos vangloriamos pelos feitos. Não somos nós que fazemos acontecer. Nós...como dizer, apenas facilitamos. Quem determina é a sua consciência.