Resumo

 

Este artigo teve como objetivo analisar os conflitos entre professores e estudantes, refletindo sobre a importância da investigação em representações sociais para compreender os mecanismos que estruturam este tipo de interação. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e bibliográfica. Discute os cenários de individualismo e de fragmentação dos valores coletivos da modernidade líquida e seus efeitos sobre os modelos de controle social desenvolvidos nas escolas. Conclui que os conflitos interpessoais encontram em contexto escola um ambiente muito favorável para se proliferar e que a pesquisa em representações sociais pode ser uma relevante estratégia para compreender como estes fenômenos se estruturam.

 

palavras chave: Educação, modernidade liquida, conflitos, representações sociais.

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

Este artigo teve como objetivo analisar os conflitos entre professores e estudantes, refletindo sobre a importância da investigação em representações sociais para compreender os mecanismos que estruturam este tipo de interação. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e bibliográfica. Discute os cenários de individualismo e de fragmentação dos valores coletivos da modernidade líquida e seus efeitos sobre os modelos de controle social desenvolvidos nas escolas.

A partir da segunda metade do século XX, mudanças radicais na concepção de homem, de sociedade e de verdade, levaram o sociólogo Zygmunt Bauman (2001) a falar de um momento novo na história ocidental, que ele batizou de modernidade líquida. Neste contexto de transformações, uma das instituições mais típicas do mundo moderno entra em crise: a escola.

A escola moderna se estruturou a partir de um projeto emancipador, de inspiração iluminista, voltado para formar um certo tipo de pessoa, ao mesmo tempo, livre e bem ajustada socialmente. Segundo Bauman (2001) na modernidade líquida existe uma dinâmica bastante diferente, posto que não há mais um modelo de ser humano definido para formar. Ao contrário, a escola se depara com a tarefa historicamente nova de socializar as novas gerações em um contexto marcado pela diversidade de referências. Um processo complexo, tensivo e conflitivo. Não existe mais uma resposta universal sobre o que seja educar, ou qual seja o papel da escola, dos professores ou dos estudantes. Este cenário de incerteza, tende a potencializar os conflitos interpessoais.

Segundo Neves (2009) os conflitos constituem formas de interações que se estabelecem a partir das diferenças entre pessoas, grupos, instituições, nações, etc., portanto, não podem ser extintos. Nas suas múltiplas manifestações, assumem dinâmicas destrutivas ou construtivas, a depender de como sejam resolvidos. A escola, enquanto espaço de convívio, reúne um grande número de jovens, oriundos de diferentes contextos, constituindo palco perfeito para os conflitos proliferarem. Por outro lado, as escolas que se desenvolveram na modernidade eram verdadeiras máquinas de vigiar e punir (Foucault, 2003). Nesta perspectiva, os espaços para a diferença sempre foram muito frágeis e os conflitos eram percebidos como fenômenos negativos, que deveriam ser combatidos. A escola do século XXI atravessa, portanto, o desafio histórico de aprender a dialogar com a diferença e a administrar os conflitos que, inevitavelmente, irão acontecer no seu cotidiano. Neste contexto, a pesquisa em representações sociais pode ser um importante aliado.

 

  1. Educação e modernidade líquida 

 

Bauman (2001) batizou de modernidade líquida o contexto histórico que se inicia na segunda metade do século XX, e que se caracteriza pela fragmentação da ordem coletiva, gerando um processo de descentramento, quando pontos de referência da modernidade são dissolvidos.

 

O “derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política. Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro (Bauman, 2001, p. 12).

 

Para Bauman (2001) a modernidade entrou numa fase aguda de privatização e individualização, que produziu uma cisão entre a construção individual da vida e a construção política da sociedade. O fenômeno mais aparente dessa desvinculação é o processo de desregulamentação política, social e econômica que se manifesta na expansão livre dos mercados mundiais, no desengajamento coletivo e esvaziamento do espaço público. Dentro deste contexto, os indivíduos não possuem mais padrões coesos de referências, nem códigos universais sociais e culturais, que lhes possibilitem, ao mesmo tempo, construir sua vida e se inserir dentro das condições de classe e cidadania. Os indivíduos não possuem mais lugares pré-estabelecidos no mundo. Precisam lutar “livremente” e, através dos seus esforços pessoais, conseguirem, ou não, se estabelecer num mundo cada dia mais afunilado econômica e socialmente.

Na primeira fase da modernidade, denominada por Bauman (2001) de modernidade sólida, o poder operava através da disciplina da fábrica fordista, na torre de controle panóptica, ou na administração pública. Nos cenários líquidos, o poder é extraterritorial, não visa mais impor padrões de ordenamento rígidos, mas dissemina, em todos os lugares do planeta, à ação da globalização econômica do mercado capitalista. Na modernidade sólida os indivíduos comuns, a massa de pessoas eram submetidos a um Estado ordenador total. Havia uma certa liberdade de construir suas vidas individualmente, contudo, as referências sociais possuíam contornos muito bem definidos e ultrapassar suas fronteiras era uma possibilidade para poucos. Na modernidade líquida, os indivíduos são “condenados” a serem livres.

Com o enfraquecimento da ordem coletiva, questões como nacionalidade, família, gênero, religião, perderam sua capacidade de regular a vida social, condenando o indivíduo a ter que construir sua identidade a partir dos seus próprios critérios subjetivos. Esses cenários de incerteza e essa condição de ter que ser livre e de conviver com a liberdade do outro, produzem um ambiente bastante favorável para os conflitos proliferarem. No caso específico do Brasil, aliado a este contexto líquido, existe a desigualdade social extrema, a fragilidade da justiça, o autoritarismo e a descrença generalizada no diálogo, aliado a inexistência de qualquer ideologia que legitime essa situação. O resultado é potencializar enormemente os conflitos, que, frequentemente, assumem dimensões de violência fatal.

Atualmente o Brasil é o país que, em números absolutos, produz a maior estatística de homicídios do mundo, com médias anuais que superam a casa dos 50 mil (Waiselfisz, 2013). Por outro lado, segundo o Conselho Nacional do Ministério Público (2013) cerca de 50% dessas mortes tiveram por causa conflitos considerados fúteis, como ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violência doméstica, desentendimento no trânsito, dentre outras. Esses números confirmam que a violência fatal no Brasil decorre, principalmente, de uma cultura onde o desrespeito ao outro é regra e matar tornou-se uma possibilidade banal.

             Esse cenário conflituoso, onde os indivíduos são condenados a conviver com as diferenças, exige um tipo de educação que efetivamente seja capaz de mediar as relações que aí se estabelecem. Os modelos de escolas que se desenvolveram na primeira fase da modernidade, contudo, não foram criadas para gerenciar pluralidades, mas para produzir homogeneizações. Dentro desta visada, suas estratégias de controle sempre foram unilaterais, sendo frágeis os espaços para o diálogo nas situações de conflitos. A escola moderna, como afirma Foucault (2003) é uma máquina de vigiar e punir.

Segundo relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI, um dos maiores desafios das escolas é aprender a gerenciar conflitos e a conviver com à pluralidade (Delors, 2001). Tognetta e Vinha (2011) chamam a atenção para um estudo realizado na região metropolitana de Campinas/SP, entre professores da Educação Infantil e Ensino Fundamental, sobre as maiores dificuldades que eles encontravam no cotidiano escolar. Segundo as autoras, as respostas encontradas não difere de muitas investigações feitas pelo mundo: “(...) o problema maior da escola está na qualidade das relações que se estabelecem nesta instituição entre as pessoas que ali convivem. São os conflitos” (p. 11).

 

  1. Interação conflituosa na sala de aula

 

            Conflito é uma palavra que não representa um aspecto específico da realidade, mas determinados tipos de relações, sendo impossível definir contornos definitivos para definir seu significado. A origem etimológica do termo vem do latim conflictu (choque, embate, antagonismo, oposição) e do verbo confligere, que significa lutar. No dicionário Aurélio, conflito é definido como: embate, choque, luta, oposição, disputa.

Os conflitos sociais, portanto, são gerados a partir da contraposição de ideias ou de condutas. Podem se estabelecer no nível macro ou no nível micro das relações intrapessoais. No nível macro, os conflitos resultam de condições já dadas, como os padrões de organização de uma instituição. No nível micro, se relacionam com a dimensão relacional, enfatizando a produção de significados moralmente divergentes. Destacarei aqui quatro perspectivas consideradas fundamentais para abordar o tema.

A primeira, assentada na obra de Hobbes (1997), O Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de uma Comunidade Eclesiástica e Civil, anuncia um modelo de sociedade contratual, em oposição à natural, para evitar a destruição dos homens. Segundo o autor, a presença de um soberano impediria que os conflitos entre os homens gerasse um estado de guerra, que findaria com a destruição da sociedade. Os conflitos, nesta perspectiva, se opõem a ordem e deveriam ser evitados.

A segunda perspectiva, de orientação funcionalista, assentada principalmente nas ideias de Durkheim (1995) situa os conflitos como anomalias, que causam o mau funcionamento da sociedade. Nessa perspectiva, os conflitos são entendidos como fenômenos negativos, que devem ser eliminados para permitir a coesão social.

Na terceira, de orientação marxista, os conflitos são considerados produtos das contradições estruturais da sociedade. Contudo, Marx (1982) acreditava que os conflitos possuíam um papel decisivo na transformação social, atuando como “motor da história”. Dentro dessa perspectiva, os conflitos acabariam quando a sociedade superasse as contradições, o que aconteceria, segundo o autor, no comunismo.

A quarta, que corresponde à orientação deste estudo, considera que os conflitos são inevitáveis no convívio humano. Isto porque não existe sociedade totalmente homogênea, logo, o dissenso, em diferentes níveis e implicações, é inevitável. A diferença é, ao mesmo tempo, base da vida social e fonte permanente de tensão e conflitos. Um importante pensador dessa abordagem é Georg Simmel.

Simmel (1983) considerava o conflito uma forma de sociabilidade, posto que cria uma unidade através da interação entre os oponentes. Segundo o autor, o conflito é projetado para resolver dualismos divergentes, de modo a alcançar algum tipo de unidade, ainda que por aniquilação de uma das partes. O conflito resolve uma tensão entre contrastes, portanto, é uma força integrativa no grupo. Os conflitos podem gerar o desenvolvimento de regras de conduta e meios de expressão das divergências e das oposições, imprimindo um limite para a violência. Dito de outra forma, produzem espaços para o comportamento socializado no próprio embate. O conflito torna-se violento quando uma das partes é impedida de agir, seja pela imposição do silêncio, pelo seu esmagamento ou destruição da sua capacidade de lutar.

Os conflitos, portanto, não podem ser extintos, mas mediados. Em toda sociedade existem códigos que mediam as relações conflituosas, oferecendo caminhos para que os mesmos sejam resolvidos. As situações de disputas, as crises, as desavenças, envolvendo diferentes questões, como religiosas, econômicas, conjugais, políticas, pedagógica, dentre outras, são inevitáveis. Na Antiguidade Clássica e no mundo Medieval, os códigos de controle eram mais frouxos, sendo amplamente possível a utilização da violência física como recurso para resolver as disputas. Foi apenas com o surgimento do Estado moderno na segunda metade do século XV, que a regulação dos conflitos passa a ser mais efetiva e o uso legítimo da força física passa a ser um monopólio do Estado (Elias, 1993).

Em determinados países como Nova Zelândia, Noruega, Holanda, Austrália, Inglaterra, Suécia, França, Canadá, dentre outros, em função de um longo percurso de lutas e negociações, que possibilitaram a criação efetiva de um Estado de Direito, se fortaleceu a crença na importância da mediação legal e a violência física deixou de constituir uma possibilidade socialmente valorizada.

No caso específico do Brasil, em função da extrema desigualdade social, nunca se consolidou efetivamente um Estado de Direito e as leis nunca foram iguais para todos. O resultado foi que, em lugar da pacificação dos costumes, o que existiu, ao longo de toda história, foi a persistência de crenças que cultivam a violência como alternativa amplamente valorizada para solucionar conflitos e impor a ordem (DaMatta, 1982; Velho, 2000; Zaluar, 1999; Machado & Noronha, 2008).

A histórica descrença da sociedade brasileira nos mecanismos mediadores de conflitos, nos cenários da modernidade líquida, encontra um ambiente particularmente propício para se disseminar, por conta do individualismo e da pulverização dos valores coletivos. Assim, a falta de respeito pelo outro e pelas regras de convívio aumentam, proliferando a criminalidade e a violência.

Concomitantemente, as políticas de segurança pública no Brasil apostam no poder da coerção e do encarceramento, sendo muito pouco feito no nível preventivo ou na aplicação de penas alternativas (SOARES, 2006).  Nas escolas, em geral, a lógica é parecida, predominando modelos punitivos, sendo frágeis os espaços para o diálogo. Lima (2015) chama a atenção para as estratégias de resolução de conflitos escolar, marcadas pelo autoritarismo e pela intolerância. Segundo o autor, a crença na importância das punições é bastante disseminada entre gestores e professores, sendo a principal estratégia de controle social. Esta tendência revela-se ineficiente, seja porque fomenta uma percepção negativa dos educadores, gerando mais conflitos, seja porque os alunos não mais temem os castigos.

Carita (1995), a partir de estudos realizados em escolas portuguesas, chama a atenção para a representação de “ordem”, entre os professores, como um elemento potencializador dos conflitos. Segundo a autora, esta lógica se articula com a percepção da escola, em especial a sala de aula, como espaço de produção e de trabalho. Isso levaria os docentes a situarem seu papel como fiscais da ordem, que precisam assegurar a produtividade da sua turma: “(...) a dimensão sócioafetiva da dinâmica relacional permanece altamente limitada e o «encontro pessoal» é praticamente impossível” (p 88).  Cárita (1995) também fala da representação negativa que os professores fazem dos alunos, percebidos como os causadores dos conflitos e da crença bastante disseminada na importância das punições.

Vinha e Tognetta (2009) discutindo o desenvolvimento moral das crianças, lembram que impor regras arbitrárias, que não fazem sentido para os jovens, é o caminho para a desobediência. As autoras chamam a atenção para a importância da escola desenvolver estratégias de controle participativas, que promovam autonomia e não heteronomia entre os estudantes. Afirmam que é comum os professores desenvolverem uma percepção negativa dos conflitos, acreditando ser possível haver um convívio totalmente harmônico na escola.

                As interações entre professores e alunos se estabelecem sempre atravessadas por algum nível de conflito, independente do conteúdo ou do método de ensino. Porém, em um contexto marcado pela desreferencialização, quando não existe mais uma grande verdade consensual, mas múltiplas verdades, o poder normativo das regras enfraquece e a autoridade do professor, inevitavelmente, entra em cheque. O próprio significado do que seja uma escola, para que ela serve, quais os papeis dos alunos, ficam imprecisas. Segundo Bauman (2001) nesta dinâmica de incertezas e falta de referências coesas, a necessidade de ser reconhecido e o medo de ser rejeitado, se tornam uma tônica dominante, potencializando os conflitos em geral.

            Considerando-se esta complexidade, uma variável apontada como fundamental para a construção de uma escola contextualizada com as realidades atuais, é criar um ambiente mais democrático, que possibilite aos educadores e educandos aprender a conviver com as diferenças e a resolver seus conflitos de forma não violenta (Vinha & Tognetta, 2009; Neves, 2009; Abramovay, 2015; Lima, 2015). Dentro desta perspectiva, a pesquisa em representações sociais pode oferecer uma relevante contribuição.

 

  1. As representações sociais e os conflitos entre professores e estudantes

 

A Teoria das Representações sociais foi criada em fins da década de 50 do século XX, por Serge Moscovici (1925/2014) a partir do conceito de representações coletiva de Émile Durkheim (1858/1917).  Moscovici considerava que a formulação de Durkheim se aplicava melhor às sociedades tradicionais, mais estáveis. Nas sociedades modernas, as representações não seriam mais produto da sociedade como um todo, mas dos grupos que a constituem. Desta forma, contempla a diversidade da origem tanto dos indivíduos como dos grupos, como também valoriza a comunicação como fenômeno que possibilita aos indivíduos convergirem, apesar das diferenças (Nobrega, 1985).

O conceito de representações sociais, por outro lado, não separa as dimensões individual e social. Para Durkheim (1995), as representações individuais seguem uma lógica diferente das coletivas e deveriam ser estudadas pela psicologia. Moscovici (1978, p.45) anuncia que as representações sociais devem ser consideradas “(...) tanto na medida em que ela possui uma contextura psicológica autônoma como na medida em que é própria de nossa sociedade e de nossa cultura”. Assim, a Teoria das Representações Sociais volta-se para a inter-relação entre sujeito e objeto e como acontece o processo de construção do conhecimento, ao mesmo tempo, no nível individual e coletivo. Alves-Mazzotti (2000, p. 39) lembra que que Moscovici parte da premissa de que:

 

[...] não existe separação entre o universo externo e o universo interno do sujeito: em sua atividade representativa, ele não reproduz passivamente um objeto dado, mas, de certa forma, o reconstrói e, ao fazê-lo, se constitui como sujeito, na medida em que, ao apreendê-lo de uma dada maneira, ele próprio se situa no universo social e material.

 

Ainda segundo Alves-Mazzotti (2008), outra diferença apontada por Moscovici é que a perspectiva individualista da psicologia social da América do Norte não levam em conta o papel das relações entre as pessoas. As investigações são feitas na forma que as pessoas selecionam e utilizam as informações que circulam na sociedade, o contexto, assim como as interações, são desconsiderados.

Importante lembrar Nobrega (1990) relativo a impossibilidade de apresentar uma definição fechada do conceito de representações sociais, face a pluralidade de concepções que são aplicadas por diferentes disciplinas. Nas palavras de Moscovici (1969), representações sociais constituem:

Um sistema de valores, de noções e de práticas, tendo uma dupla tendência: antes de tudo instaurar uma ordem que permite aos indivíduos se orientar no meio-ambiente social, material e de o dominar. Em seguida, de assegurar a comunicação entre os membros de uma comunidade, propondo-lhe um código para suas trocas e um código para nomear e classificar de maneira unívoca as partes do seu mundo, de sua história individual ou coletiva (Nobrega, p. 14, 1990).

 

 Segundo definição clássica apontada por Jodelet (2001) as representações sociais são formas de conhecimentos práticos, que ligam um sujeito a um objeto, direcionados para a comunicação e compreensão do contexto social material e ideativo no qual os indivíduos vivem. Constituí um vigoroso referencial teórico e metodológico para compreender e explicar como indivíduos e grupos constroem, transformam e comunicam suas realidades sociais. Segundo a autora, uma representação social é construída em torno de objetos específicos, reais ou imaginários. As RS não podem ser apreendidas no isolamento ou na dicotomia entre o que se pretende captar e analisar e o viver dos sujeitos. Não constituem reproduções do real no plano subjetivo, mas processos de reorganizações significativas. Dito de outra forma, de reescrita de sentidos do objeto

Sá (1998, p. 21-22) afirma que as representações sociais estão “na cultura, nas instituições, nas práticas sociais, nas comunicações interpessoais e de massa e nos pensamentos individuais”.  Segundo o autor (idem, p, 24),

(...) uma representação social é sempre de alguém (o sujeito) e de alguma coisa (o objeto). Não podemos falar em representação de alguma coisa sem especificar o sujeito – a população ou conjunto social – que mantém tal representação. Da mesma maneira, não faz sentido falar nas representações de um dado sujeito social sem especificar os objetos representados. 

            No entendimento de Jodelet (2001, p. 21) as representações sociais revelam “(,,,) elementos informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões, imagens, etc., os quais são organizados sempre sobre a aparência de um saber que diz algo sobre o estado de realidade.” Segundo Bonfim (2012, p.18) “As representações sociais podem ser concebidas como teorias que os indivíduos elaboram sobre a natureza dos eventos, objetos e situações em seu mundo social”.

[...] as representações sociais não são apenas “opiniões sobre” ou “imagens de”, mas teorias coletivas sobre o real, sistemas que têm uma lógica e uma linguagem particular, uma estrutura de implicações baseada em valores e conceitos que ‘determinam o campo das comunicações possíveis, dos valores e das ideias compartilhadas pelos grupos e regem, subsequentemente, as condutas desejáveis ou admitidas (Alves-Mazzotti, 2008, p.59).

 

As representações sociais se estruturam a partir de duas faces interligadas e interdependentes como os lados de uma folha de papel: a face figurativa e a face simbólica. Dito de outra forma: a cada figura corresponde um sentido e a cada sentido uma figura. A atividade representativa tem por função destacar uma figura e, ao mesmo tempo, atribuir-lhe um sentido. Por outro lado, tem a função de duplicar um sentido por uma figura e, portanto, objetivar, e uma figura por um sentido. Aqui entram em os dois processos que dão origem às representações: a objetivação e a ancoragem.

A objetivação constitui a transposição de conceitos ou ideias para esquemas ou imagens concretas. Este processo permite inserir o desconhecido no universo do conhecido. Esse mecanismo, segundo acontece em três momentos: 1) seleção e contextualização – os indivíduos se apropriam do conhecimento a partir de critérios culturais; 2) formação de um núcleo figurativo – os indivíduos utilizam informações já dadas para compreender o novo; 3) naturalização dos elementos do núcleo figurativo – neste momento o abstrato se torna concreto e o conceito passa a ser considerado como elemento da realidade.  

No caso da ancoragem, acontece a produção de uma rede de significações em torno do objeto, articulado a valores e práticas sociais. Nessa visada, a ancoragem é o processo, através do qual, acontece a transformação de algo estranho e perturbador, em algo comum e familiar. Segundo Alves-Mazzotti (2008, p. 24) o estudo desses processos constitui “(...) a contribuição mais significativa e original do trabalho de Moscovici, uma vez que permite compreender como o funcionamento do sistema cognitivo interfere no social e como o social interfere na elaboração cognitiva”.

Uma vez posto a natureza psicológica das RS, importante situar agora a sua função social. Segundo Abric (2000) seriam quatro estas funções: 1) compreender, explicar e comunicar a realidade, ou seja, é o saber prático do senso comum; 2) construção de identidade; 3) orientar comportamentos e práticas; 4) por fim função justificadora, que atua a posteriori, justificando as tomadas de decisão dos grupos e indivíduos.

Atualmente existem três abordagens importantes para a investigação das representações sociais. As diferenças entre estas abordagens se relacionam com o tratamento da ênfase metodológica adotada. Nas palavras de Pryjma (2011, p.31):

Denise Jodelet - abordagem cultural- mantém-se fiel às proposições de Serge Moscovici, enfatizando o histórico e o cultural para a compreensão do simbólico; Willian Doise - abordagem societal - articula as representações sociais com a visão sociológica, enfatizando a inserção social dos indivíduos, os quais são interpretados como fonte de variação dessas representações; Jean-Claude Abric – abordagem estrutural- privilegia a dimensão cognitiva das representações. Uma representação social funciona como um sistema de interpretação da realidade e determina os comportamentos e as práticas dos sujeitos.

 

Na abordagem estrutural, Abric (2000) propõe que as representações sociais se estruturam em torno de um núcleo, interpretado como seu elemento fundante, o qual determina sua significação e organização interna. Nesta perspectiva são encontrados elementos relevantes para a explicação e compreensão dos processos de aquisição e transformação das representações sociais. O autor retoma a perspectiva adotada Moscovici em 1961, ao entender que a “[...] identificação da visão de mundo que os indivíduos ou os grupos têm e utilizam para agir e tomar posição é indispensável para compreender a dinâmica das interações sociais e clarificar os determinantes das práticas sociais” (Abric, 2000, p. 27).

            Considerando-se essa complexidade, pensar as interações que se estabelecem no cotidiano escolar conduz ao papel mediador das representações sociais. Segundo Alves-Mazzotti (2008) os estudos das representações sociais são essenciais à análise dos mecanismos que interferem no processo educativo, posto que investigam as formas de funcionamento dos sistemas de referência utilizados para classificar pessoas, grupos e para interpretar os acontecimentos da realidade, e, principalmente, pelo seu papel na orientação de condutas e das práticas sociais. Segundo a autora:

[...] cada segmento sociocultural tem seu sistema de representações sobre os diferentes aspectos de sua vida, os quais nós, educadores e pesquisadores, teimamos em não ouvir. Enquanto grupo sócio profissional, construímos nossas próprias representações e, em função delas, construímos nossas práticas e as impomos aos alunos, na suposição de que sabemos o que é bom para eles. Se o conhecimento das representações sociais, as de nossos alunos e de suas famílias, bem como das nossas próprias, puder nos ajudar a alcançar uma maior descentração no que se refere aos problemas educacionais, já terá demonstrado sua utilidade (Alves-Mazzotti, 2008, p. 42).

 

            No caso específico dos conflitos, Carita (1995) lembra que Abric (1987, p. 84) na obra Coopération, Compétition et Représentations Sociales, situa o estudo das interações, particularmente das interações conflituosas, um lugar privilegiado no campo da Psicologia Social, identificando-a como seu objeto de estudo. A autora afirma que nas situações “(...) de interação conflitual, o papel do parceiro, da tarefa ou do contexto é sempre mediatizado pela significação que o sujeito lhes atribui, e se atribui, pela representação que elabora a seu respeito em função de um sistema cognitivo estabelecido”. Assim, nos contextos de interação conflituosa, o sujeito não reage de acordo com uma situação objetiva, mas ancorado nas representações que constrói a seu respeito.

Na literatura especializada não existem estudos específicos sobre representações sociais de conflitos na escola. Contudo, o presente estudo não pretende problematizar a existência de representações sociais da palavra conflito, mas a existência de RS como referência estruturante das percepções que alunos e professores fazem uns dos outros nas interações conflituosas.  Bonfim (2012, p. 19) lembra que o estudo das representações sociais se apresentam “(...) de forma suficiente ao propósito de se apreender relações emocionais e afetivas, de atração e de repulsa na relação sujeito e objeto”.

Segundo Alves-Mazzotti (2008, p. 39) “(...) as significações atribuídas pelos estudantes sobre as situações, tarefas e parceiros, sugerem articulações com os estudos das representações sociais”. Em pesquisa sobre RS de meninos trabalhadores de rua sobre a escola, por exemplo, as professoras são retratadas como: “(...) “chatas”, “grossas”, que “vivem gritando”, “não respeitam o aluno”, “não tratam todos da mesma maneira”, nem se esforçam para que ele aprenda” (Alves-Mazzotti, 1994, citado em Alves-Mazzotti, p. 41, 2008). Esta percepção negativa dos professores é apontada por Vinha e Togneta (2009) como uma importante variável que contribui para agravar os conflitos na salas de aula. No estudo de Cárita (1997) sobre representações de conflitos em sala de aula, figura como principal causa a qualidade das relações estabelecidas entre professores e alunos. Assim, nas situações conflituosas a percepção do outro e do contexto envolvido podem se relacionar com a presença de representações sociais.

 

Conclusão

 

Nos cenários da modernidade líquida brasileira, marcados pelo individualismo, pela fragmentação dos valores coletivos, pelas injustiças sociais e pela histórica descrença no diálogo, as interações conflituosas proliferaram. Atualmente, o Brasil é o país que, em números absolutos, possui a maior estatística de homicídios do planeta, sendo que, segundo CNJ (2013), cerca de 50% destas mortes foram causadas por conflitos considerados banais. Esses indicadores evidenciam, dentre outros, a fragilidade dos nossos mecanismos mediadores de conflitos.

A escola brasileira, em grande medida, reproduz esta lógica, criando um ambiente bastante favorável para potencializar os conflitos.  Por outro lado, a escola constitui um ambiente privilegiando para o fortalecimento de práticas sociais. Assim, podemos concluir que constitui uma tarefa básica para as escolas brasileiras no século XXI aprender a mediar as relações que se estabelecem no seu cotidiano, incentivando estratégias não violentas na forma dos conflitos serem resolvidos. Concomitantemente, podemos concluir também que existem fortes indícios apontando a pesquisa em representações sociais como um caminho para compreender os mecanismos que estruturam as interações conflituosas entre professores e alunos. O conhecimento destes mecanismos pode dar subsídios para as escolas desenvolverem estratégias contextualizadas para enfrentar um dos maiores desafios que atravessam o seu cotidiano.

 

 

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