Compreender Manuel Sérgio (*)

Quando, na segunda metade do Século XX, nos mais diversos países, a Universidade procurou encontrar na educação física uma área de investigação com autonomia própria, o resultado foi terem-se descoberto variadas linhas de investigação suportadas em expressões que fugiam ao próprio conceito seminal de onde a educação física era originária. Em consequência, foram adotadas palavras e expressões como, entre outras, ciências do desporto e ou da atividade física, ciência do movimento humano, cinesiologia, cinantropologia que deram origem diversas designações de faculdades e departamentos académicos e a uma ilimitada criatividade de disciplinas das estruturas curriculares das licenciaturas e mestrados. Entretanto, em finais do século passado, começaram a afirmar-se em lugar destacado duas vias, a Cinesiologia Humana (Human Kinetics) e a Motricidade Humana (Human Motricity). Perante os vários problemas linguísticos que se levantavam, por uma questão mais prática do que semântica ou científica, mas sobretudo devido à preponderância da língua inglesa nas relações académicas e trabalhos científicos, a expressão motricidade humana, tem sido objeto de inaceitáveis cedências conceptuais como, por exemplo, a que  acontece nas peças de informação em que a designação Faculdade de Motricidade Humana, é traduzida para Faculty of Human kinetics o que, realmente, do ponto de vista social, pedagógico e científico, não traduz a vida daquela Escola. E as traduções deste género são, de todo, inaceitáveis desde logo porque: (1º) o conceito de cinesiologia apenas se circunscreve a uma realidade física, fisiológica, anatómica e biomecânica como, facilmente, se pode constatar numa consulta aos títulos das editoras internacionais; (2º) o conceito de motricidade humana assume o movimento humano como um fenómeno antropológico global, aberto, autopoiético, auto referente, em contínuo processo de organização, produção e reprodução que incita o ser humano à superação em busca da transcendência pessoal e social.

Esta perspetiva, adotada e desenvolvida por Manuel Sérgio um dos primeiros investigadores a trazer os estudos epistemológicos para a universidade portuguesa, encontra o seu próprio método, no método integrativo enquanto resultado da convergência de diferentes métodos, entre outros, o histórico, o hermenêutico, o fenomenológico, o biológico, o psicológico e o dialético. Nestas circunstâncias, a investigação empírica é dirigida por modelos interpretativos e esquemas conceptuais onde, tal como acontece no quadro do confronto estratégico nos jogos desportivos coletivos, a certeza e a incerteza, o particular e o global, o todo e as partes, a ordem e a desordem, a fim de se construir a vitória, devem ser consideradas e superadas.

Quando Manuel Sérgio entrou no Instituto Nacional de Educação Física (INEF) em outubro de 1968, a fim de dirigir o Centro de Documentação, para além de um vasto conhecimento sociopolítico construído enquanto cidadão de um país cujo regime estava a seis anos de colapsar, levava consigo uma licenciatura em filosofia e, mais importante ainda, um enorme amor platónico ao desporto. Ao tempo, do ponto de vista científico, no INEF ainda subsistia o paradigma da ginástica sueca representado por Leal de Oliveira (1894-1977) que havia frequentado a Escola Central de Ginástica de Estocolmo considerada uma espécie de santuário mundial da ginástica de Per Ling (1776-1839), um nacionalista sueco influenciado pelo contexto político-belicista que se vivia na Europa. Ling era autor de um método gímnico de características calisténicas que enfatizava a execução rítmica e rigorosamente padronizada de baterias de movimentos, destinados, à promoção da condição física nas Forças Armadas, entre outros segmentos sociais. Leal de Oliveira era, naturalmente, um prosélito irredutível da “suédoise”, quer dizer, do sistema sueco de ginástica, designação mais ou menos pejorativa utilizada em França ao tempo de Pierre de Coubertin (1863-1937) o responsável pela institucionalização do Movimento Olímpico (MO) moderno a partir de 1894 e da realização, em 1896 em Atenas, dos primeiros Jogos Olímpicos modernos. A Leal de Oliveira ficou-se a dever, não só um curso de educação física concebido nos moldes da Escola de Estocolmo que, a partir de 1930, funcionou na Sociedade de Geografia de Lisboa, bem como a própria institucionalização do INEF, fundado em 23 de janeiro de 1940 contra a vontade do médico Weiss de Oliveira (1878‐1940) que, para além de advogar que a educação física devia estar debaixo da superintendência dos médicos, entendia que  o desporto era “o pior deboche social” e concluía que o tipo ideal da ginástica lusitana devia ser a figura de Cristo impressa no Santo Sudário.

Em 1968, no INEF, vivia-se um tempo de transição de uma educação física baseada em Leal de Oliveira fundada sob as escolas de ginástica em especial a sueca, para uma educação física de Celestino Marques Pereira (1909-1978) que no seu Tratado de Educação Física reivindicava para ela um estatuto científico onde integrava como um dos seus meios o desporto.

Assim, com a sua experiência no mundo do desporto e uma formação académica na área da filosofia, Manuel Sérgio estava na posição ideal para questionar o sistema que, desde as falsas promessas da Primeira República, se refugiara num discurso corporativo, contra o desporto. Um discurso que, em finais dos anos sessenta, ainda sofria do velho trauma desencadeado em 1925 por George Hébert (1875-1957) num livro a que deu o título “Le Sport Contre l’Éducation Physique” que, entre nós, por vários motivos, entre eles uma crítica cerrada da oposição política ao desporto enquanto bandeira do regime, obrigou o Governo, através da Direção-geral de Educação Física Desportos e Saúde Escolar, de que era diretor Armando Rocha(1927-2018), a cancelar a organização em Lisboa da Universíada – Jogos Mundiais Universitários que se ia realizar de 29 de agosto a 7 de setembro de 1969.

Pois bem, Manuel Sérgio foi de fundamental importância para a desconstrução do ambiente crítico que imperava contra o desporto, não só conduzido pela “velha guarda” das escolas de ginástica, alguns elementos ainda provenientes do tempo em que a Primeira República boicotou a presença de uma missão portuguesa nos Jogos Olímpicos de Estocolmo (1912), até aos prosélitos do mecanicismo da ginástica segmentar e dos aparelhos suecos de Moura e Sá.

Ao tempo, o apoio mais sólido que Manuel Sérgio encontrou no INEF foi certamente o de Celestino Marques Pereira que no seu Tratado de Educação Física abriu a própria educação física ao mundo do desporto a partir das grandes linhas de pensamento do Papa Pio XII. E concluiu pela necessidade de esclarecer a posição do desporto “relativamente ao destino transcendental e último da pessoa humana”. Finalmente, classificou o desporto como “um fenómeno sociológico de primeira grandeza”, que era impossível desconhecer. E avisava: “desconhecer o movimento desportivo ou opor-se-lhe será o mesmo que o entregar indefeso às forças do mal”. Pelo que era imperativo “criar-se-lhe o indispensável condicionamento moral e religioso que permitisse ao bom cristão cuidar carinhosamente do seu corpo, tornando-o instrumento valioso da sua vontade e de uma vida mental e intelectual superiores”. Contudo, para além da questão transcendental, a visão de Manuel Sérgio ultrapassava a de Celestino Marques Pereira. E porquê?

Porque, em 1968, Manuel Sérgio era portador de um vasto currículo, não só construído enquanto dirigente desportivo, mas sobretudo enquanto filósofo do desporto, estribado em  dezenas de ensaios publicados na imprensa escrita que iam das questões relativas ao atleticismo da antiguidade clássica, da arte equestre, da ginástica a cavalo da idade média, do nascimento da própria educação física já na idade moderna através da “De Arte Gymnastica” de Jerónimo Mercurialis (1530-1606) que, a partir de finais do séculos XVIII, iria influenciar os ginasiarcas do século XIX e XX como Guts-Muths (1759-1839) e, entre outros, Friedrich Ludwig Jahn (1778-1852), que tiveram como precursor Jacques Ballexserd (1726-1774) um médico naturista, de nacionalidade suíça, cidadão de Genebra que, em 1762, abriu livro da sua autoria intitulado “Dissertation sur l'Éducation Physique des Enfans, Depuis Leur Naissance Jusqu'à l'Âge de Puberté”, onde a expressão educação física foi pela primeira vez utilizada. E Ballexserd, naturalmente, sob a influência do pensamento de René Descartes (1596-1650), abriu a sua obra com uma breve definição do homem. “Définition abrégée de l’homme: L’Homme est un composé de deux substances. Une spirituelle, qui est l’ame; & la matérielle. L’ame peut être considérée comme une émanation de la Divinité: Les Livres Saints nous disent que Dieu a pris plaisir de nous former à son image. Le corps est un tout composé de parties justement unies & de la manière la plus admirable pour exécuter, soit par le mouvement de la volonté, ou par um mouvement involontaire, les fonctions auxquelles elles sont destinées”. Esta perspetiva, da dualidade do homem corpo espírito, influenciou a generalidade dos trabalhos dos principais ginasiarcas que pontuaram no século XVIII e princípios do século XX: (1º) de Guts Muths  e o seu “Gymnastik für die Jugend” / “Ginástica para a Juventude” publicado em 1793 e traduzido para a língua inglesa em 1800 sob o título “Gymnastics for Youth: A Practical Guide to Healthful and Amusing Exercises for the Use of Schools”; (2º) até Georges Demeny (1850-1917) e a obra “Les Bases Scientifiques de l’Éducation Physique” (1902). E, embora Pierre de Coubertin (1863-1937), o fundador do Movimento Olímpico (MO) em 1894, tenha cortado com o pensamento, o método e a prática dos ginasiarcas, o que é facto é que a rutura não se ficou a dever a qualquer oposição ontológica quanto à visão dicotómica de Descartes, desde logo porque o Olimpismo procurava a perfeição através da harmonia moral, espiritual e física do homem. Apesar de tardia, era a cultura do tempo que, como recorda Manuel Sérgio, José Maria Escrivá (1902-1975) fundador da Opus Dei, cerca de duzentos anos depois de Ballexserd ter cunhado a expressão educação física, ainda percecionava matéria e espírito como dois inconciliáveis inimigos pelo que recomendava: “trata o teu corpo com caridade, mas não com mais caridade que se tem com um inimigo traidor”. A rutura de Coubertin com a educação física ficou a dever-se à visão educativa de Coubertin para quem a competição desportiva era um “regulador social” que “se santificava” através da agonística da educação grega e da não diretividade pela responsabilização da escola pública inglesa de Rugby (Inglaterra). Ficou, ainda, a dever-se a um processo educativo que desencadeava um sentimento de identidade pessoal, cultural e social que esteve na base da construção do império colonial inglês. Se assim não tivesse sido, o Olimpismo teria sido, tão só, mais uma escola de ginástica como tantas outras, desta feita baseada no velho conceito dos “sports” ingleses que, de acordo com o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), até podia significar o ato e o efeito de fornicar como, no “Rei Lear”, o Duque de Gloucester se gabava relativamente à conceção do seu filho bastardo ao dizer: “there was good sport at his making”. Ora bem, cortando com o velho “sport” inglês e com os ginasiarcas, Coubertin exprimiu magistralmente a sua visão relativamente à educação física quando, em 1911, num artigo publicado na Revue Olympique sob o título “mens fervida in corpore lacertoso” / “um espírito ardente num corpo treinado”, propunha a adoção desta máxima em substituição da máxima “mens sana e corpore sano” do poeta e político romano de seu nome Juvenal (55/60-127) que, dizia Coubertin, sendo a máxima do foro médico era demasiado higiénica e pouco desportiva, “excelentemente higiénica, mas de nulidade atlética” que estava transformada numa expressão ridícula e inapropriada para o desporto pelo que Coubertin até afirmava que “devia ser enviada para o “museu das antiguidades”.

Foram estes os contornos do paradigma desportivo que Manuel Sérgio encontrou no INEF, uma escola que, ele havia de concluir, nascera sob o signo da contradição. Fundada a 23 de janeiro de 1940, com a missão de ministrar um curso de habilitação para professores de educação física de acordo com os princípios e o método de Ling que, para Manuel Sérgio servia à cultura oficial do confronto alma-corpo em que o corpo sente e a alma pensa, o corpo morre a alma é eterna”. Tratava-se de uma escola que, fundada a partir de uma visão cartesiana do homem, na primeira “reunião de estudo” do seu Conselho Escolar realizada a 14 de outubro de 1940, da ordem de trabalhos constava uma comunicação do médico Manuel Rocha, docente da instituição, subordinada ao tema “A Vida Humana a Educar” de onde sobressaía, como um dos subtemas, o seguinte título: “O Erro de Descartes”. Quer dizer, numa escola fundada sob o princípio do “cogito, ergo sum”, por missão obrigada a cuidar do corpo a partir da ginástica sueca, já era portadora de uma semente que anunciava um conhecimento tão novo quanto absolutamente necessário que havia de a projetar no futuro.

Nos anos sessenta a sociedade portuguesa, segundo A. Sedas Nunes que pertencia a uma corrente crítica intelectual de inspiração católica, estava bloqueada no seu desenvolvimento socioeconómico devido a profundas dissemelhanças regionais de estrutura e desenvolvimento. No entanto, do ponto de vista desportivo vivia-se, tal como hoje, na ilusão de estrondosos sucessos. A década começou com a participação portuguesa nos Jogos Olímpicos de Roma (1960) que, depois do desastre que foi a participação em Melburne (1956), superaram as expectativas, uma vez que foi conquistada uma medalha de prata (vela /Star) pelos irmãos Quina. Em 1963, Armando Rocha, no discurso de tomada de posse do cargo de Diretor-Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1963-05-07) colocou desde logo em questão o desporto nacional ao afirmar: “(1º) A essência do desporto não se encontra no profissionalismo; (2º) Sem desporto escolar não pode haver desporto verdadeiramente nacional”. E continuou: “Não contesto que as equipas de profissionais nos têm brindado com excelentes exibições. Não contesto que muitos dos triunfos internacionais que ultimamente nos alegraram são fruto desse esforço. Não contesto sequer que certos elementos profissionais atingiram uma perfeição técnica uma correção de estilo e até de atitudes morais, que, por essas razões se podem apresentar como exemplos individuais aos jovens desportistas. O que contesto – e isso faço-o com força – é que esteja aí a essência do desporto”. A década ficou ainda marcada pela edição do livro de José Esteves (1919-2015) “O Desporto e as Estruturas Sociais” (1967) que, enquanto reflexão teórica sem referências contextuais à situação desportiva portuguesa, foi um marco na literatura desportiva produzida no País. Todavia, devido aos tempos políticos que se viviam, tal como hoje acontece, o autor ignorou as circunstâncias do desporto nacional e não se comprometeu com a produção teórica até então produzida por autores como como Celestino Marques Pereia com a extraordinária e desconhecida abertura ao paradigma desportivo no quadro de uma visão cristã do mundo, como Francisco Nobre Guedes com a rubrica “a propósito de…” publicada no Diário Popular onde eram editados pequenos ensaios que identificavam e debatiam os estrangulamentos  de um nacional olimpismo caduco, vaidoso e inútil que tendo pontuado nos finais dos anos cinquenta deixou um legado difícil de expurgar e, sobretudo, como Manuel Sérgio autor de vasto número de artigos, ensaios e outras prosas, em vários órgãos de comunicação social escrita, entre outros, no República, no Jornal do Comércio, no Século e no Record que viriam a ser publicados numa coletânea em 1974 sob o título “Para uma Nova Dimensão do Desporto”. Numa breve consulta podemos observar títulos como “Função e Ação do Intelectual no Mundo do Desporto”, “A Urgência da Educação Física”, “Desporto e Humanismo Contemporâneo”, “A Educação pelo Desporto”, “Especialização Precoce”, “No Princípio é o Jogo” e, entre muitos outros, “Desporto Feminino” e, a partir de Jean Le Boulch (1924-2001) e da psicocinética, o texto a “Ciência do Homem em Movimento” onde Manuel Sérgio anunciava o surgimento da “Ciência do Movimento Humano”. E, da linha dos filósofos do desporto da nova esquerda francesa, Manuel Sérgio ainda alertava para o facto de o desporto estar a ser pensado em função do prático e o útil, a reboque de uma cultura de massas em que o homem encontra no desporto o elixir da sua libertação. E criticava o facto de o desporto estar a ser pensado em função do rendimento, da medida, do record, do espetáculo e do profissionalismo precoce e não em função do bom, do estético, do ético, do educativo e do social. Um desporto que, gente simples alienada da vida, encontrava na bola o antídoto para a compensação de uma existência precária. Na realidade, quando hoje olhamos para o desporto nacional temos de concluir que, se a história não se repete, o futuro também não surge por acaso.

Chegados a 1974, depois do título “Para uma Nova Dimensão do Desporto” já referido, Manuel Sérgio publicou “Para uma Renovação do Desporto Nacional” (1974) onde explanou as grandes linhas às quais o desenvolvimento do desporto nacional havia de obedecer. Sob o ponto de vista orgânico propunha: (1º) a extinção da Direção-geral de Educação Física e Desportos; (2º) a criação de um Ministério dos Lazeres e Desportos onde seria integrada uma Direção-geral dos Desportos. Ao fazê-lo, anteviu a grande rutura orgânica que ia acontecer entre a educação física e o desporto. A práxis, no confronto do sistema educativo com o desportivo e vice-versa, traduzia um absurdo político que ainda hoje continua por resolver. E, em 1976, no “Desporto e Democracia” Manuel Sérgio escrevia: “estudar o desporto como ramo da quinantropologia (ciência do homem em movimento); dissecá-lo nos planos da anatomia, da fisiologia da bioquímica da biologia muscular; observá-lo aos níveis da psicologia, da pedagogia, e até da cibernética e da informática – tudo isso, se bem que indispensável, não ultrapassa a estreiteza do fenoménico”. Tratou-se da primeira grande rutura epistemológica da independência do desporto relativamente à educação física que, como referido, vinha dos tradicionalistas da educação física como Celestino Marques Pereira que fez a transição das escolas de ginástica para a educação física e desta para o desporto deixando ficar portas abertas relativamente à organização do futuro.

Em conformidade, Manuel Sérgio perguntava; (1º) Quais são os fins e os objetivos do desporto? (2º) Em que ordem social ele se realiza?  (3º) Qual é o seu conteúdo humanizante?

A resposta cabal a estas questões havia de Manuel Sérgio desenvolver em 1986 no título “Para um Desporto do Futuro” onde, na linha do pensamento de Pierre de Coubertin advoga um corte como a práxis institucional da “competição confronto” para anunciar a necessidade de um paradigma de “competição diálogo” a fim de assumir o desporto como um humanismo portador de futuro. Porque, dizia ele, o desporto moderno deve decorrer da Declaração Universal dos Direitos do Homem sendo, por isso, um exercício de libertação permanente. Pelo contrário, se não for um exercício de permanente libertação transforma-se numa loucura de violência, terror, destruição e morte como Coubertin argumentou perante os altos dignitários de diversos países europeus, quando, em finais do século XIX, os sentou à mesa de negociações a fim de os convencer a  transpor as suas disputas que, até então, resolviam nos campos de batalha através da competição do confronto bélico, para os campos desportivos através da competição diálogo do confronto lúdico-atlético. E Manuel Sérgio, nesta linha de pensamento, no “Para um Desporto do Futuro, afirma que “o desporto é uma empresa que requer o diálogo e a paz”. Porque a guerra “é precisamente a institucionalização do abismo, do ódio, da irresponsabilidade, da petrificação”. Em contrapartida, o sentido último da ação do dirigente desportivo, na velha tradição da Grécia antiga que Coubertin trouxe para a modernidade, é a de ser capaz de, de acordo com o espírito da neutralidade olímpica, diz Manuel Sérgio, “fazer a paz!” acontecer. De gerir o desporto como um espaço de reconciliação humana e um instrumento de promoção da paz. Infelizmente, nos tempos que correm não temos vistos os dirigentes do Comité Olímpico Internacional (COI) nem os dos Comités Olímpicos Nacionais (CONs) por esse mundo fora, com capacidade para gerirem um legado que não são capazes de compreender. Não os temos visto capazes de encaminharem para a superação, num movimento ascendente que conduza o mundo à paz consigo mesmo ignorando que a paz olímpica se faz e se perfaz na competição diálogo entre os homens independentemente do que eles, de acordo com a Carta Olímpica, do ponto de vista social, político, religioso ou outro possam ser. Deviam recordar-se que, na tradição da paz olímpica, nas Guerras Medo-Persas, quando os gregos, mesmo com o inimigo dentro de portas, não dispensavam a celebração dos Jogos que aconteciam independentemente de quaisquer conflitos. Ao ponto de, pouco antes da Batalha das Termópilas, como refere Heródoto, os espartanos hesitavam no envio de reforços, pois era altura da celebração dos Jogos Olímpicos. Os Jogos eram um instrumento de paz que os olímpicos dignitários de hoje não deviam ignorar assumindo, para além das misérias da guerra, a Trégua Olímpica como um extraordinário ritual do domínio do sagrado a respeitar por toda a humanidade. Porque o desporto, à parte da obsessão moderna pelas medalhas olímpicas, é discurso, é política e é desenvolvimento. Mas já que os olímpicos dirigentes não respeitaram a Trégua Olímpica, ao menos, podiam ter mantido as aparências.

Infelizmente, cinquenta anos depois de Manuel Sérgio formular as três questões, é a própria situação desportiva nacional a responder: (1º) 73% dos portugueses dizem não praticar qualquer atividade física e ou desportiva; (2º) as organizações desportivas que, nos anos que se seguiram a Abril, sob a superior direção de Alfredo Melo de Carvalho, construíram os alicerces de um desporto novo, agora descartam da prática desportiva mais de 640 mil jovens por ano, enquanto os seus dirigentes andam pelo mundo a contratar atletas estrangeiros a fim de representarem Portugal nas competições desportivas internacionais. Como constata Manuel Sérgio, o homem massa de Gasset não possui amor à sabedoria “contentando-se com a informação-publicidade ou a informação-propaganda” as duas formas mais subtis de lhe deformar a consciência e hoje, como referia Ortega y Gasset na Rebelião das Massas, um autor e um pensamento que Manuel Sérgio apresentou ao desporto nacional, não passam de “Señoritos Satisfechos” que se limitam a traduzir a falta de autenticidade de todo o seu ser.

Para além da prática desportiva centrada nos valores pedagógicos, sociais e políticos da competição desportiva estandardizada e processada à escala do Planeta, Manuel Sérgio, quando equaciona um novo paradigma o da motricidade humana encontra suporte  no  “altius” da moderna máxima olímpica do “citius, altius fortius” idealizada por um frade dominicano Henri Didon (1840-1900) que, com origem, penso eu, no “conhece-te a ti mesmo” inscrito no portal do santuário de Delfos, significava a superação pessoal na transcendência da elevação a Deus. A predisposição para a fé religiosa, como refere Edward O. Wilson no “On Human Nature”, trata-se de uma das mais complexas forças da mente e, provavelmente, uma inerradicável parte da natureza humana. Ela pode ser encontrada nas mais diversas atividades atléticas da caça e da pesca, à arte da guerra e aos Jogos Olímpicos, nos torneios e nas justas da idade média, nos métodos dos ginasiarcas dos séculos XVIII e XIX, na práxis pedagógica de Thomas Arnold (1795-1842) que, de 1828 até à sua morte, dirigiu a Escola Publica de Rugby. Arnold, que Manuel Sérgio divulgou profusamente a sua importância entre nós, a partir de uma pedagogia não diretiva baseada na responsabilidade pessoal, encontrou nos sports ingleses de caráter competitivo a solução expedita para uma educação desportiva ao serviço do império que se propagou pela generalidade das escolas públicas inglesas. Um desporto que, de acordo com o “páthos” olímpico do amor à verdade competitiva, conduzia a uma visão apolíneo-dionisíaca, entre a moderação e o excesso da ideia de Cristianismo Muscular de Charles Kingsley (1819-1875) e Thomas Hughes (1822-1896) que desconstruíram a expressão inicial que havia sido cunhada com um sentido pejorativo. A partir de então, pela evolução do próprio pensamento eclesiástico, os designados “christian gentlemen” conquistaram o domingo, o dia do Senhor, para o exercício de atividades recreativas de caráter desportivo. E Coubertin forjou a ideia do "athletae religio" que, no esforço físico, procurava a alegria suprema de uma harmonia espiritual enquanto destino transcendental e último da pessoa humana. E na revista Cosmopolis de março de 1897 defendia que: (1º) o esforço é a alegria suprema; (2º) o sucesso não é um fim, mas um meio a fim de se ir mais alto; (3º) o indivíduo não tem valor senão relativamente à humanidade; (4º) o “athletae religio” devia projetar a sua prática desportiva em termos sociais para além dele próprio.

Nesta perspetiva, o sucesso competitivo, como Manuel Sérgio refere no “Para um Desporto do Futuro”, não era um fim em si mesmo, mas um meio para tentar ir Mais Alto em termos pessoais ao serviço do social. Tal como o jovem grego que, quando competia nos Jogos, para além dele próprio, pensava na satisfação da sua cidade natal porque era a glória desta que ele desejava projetar.

É neste sentido que entendo o corte epistemológico anunciado por Manuel Sérgio. Compreendo-o como o resultado de um processo que vai de Celestino Marques Pereira a Nelson Mendes (1933-2011). O primeiro, no “Tratado de Educação Física”, procurou a  “cientificação” da educação física partindo da ideia de que o homem era uma “unidade individual, composto de corpo e alma de matéria e espírito intimamente ligados e integrados”. O segundo, no “Conceito Atual de Educação Física, a Humanização do Movimento”, contestava a ortodoxia da educação física vigente que devia evoluir para uma “cinesiologia humana” a fim de formar “educadores pelo movimento”. Deste confronto, para a história da educação física e do desporto nacional, ficou-nos “Diálogo e Contestação. Para a História da Educação Física Nacional” (1970), onde Celestino Marques Pereira contestava o ponto de vista de Nelson Mendes relativamente: (1º) ao antagonismo entre o direito à liberdade e a realidade da disciplina ao contrapor ao esforço mais ou menos penoso e sempre intencional, assim requerido pela sociedade atual, mas tantas vezes alheio à espiritualidade tão necessária à natureza humana; (2º) o esforço pelo prazer das teorias contestatária que surgiam em termos de alta novidade, apregoada no género de ‘slogans’ publicitários; (3º) a compartimentação do comportamento em neuromotor, psicomotor e sóciomotor”. E perguntava, não serão tais factos “de sentido condicionante, senão mesmo inibidor, da personalidade e do potencial anímico e somático que se deseja processar”?  Infelizmente, enquanto pensadores livres que eram, depois do25 de Abril, Celestino Marques Pereira e Nelson Mendes, acabaram saneados na voragem de um oportunismo maoista que, ao produzir cultura inculta, conforme se refere no Decreto-Lei 768/76 de 23 de outubro, fez entrar o INEF num processo de “acentuada degradação da qualidade de ensino” que, mais tarde, havia de ser superada pela liderança de Henrique Melo Barreiros.

Tenho para mim que Manuel Sérgio, com o paradigma da motricidade humana, prossegue e supera o pensamento de Celestino Marques Pereira. E o primeiro sinal encontro-o no ensaio “A Matéria em Teilhard de Chardin” publicado por volta dos anos setenta e posteriormente no livro “Para um Deporto do Futuro” (1974). Na realidade, Teilhard de Chardin (1881-1955) é um dos pilares da construção do paradigma da motricidade humana quando no “Fenómeno Humano” diz: “não somos seres humanos a viver uma experiência espiritual. Somos seres espirituais a viver uma experiência humana”. É nesta dimensão místico-científica, que ultrapassa a cartesiana cisão ontológica entre matéria e espírito, onde Manuel Sérgio encontra a “potência espiritual” que fundamenta o paradigma da motricidade humana: a “energia para o movimento intencional da transcendência, ou da superação” onde se enquadram o desporto, a ginástica, a dança, o circo, a ergonomia e a reabilitação.

Enquanto extraordinário pedagogo, ao ponto de ser frequentemente recordado pela generalidade dos seus antigos alunos entre eles figuras de grande valor e projeção internacional como José Mourinho ou Gonçalo M Tavares, da multiplicidade de autores que Manuel Sérgio aconselha aos seus alunos os nomes de Maria Helena da Rocha Pereira e de Manuel Antunes, enquanto especialistas académicos da história da cultura clássica, têm-me acompanhado ao longo da vida. Por isso, quando Manuel Sérgio, na “Filosofia das Atividades Corporais” lança a ideia de que o desporto moderno é o “fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo”, relembra-nos que na Grécia antiga, para além da filosofia, da ciência e da cultura, o atleticismo era o elemento central da vida dos povos da Hélade que lhes organizava e determinava a vida temporal e espiritual. E quando se aproximava o mês de agosto, a cidade estado da Elide onde ficava Olímpia mandava arautos por toda a Grécia, a proclamar as tréguas que permitiam a realização dos Jogos em segurança e paz. Nietzsche, helenista de elevados méritos, explicava que não era a ambição desmedida como é a moderna que motivava o atleta grego.  O jovem grego era levado à escola de ginástica, onde os “paidotribes” que lhe fortaleciam o corpo, para que fosse um servo fiel, de espírito vigoroso e para que nunca fracasse na vida por culpa da debilidade corporal.  E o atleta aprendia: (1º) a conhecer-se e a controlar-se; (2º) a combinar o poder da vontade com o valor da vontade; (3º) a cultivar o sentimento de que é sempre possível tentar ir mais longe. E quando o jovem competia na luta, na corrida ou nos lançamentos durante os Jogos, era a glória da sua cidade que ele desejava projetar. E as coroas de louros que os juízes colocavam na cabeça dos heróis olímpicos, eles consagravam-nas aos deuses da sua cidade. Depois, nas celebrações das vitórias dos campeões, com uma profunda religiosidade, eram cantados os hinos de Píndaro por corais de jovens, em honra dos deuses: “tal como a água é o primeiro dos elementos, tal como o ouro é a mais preciosa de todas as riquezas, tal como os raios de sol são as mais ardentes fontes de calor, não há combate mais nobre de contar do que o dos Jogos Olímpicos”.

Como referiu Philipp Melanchthon (1497-1560), reformador luterano alemão, “tanto os Jogos Olímpicos como as Odes de Píndaro representam o “paradigma da humanidade, europeia”. Em conclusão direi que, quando olho para a extraordinária obra de Manuel Sérgio, entendo o conceito de motricidade humana como uma nova paideia para o século XXI.

(*) In: Introdução ao 1º Vol. da Obra Seleta de Manuel Sérgio. Porto: Edições Afrontamento (pp. 17-29).