Compacta discussão sobre as dificuldades e a premente necessidade de um estatuto sobre os embriões humanos

 

1. Introdução

Faz algumas décadas que a humanidade viu aparecer o nascimento de seres humanos por métodos diferentes daquele até então conhecido, qual seja, a cópula vaginal entre homem e mulher, como qualquer outro animal existente na natureza. Macho e fêmea, racionais ou não, só se multiplicavam por meio do sexo, uma das maiores fontes de prazer e válvulas de escape experimentada pelos seres humanos, realidade fática esta que foi impactada pelo advento de bebes formados ou gerados “artificialmente”, por força da evolução de algumas ciências, ou conhecimentos, como a genética, a microbiologia, a criogenia e a própria medicina. O encontro de corpos e a sensualidade deixou de ser a única possibilidade de alguém – no passado apenas casais heterossexuais – realizar um dos sonhos que parecer ser transmitido de geração em geração, muitas vezes de forma até irracional, que o desejo de gerar filhos, independente de qual será a condição humana, ou desumana, deles neste mundo.

Com a prosperidade, ou crescimento, da ciência, manipular óvulos, espermatozoides, embriões, material genético e humano tornou-se admirável e valioso para alguns, por um lado, e censurável ou condenável para outros, por outro lado. E, quanto mais tempo se passou mais os geneticistas e cientistas em geral, dedicados a esta temática (reprodução humana assistida cientificamente), mais aperfeiçoamento.

Porém, um grande obstáculo surgiu nos caminhos dos pesquisadores; dos médicos; dos pais sedentos de terem uma prole, uma descendência; das clínicas de fertilização e reprodução humana medicamente assistida, como sempre surgiu nos caminhos de outras ciências, instituições, valores, costumes: os dogmas e ideologias de matrizes religiosas, colocados como os únicos argumentos e valores incontestáveis.

Assim sendo, logo apareceu um embate, um conflito – muitas vezes em virtude das ideologias ou doutrinas – onde, de um lado, existem aqueles que querem legalizar (proibindo as práticas médicas e genéticas relativas aos temas aqui em discussão, por exemplo, a técnica de reprodução assistida – TRA e a realidade do embrião), do outro hão aqueles que buscam aprovar uma lei que proteja as práticas dos especialistas em tratamentos desta natureza, e se mitigue ou resolva de uma vez por todas as ingerências que algumas instituições ou organizações sempre querem fazer, sobretudo as ordens religiosas.  

 

2. Desenvolvimento

Não é fácil tratar, de modo abreviado, de forma científica, ou acadêmica, de um “objeto” que pode ser avaliado pelos mais diversos saberes humanos, a saber, a Medicina, a Genética, a Biologia, a Filosofia, o Direito, a Antropologia. Sem deixarmos de acrescentar a opinião, ou indução, desta o daquela catequese. Discorrer sobre o ser embrionário pode ser semelhante a debater sobre tantos outros conteúdos ou teores universais, v. g., a origem da vida, a existência da morte, a importância e a essência do amor, que podem ser examinados e “relatados” pelo filósofo, o teólogo, o místico, um filólogo, um físico ou um químico e até mesmo por nenhum cientista ou estudioso; apenas por um homem comum e de pouca instrução.

 

2.1  As dificuldades ou entraves sobre a questão do embrião

Certamente, os saberes da humanidade têm uma trajetória longa, de séculos, ou milênios – como é o saber filosófico e o matemático –, de modo que nenhum conhecimento que se possa valorar apareceu de repente, do nada, sem investigação, experimentos, teses, antíteses etc. A filosofia, a astronomia, a matemática, a engenharia, a botânica, a medicina, a química, enfim todas as ciências que hoje os seres humanos fazem uso delas tiveram um caminho e uma história percorridos. Com suas peculiaridades, termos, exercícios, testes, provas, conjecturas, certezas e dúvidas, cada saber científico foi se firmando gradualmente, muitas vezes a duras provas; e até tormentos, possivelmente.

A medicina, juntamente com a genética ou a engenharia genética, sofreu os mesmos processos, sem exceção, inclusive sendo refutada, ou condenada, mesmo que estivesse, em vários momentos, com o propósito de favorecer a humanidade, mitigando suas dores, sofrimentos, dessabores, proporcionando um pouco mais de alívio para os malefícios ou infortúnios que os homens trazem consigo, como, por exemplo, a cura para a tuberculose; a paralisia infantil, da “lepra”. Ou, se não curar, descobrir métodos de se prevenir dadas doenças, ou, ainda, de se conviver com elas, com vida prolongada.

É sabido que cada ciência tem seus termos próprios, palavras técnicas, significados específicos, “objetos” de estudo que requerem também uma sabedoria – ou logos (mesmo que conhecimento e sabedoria sejam coisas distintas) – apropriada para se fazer uso, com clareza, dos termos científicos. A medicina, a genética, a biologia ou a microbiologia estão nesta condição. Engenheiros, arquitetos, advogados, historiadores, psiquiatras, neurocientistas, físicos, químicos etc. etc. não fazem uso diário de termos, ainda que cientistas, como gametas, ovócitos, oócitos, zigoto, blastócitos, criopreservação e tantos outros vocábulos complexos e males entendidos. Inclusive, ao que parece, cada ciência tem seu dicionário peculiar, especializado, de modo a não deixar que se empreguem as palavras de forma equivocada, torpe ou ingênua. O termo embrião, mesmo que se pareça de fácil pronúncia, assim como a noção sobre a condição do embrião gera discussões ou embates, infelizmente, já que uns tem um entendimento sobre o que vem a ser, enquanto outros têm outro entendimento, às vezes polêmico, e quem sabe extremista, em virtude desta ou daquela influência, doutrina, dogmas, conjecturas. E aí aparecem as religiões, alegando que trazem consigo revelações e verdades incontestes.

Por um lado, sabe-se que a ciência procura descobrir – por meio de estudos –, revelar e fazer uso daquilo que já sabe, pois testado em vários animas, antes de chegar aos testes com humanos; por outro lado, sabe-se que a religião usa a fé – uma das coisas mais subjetivas e incertas que existe, pois é subjetiva e seus seguidores, do Oriente ao Ocidente, têm visões diferentes do que é sagrado ou não-sagrado – e o discurso de autoridade para dizer o que é verdadeiro, sem estudos, sem pesquisas, sem testes, sem nada de concreto que a humanidade possa, de fato, vê e saber; que é diferente de acreditar, já que muitos acreditam naquilo que nunca foi. Os próprios homens – os sacerdotes – que se declaram infalíveis, pois possuidores dos saberes divinos, decaíram por várias vezes, e o passar do tempo provou que a Terra não estava no centro do nosso sistema solar; também foi provado que a Terra não erra quadrada e que na linha do horizonte quanto os mares se findassem as embarcações cairiam num abismo sem fundo; provou-se que parteiras, homeopatas, alquimistas, exotéricos, “hereges”, cientistas – como Galileu Galilei – não tinham nada a ver com forças sobrenaturais ou demônios imaginários tão enfatizados pelas doutrinas da igreja. O que se testemunhou foram enganos após enganos sendo cometidos e as verdades cientificas sendo provadas mesmo contra a vontade das religiões e seus defensores.

Sobre qual é a realidade dos embriões humanos a celeuma também estar presente diariamente, já que as religiões se declaram depositárias das verdades supremas desta dimensão e sabedoras das vontades ou desígnios divinos. Querem os “defensores da vida” que o embrião humano – que não um feto, isto deve ficar bem claro – seja um ser humano, a qualquer custo, apenas por causa de suas ideações e crenças teológicas, ou religiosas, mesmo que isto não tenha fundamentação, já que depende do acreditar humano, porém acreditar em algo não significa que este algo seja a verdade, seja o que é em essência.

Façamos uma breve analise de alguns fenômenos naturais conhecidos, que apenas são o que é, independente das crenças ou presunções. Ontologicamente, um caroço de jaca, uma jaca e uma jaqueira são três coisas distintas e não tem como ser diferente jamais, jamais mesmos. Sem adentrar em questões biológicas mais pormenorizadas sabemos que um caroço de jaca nunca terá a doçura, a maciez e o sabor de um bagre de jaca, mole ou dura, assim como a própria jaca não tem as características da jaqueira, possuidora de raízes, caule, tronco, folhas, flores... Sendo oportuno salientar que mesmo uma árvore frutífera, como a jaqueira, por razões inclusive desconhecidas pela botânica, ou a biologia, tem a possibilidade de não gerar frutos, logo dela nunca prosperar uma jaca. Da mesma forma, se alguém retirar a parte comestível da jaca (gomos), deixando apenas a sua casca, esta não será mais uma jaca e sim apenas uma casca, grossa, cheia de picos, sem sabor ou serventia humana. Semelhante situação, podemos discutir em relação a um ovo e uma galinha, duas coisas que são o que são. A existência do ovo não remete, necessariamente e indubitavelmente, com sucesso, para a existência de um pinto, que um dia poderá ser uma galinha ou um galo, pois é desconhecido o amanhã com plenitude e certeza inatacável de fenômenos da natureza. Vejamos algumas condições sobre estes seres. Um ovo, já fecundado pelo material biológico do galo, ainda depende de algumas semanas submetidos a uma chocadeira, para dali germinar um micro-organismo, ainda que vivo, após um tempo certo, temperatura apropriada, o qual pode, ou não, vingar e se transforma num pinto; contudo este ainda pode nascer morto ou com alterações, deformidades, deficiências etc. Igualmente, ou analogamente, o embrião humano sujeita-se as mesmas possibilidades e probabilidades, mesmo que algumas instituições e pessoas queiram ou desejem de forma diferente, como é o caso dos ativistas da igreja.

Logo, não há como a medicina negar, depois de séculos de pesquisas médicas, e algumas décadas de pesquisas genéticas, que um embrião humano é um ser humano. Façamos algumas indagações sobre o assunto. Um embrião humano tem um sistema respiratório, circulatório, neurológico, digestivo, estrutura vertebral com tendões, articulações? Possui ele estrutura psíquica e emocional para refletir, repensar, discutir e decidir? O embrião humano ele é, de verdade, um ser humano, ou isto é apenas aquilo que a igreja quer que ele seja, conforme as presunções, ou ideações, dos seus doutrinadores, os quais alegam sabedores terrenos dos planos e desígnios divinos? No passado, Idade Média, sobretudo, os príncipes, réis e imperadores foram impostos e apresentados ao Povo como sendo escolhidos, ungidos e “nomeados” por Deus para governarem as nações, até que o advento da Revolução Francesa (1789) colocou por água abaixo toda falácia dos padres, bispos, cardeais e papas, e as civilizações souberam que ou eles (os governantes) chegaram ao poder tomando os reinos e governos por uso da violência, da força das armas, da espada, da cruz, ou herdando de outros nobres de suas linhagens, sem que um deus nunca tivesse se metido com a disputa da política e do poder dos homens. Então as doutrinas dos monges das tradições religiosas ocidentais querem que a religião diga à ciência o que é o embrião, mesmo que não o seja.

Vejamos o que nos diz o doutor Élio Estanislau Gasda, em seu artigo intitulado “Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutiva” citando Diego Gracia, em texto publicado na revista Pistis Praxis:

“[...] Conforme Diego Gracia, ‘um embrião de ser humano está vivo, mas não é um ser humano constituído; tem a possibilidade de ser, mas ainda não é. Essa possibilidade supõe muitos fatores necessários para a constituição de um novo ser humano’[1]

 

2.2 A mistura temática entre a religião e o direito

A capacidade humana, naturalmente, sempre foi limitada diante da grandeza de fatos, fenômenos e realidades que sem cessar se manifestam no Universo – imensurável, indizível e insondável. Não tem como os homens saberem, sequer, quantos peixes e forma de vida existem nas profundezas dos oceanos, em virtude de nossos limites. Por essa condição da humanidade nem tudo é muito bem compreendido, conceituado, definido, apreendido claramente. Numa observação simplória podemos afirmar que os seres humanos, incontáveis, confundiram ou misturaram, e não conseguiram separar, justiça com vingança; amor com paixão; humildade com imbecilidade; força com violência, instrução com sabedoria etc. Até hoje uma boa parte da sociedade não sabe distinguir a psiquiatria da psicologia ou da neurologia da psiquiatria; ortopedistas e traumatologistas, cremos, são misturados frequentemente, mesmo pelos seus pacientes. Misturam os conteúdos, as profissões, os conhecimentos, os tratamentos e tantas outras coisas. Lógica e informática, matemática e logística podem até ter alguma coisa em comum, mas, indubitavelmente, são coisas distintas não devendo ser embaralhadas; como vários misturam sorrisos com felicidades – confundindo uma realidade ou situação com a outra –, riqueza com nobreza, ainda que ser nobre não signifique ser rico, mas sim ser honrado, digno, sincero, fraterno, justo etc. etc., enfim detentor de valiosas qualidades ou adjetivos.

Também fizeram mistura de coisas como a religião, o direito e a moral, colocando, várias vezes, tudo no mesmo “cesto”, como sendo a mesma coisa ou conteúdo, ainda que tais termos e seus significados sejam coisas distintas, com objetivos distintos e consequências diferenciadas, mesmo que uma conduta social ou valor moral possa servir de orientação para a instituição de uma norma jurídica. Sem dúvidas é mister perguntar: o que deve ser objeto ou matéria do direito; o que é cabível à religião realizar; o que é essencialmente um valor da moral social, sem ser norma jurídica nem conjecturas ou ideações da religião? O que é de origem divina ou interessa aos domínios divinos? O que é de origem humana, ou diz respeito ao processo ou ao progresso da evolução humana? Quem sabe, na verdade, de forma indubitável e provável, dos desígnios ou anseios de Deus?[2] Dependendo da estrutura de Estado, da forma de governo, da organização política-jurídica, a religião pode estar mais presente no direito do que aquilo que é, ou deveria ser, propriamente jurídico.

Estabelecido o que entendemos por direito, por direito positivo e por direito objetivo, devemos agora distingui-lo da moral. Distinção que só foi pensada em um estágio mais evoluído da Cultura. Os egípcios, os babilônios, os chineses e os próprios gregos não distinguiram o direito da moral e da religião. Para eles o direito se confunde com os costumes sociais. Moral, religião e direito são confundidos. Nos códigos antigos encontramos não só os preceitos jurídicos, como, também, prescrições morais e religiosas.[3]

 

É fato que até mesmo nos chamados Estados laicos a laicidade estatal muitas vezes foi, e é, contagiada, ou orientada, pelas matrizes religiosas, de modo que o legislador, o Poder Legislativo e o próprio magistrado se deixam levar por aquilo que este ou aquele sacerdote disse ou disseminou, deste os tempos mais remotos. É como se o legislador legislasse com o “espírito” do sacerdote e o juiz julgasse preocupado ou inspirado pela a bíblia e não pelo Direito – quando se expressar por justas leis – e pela Justiça, que pode se revelar pelo senso crítico das faculdades mentais humanas capazes de perguntar o que é bom, o que é justo e o que é verdadeiro (no sentido de ser percebido, auferido, investigado, mensurado, certificado, como é o fato de se saber que a chuva molha e vivifica e após a lua nova só poderá vir, infalivelmente, a lua crescente, a cheia e a minguante, sempre); procurando evitar aquilo que pode não passar, ou não passa, de projeções do imaginário individual do “discurso de autoridade”.

Seja no Brasil, seja em outros tantos países, desencontros e conflitos sobre alguns temas universais e sociais por décadas, ou séculos, se arrastaram, em virtude das máximas religiosas e ingerências da igreja, sobre a católica, gerando, desta forma, confusão sobre o que é inerente ao Direito determinar, o que é cabível à moral e sobre a que deve se ater a religião. As consequências disto são, entre outras coisas, esperas por tomadas de decisões judiciais; angústias para os aflitos e ansiosos para realizarem seus propósitos ou sonhos – como ter um filho, mesmo que por métodos artificiais –, incredulidade na laicidade e autonomia dos poderes estatais (legislativo e judiciário, sobremaneira) etc.

Vejamos certas realidades fáticas de penetração e contágio da religião nas decisões da política e do Direito, seja no Brasil, seja no exterior, conforme pesquisas, relatos e registros sociais, ainda recentes do nosso século, o que produz celeumas intermináveis, já que tudo aquilo se é apregoado pelo clero é tido como verdade única, pois tem ordenação ou iluminação “divina”.

Em um trabalho de pesquisa e registro (com publicação) realizado por Tatiana Henrique Leite, graduada em Biomedicina, com especialização em Reprodução Humana Assistida e mestranda em saúde coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em coautoria com o bacharel em Direito e docente da UNESA, Rodrigo Arruda de Holanda, num artigo intitulado “Bioética em reprodução humana assistida: influência dos fatores sócio-econômico-culturais sobre a formulação das legislações e guias de referência no Brasil e em outras nações”, os autores descobriram como é grande a ingerência da crença e das doutrinas sobre o judiciário. Dos noves países avaliados no trabalho de campo, do Oriente ao Ocidente, da África do Sul à Dinamarca, passando pelo Brasil, os pesquisadores deixam claro que o peso e a interferência das ordens monásticas são bastante grandes. Em suas palavras introdutórias já afirmam os pesquisadores: “Foram encontradas grandes divergências entre os países, das quais muitas são determinadas pela religião”[4].Dos 14 itens importantes analisados em relação ao conteúdo da investigação sobre o funcionamento e regulamentação da reprodução humana assistida, um deles voltava-se para identificar a religião de cada nação. Daí os autores do trabalho supra nos deixam a seguinte lição: “A religião predominante de cada país foi incluída devido à possível influência que pode ter sobre essas normas”[5]

Não temos dúvidas que o Estado e a Igreja, o pároco e o político ficaram tantos séculos entranhados e aliados que mesmo as revoluções – onde houve de fato, que não é o caso do Brasil, basta estudar a real História do Brasil – e as constituições não foram capazes de separar, com sinceridade e lisura, o que é dos domínios da ciência jurídica e o que é cabível aos tempos e seus clérigos. Tomemos como exemplo, apenas para demonstrar, o caso da lei do divórcio (Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977) que passo tantos anos sendo engavetada, rejeitada, “excomungada” e travada no Poder Legislativo porque parte dos legisladores incutiram, de tanto ser repetido, cremos, que aquilo que “Deus” une os homens não separam. Então, graças a uma doutrina grupal, mulheres foram exploradas, açoitadas, depreciadas, torturadas e até assassinadas porque não podiam pôr fim a uma convivência de embates, conflitos, discórdias, aflições, horrores, tendo que conviver forçosamente sem amizade, sem amor, sem fraternidade e companheirismo, restando, quiçá, apenas pessoas conviviam embaixo do mesmo teto, mas como inimigos; ou desafetos irremediáveis.

Os homens, os julgadores, e legisladores também, talvez não perguntassem o seguinte: “será mesmo que essas pessoas estão “associadas” ou juntas por desígnio ou propósitos de um deus ou tudo não passa de escolhas próprias, pois temos o poder de pensar, repensar, discutir, ouvir, escolher e decidir? Será que estas pessoas – homem e mulher – estão juntos por “tramas” ou ordenação já nos planos celestiais ou um homem foi atraído pela beleza, a sensualidade, o erotismo, os dotes femininos e agarrou àquela que mais o atraiu e conquistou, por um lado, e uma bela mulher usou suas qualidades femininas para conquistar e se enlaçar com um certo rapaz em virtude de seus títulos, seus rótulos, seus bens, suas promessas – ou a promessa de suas riquezas, por outro lado? Será mesmo verdadeiro que um Ser Soberano de tanta grande está traçando romances terrenos; cuidando de relacionamentos amorosos frustrados, convivências de tormentas, inclusive muito males sucedidos. Num passado não muito distante os barões do café e do açúcar prometeram suas filhas, ainda crianças, aos filhos de outros barões do café, do açúcar, do outro; príncipes foram prometidos a princesas, por séculos, para se somar riquezas, status, domínio e poder sobre os mais humildes, como é sabido de quem conhece a História. Contudo, todos estes encontros e desencontros – possivelmente com tragédias no final – foram imputados a uma escolha e designação de um deus, em tantas crenças.

Uma coisa a humanidade foi percebendo no seu caminhar: as verdades naturais e universais existentes, nem mesmo a religião pode debelar, jamais, como impor amor a quem não ama; querer que algo seja o que não é naturalmente; pintar de justo aquilo que é injusto ou apresentar como verdadeiro aquilo que é falto, ou impor que alguém é bom sendo ele mal, na sua essencialidade, como ocorreram nos domínios dos reinos cristãos da Europa, nos quais reis e príncipes foram coroados por bispos e cardeais como sendo os melhores e mais nobres governantes, mesmo que não tivessem passado de terríveis tiranos, assassinos e genocidas, como foi o caso dos seis mil assassinatos da “noite de São Bartolomeu”, por causas de tramas religiosas.

Como as falácias clericais promoveram polêmicas, divisões e pelejas, desde as famigeradas “guerras santas”, uma coisa é certa: é preciso que a autoridade judiciária e a legislativa evitem misturar e confundir os objetos (ou matéria) da religião com os objetos/matérias jurídicas, com independência das leis e das decisões forenses, orientando-se por aquilo que realmente é e não que se deduz, especula, ou imagina-se que seja.

A estudiosa Christina Féo, advogada, mestra em Bioética pela Universidade Católica Portuguesa e pós-graduada em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra textualiza em seu artigo: “Se o Estado é laico, as normas não poderão ser confeccionadas sob fundamentos religiosos”.[6]

 

2.3 As difíceis conjecturas sobre o embrião humano e o que seria de fato o “ser humano”

Os debates mais intensos continuam pairando sobre qual é a essência e natureza do embrião humano – no sentido científico (genética, medicina, criogenia, microbiologia), no popular e no religioso – já que a casta dos monges católicos, e outras castas, exige que suas versões e visões sobre a vida, ou a existência inicial da vida, o embrião sejam as únicas possíveis e indiscutíveis, pois, se declaram possuidores do saber dos anseios e interesses dos domínios divinos, semelhante ou iguais aos xamãs, adivinhos e visionários das mitologias mais antigas, os quais afirmavam dialogar em lugares distintos com a “própria divindade”. Uma questão é certa: o progresso de todas as ciências, entre as quais a Filosofia, a Antropologia, a Filologia, a Paleontologia, enfim, demonstrou que a existência dos deuses gregos, romanos, egípcios, sumérios, nórdicos etc. nunca foi verdadeira; não passou de construção, repetição e fixação do imaginário popular daquelas sociedades.

Querem os doutrinadores da igreja que o embrião seja um ser humano de todo jeito, à força, impondo-se a todos que pensem como os padres, bispos, cardeais, de forma que a célula embrionária seja detentora de direitos e proteções no mesmo patamar que os seres humanos já constituídos com todas as suas plenitudes. Isto porque imaginam eles, chamados de essencialistas, que desde a fecundação já existe uma vida. De fato, existe uma forma de vida, porém ela já tem mesmo as propriedades de um ser da espécie humana com suas plenitudes, estruturas, faculdades – pensar, agir, reagir, trabalhar, sonhar, construir – ou não passa de um conjunto de células vivas que depende de vários requisitos e um longo caminho até se formar humano. Realmente devemos incorporar a teoria da animação imediata, sustentada pelas religiões tradicionais, por alegarem serem portadoras das “verdades e vontades divinas” para este mundo? Não queremos com isto dizer que um embrião não tem seu valor ou mereça atenção, mas no mesmo status do homem, em geral, construído, é mais complexo, e uma questão de ideologia, ou dogmática sacerdotal. É bom lembrar que muitos mitos e dogmas dos tempos decaíram com crescimento da promoção da instrução secular. Aceitar que um feto é um ser humano, com suas estruturas já definidas é uma coisa; impor e persuadir que um embrião seja da mesma forma é outra coisa. A teoria da animação imediata declara a existência de ânimo no embrião. Contudo, podemos indagar qual é o ânimo do embrião, se mesmo sendo uma forma de vida, não possuir uma estrutura emocional, psíquica, intelectual, moral; um ser sem capacidade nem personalidade, quer no sentido filosófico ou antropológico, quer no sentido jurídico.

 

Já que ela, a igreja, existe como instituição social e pode ter sua serventia, em virtude dos fracassos, medos, misérias, ignorâncias e fraquezas deste mundo, então que seu espaço seja respeitado, contudo ela também precisa respeitar os demais espaços e instituições sociais, com seus valores, seus costumes, seus projetos, suas vontades. Sabe-se que o Direito Canônico foi o código que mais interferiu ou recaiu sobre o Direito Civil, das sociedades ocidentais, sobretudo nas questões do Direito de Família. Legisladores e magistrados, quem sabe atrelados também às crenças, ritos e rótulos, talvez acreditando e temendo que os clérigos tivessem algum poder especial e lhes amaldiçoassem nesta vida, legislaram, julgaram e decidiram conforme os votos dos papas, cardeais, bispos, cônegos, presbíteros, “pastores”, enfim.

No Brasil, seus principais representantes são as religiões tradicionais cristãs. Aqui abordagem se restringe à posição da Igreja Católica através de seu magistério. É inegável sua presença na esfera pública, tanto nas questões sociais como nos assuntos relativos à sexualidade e à reprodução humana. A igreja não se limita à orientação pastoral de seus fiéis. Sua atuação chega às instâncias do Estado. Existem grupos de pressão no poder legislativo e no judiciário. Basta recordar a ação de inconstitucionalidade (ADI) 3.510 contra o artigo 5º da lei de Biossegurança. No STF, a CNBB foi representada como parte interessada no processo.[7]

 

Ideias, construções imaginativas, devaneios, pontos de vista sobre este ou aquele tema a mentalidade humana é capaz de realizar, através do conhecimento científico, do filosófico, do popular etc., conhecimentos estes que podem ser observados, mensurados, comprovados, ou não, sem exceção. No entanto, o único “conhecimento” que se declarou irrefutável no decorrer dos tempos foi o religioso, pois tido como inspirado em forças divinas. Não é novidade que algumas teologias – na verdade, catequese, pois estudada nos mosteiros ou seminários, e não nas universidades, neutras e sem influências e contágios doutrinários – procuraram submeter a Filosofia, bem como a tantas outras ciências, sobremaneira as da natureza. Desta forma tudo aquilo que os monges disserem devem ser aceitos como inquestionável, pois é um bem, uma fala, uma orientação ou um valor de origem sagrada. Mas, tudo isto é cabível de discussão.

A igreja diz que é inaceitável e abominável várias coisas. Entre tantas coisas estão o congelamento e manuseio de embriões humanos; as técnicas de reprodução assistidas (TRAs), o homossexualismo, a usura, o sexo antes do casamento, o descarte de embriões etc., já que ela alega que algumas coisas são sagradas – o matrimônio, por exemplo – e por isto não admitem outra forma de ser e se visualizar a não ser a da religião. Porém, podemos fazer algumas indagações sobre isto. Se o matrimônio é esta coisa tão sublime ou sagrada porque os sacerdotes não procuram se casar? Se a paternidade, a maternidade, a filiação é um presente de Deus eles não deveriam ser os primeiros a buscarem ser pais? Quantos filhos têm os bispos, os padres, os cardeais que recomendam a maternidade e a paternidade de forma incondicional, mesmo diante de alguma anomalia genética, ou aberração, como dizem alguns, já que tudo isto é projeto divino e não resultado das escolhas, dos sonhos, dos projetos humanos? Qual é o eclesiástico que tem um filho portador de tetraplegia, nasceu sem cérebro (anencefalia)[8] ou é portador de Síndrome de Down? Se uma coisa é tão notável, celestial, da divindade, porque não temos para nós mesmos? Como podemos ensinar, apregoar ou disseminar algo e agir de forma contraditória? Será quê o que estão imputando a um ser Divino tem, realmente, alguma pretensão, ou desejo, Dele naquilo que as ações humanas estão realizando? Por 175 anos, período total de duração das nove cruzadas, guerreiros cristãos (os cruzados) marcharam para o Oriente, “orientados” e “instruídos” por papas e bispos, para lutarem contra árabes e judeus, sob a falácia que deus tinha dito; deus queria, deus estava mandando... Em virtude da alegação que o cristianismo era a melhor, ou mais pura, ou a única religião legítima e verdadeira, através do papado e seus ministros, capaz de agradar aos anseios de um deus, incontáveis pessoas, quiçá milhares ou milhões, foram torturadas, queimadas, guilhotinadas, esquartejadas por serem adjetivadas de hereges, blasfemos, ateus, diabólicos, malditos, anticristos e outros termos próprios dos dicionários ou vocabulário da “teologia” cristã? Quem disse que Aquele quê realmente É precisou de lutas, generais, guerreiros ou cruzados, mercenários, assassinos, símbolos, rituais, títulos, crenças para Ele ser Supremo, Eterno, Altíssimo?

Muito embora não seja oportuno tratar neste trabalho, pois, demandaria tempo e, possivelmente, afastamento da temática original, além de tornar o texto mais extenso, é possível afirmar que as teses e discussões de homens e cientistas como Nicolau Copérnico (astrônomo, matemático, médico, juristas), Galileu Galilei (físico, matemático, filósofo e astrônomo), Giordano Bruno (teólogo, filósofo, escritor, membro da Academia Florentina etc.), Baruch Spinoza (filósofo, escritor, orador) e Leonardo da Vinci (anatomista, matemático, naturalista, arquiteto, escultor etc.), em relação aos diversos ideários e “roteiros” da igreja, estavam certas e precisas.

 

2.4 O excesso de normas legais existentes, mas não cumpridas

É cediço que a ordem jurídica pátria tem uma Constituição extensa, alguns códigos complexos, além de leis complementares, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos, resoluções, conforme prevê o art. 59, inciso I a VII – do processo legislativo, da Norma Mãe (Lex Mater), aditando-se a tudo isto decretos presidências, decretos governamentais, portarias, enfim. Neste contexto legal, temos algumas leis bem específicas, ordinárias, denominadas de estatutos, talvez para dar mais ênfase à matéria ou aos seus beneficiários, como é o caso do Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964), Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973), Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003), Estatuto das cidades (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001) e vários outros estatutos, talvez, mais, ou menos, importantes. A realidade fática é que tais estatutos não passam, ou podem não passar, muitas vezes, de um conjunto de normas ocupando espaço na ordem jurídica, dificultando a atividade de juízes, juristas, advogados, professores, promotores, estudantes e, sobretudo, dos necessitados de uma ordem jurídica justa, eficaz, honesta, humana...

É possível, certamente, demonstrar-se os exemplos da inutilidade ou não efetivação de tantos dispositivos legais vigentes, mas peguemos apenas alguns mais visíveis, diuturnamente.

O Estatuto da Terra, associado, ou combinado, com os art. 184 a 191 da Constituição da República, está em vigência, contudo os grandes latifúndios continuam existindo, trabalhadores rurais permanecem produzindo riquezas para grandes pecuaristas, produtores rurais e latifundiários, enquanto aqueles permanecem sem chão, sem habitação, sem pão, sem quase nada, a não ser a obrigação – pela miséria e pela fome – de produzir, plantar, colher sem nunca possuir seu próprio lote de terra. Outra lei em vigor e vigência é o Estatuto do Índio, que, de qualquer forma, tem suas terras tomadas e famílias ameaçadas, reprimidas, oprimidas pela força das armas, que podem ser de poderosos fazendeiros, produtores rurais, madeireiros, empreiteiros etc., ou do próprio Estado em favor destes últimos, como se vê nos noticiários. Desde os anos 2001 entrou e vigor, e passou a “valer”, o Estatuto das cidades, com direito à criação de um ministério, surgindo também o ministro das cidades. Entretanto as cidades brasileiras estão desordenadas, muitas delas mal iluminadas, com rios poluídos e aumentando o assoreamento, umas ruas necessitando de calçamento e outras ou de pavimento, a violência em alta, rede de esgotos e distribuição de água potável não existe para todos, o sistema de trânsito está caótico, o imposto predial e territorial urbano aumentando e a população com suas cidades por conta do “deus dará”. O Estatuto do Idoso é recheado de benevolências e proteção para os maiores de 60 anos, garantindo-se a eles todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (não sabemos se há outro tipo de pessoa), os do artigo 5º e incisos, da Carta Política, sobremaneira, além dos direitos fixados no próprio estatuto. Vejamos a redação da lei 10.741, de 01/OUT/03.

Art. 2º. O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

 

Infelizmente, a lei, o Estado e os governantes dizem uma coisa e a realidade trata de provar o inverso, mostrando que igual ou semelhante ao trabalhador do campo, ao índio, à juventude, idosos estão entregues à própria sorte, pois, não possuem nem atendimento digno e humanitário nas filas da previdência social, onde têm que esperarem por horas e horas, ou quem sabe dias, para conseguirem uma “audiência” para iniciarem um processo de aposentadoria, uma perícia médica, uma correção no valor do pagamento de seus salários. Qual é a dignidade que estão dando ao idoso se não tem tratamento médico-hospitalar suficiente e decente para todos, já que muitos aguardam semanas, ou meses, para conseguirem marca, ou registrar, por telefone, uma consulta com o especialista que necessitam, junto ao Sistema Único de Saúde (SUS)[9] – que não é único, pois existem os sistemas de saúde privados para quem pode pagar? Quem estar vendo sendo assegurado ao idoso por meio da lei ou por outros meios todas as oportunidades e facilidades para a preservação e aperfeiçoamento dos idosos? Qual é o idoso que está sendo valorizado e protegido por seu estatuto, numa República onde as leis da reforma trabalhista e previdenciária estão querendo impor que os brasileiros, inclusive idosos, trabalhem até se debilitar, envelhecer e se findar sem direito, pelo menos, a uma digna aposentadoria, suficiente para lhe proporcionar o atendimento de suas necessidades vitais básica?

Em meio a toda esta situação jurídica é possível que não necessitemos, de forma desesperadora, como alguns querem, de uma lei ordinária específica, chamada em alguns países de “Estatuto do Embrião”, para regular os assuntos mencionados no limiar deste trabalho, já que temas como a criopreservação, a doação de gametas, óvulos, embriões, as técnicas de reprodução assistida e coisas correlatas são conteúdos com normatização prevista na Resolução 2.121, do Conselho Federal de Medicina (com seus 8 capítulos e 40 dispositivos) e na Lei nº 11.105/05, nomeada de Lei da Biossegurança. Sem se falar no Código de Ética Médica, Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009, com dezenas de artigos disciplinando condutas, exigindo regras, colocando limites etc. etc., igual ou semelhante ao que faz o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.

Não é sensato continuarmos editando normas legais, sem cessar, se não estão dando conta de efetivar ou realizar nem as disposições legais já existentes, há décadas, como, por exemplo, o Estatuto da Terra ou o Estatuto do Índio, tão negligenciados nesta República, onde a coisa pública (res publica) diariamente é furtada, desviada, extraviada aqui, ali e alhures. O que mais se vê nos jornais, nacionais ou locais, são prefeitos e prefeituras, governadores e palácios, senadores, deputados e outros agentes políticos desfalcando a República e arruinando a Democracia – caso ainda possamos chamar o atual regime de governo do Brasil, de Democracia –, inclusive rompendo com as leis e a “mãe” delas.

 

2.5 As diferentes realidades sociais entre os países

 

Alguns países, sem dúvida, já possuem um “estatuto para o embrião humano” – na verdade normas legais que dispõem sobre as técnicas de reprodução humana e materiais genéticos a elas associados –, mesmo que sejam poucos, ou pouquíssimos, uma vez que determinados países usam algum guia de referência, como é o caso do Brasil, China, Egito e Índia, como apontou as pesquisas da especialista em reprodução humana assistida e mestra em saúde coletiva, também graduada em Biomedicina, Tatiana Henrique Leite. Destes Estados nacionais que já têm legislação própria, vários deles, uma boa parte, figuram como Estados e/ou Nações que atingiram um determinado grau de evolução política, social, filosófica, moral, econômica e jurídica considerável. A Dinamarca, Israel, Itália, Espanha são arquétipos de nações que podemos enquadrá-las, possivelmente, ou certamente, neste processo de amadurecimento, os quais tratam destes assuntos (criogenia, TRA, status embrionário etc.) em seu ordenamento jurídico, político e social. É bem provável que nestas nações suas populações tenham chegado a uma qualidade de vida, um status existencial de realização de suas necessidades vitais básicas, atribuída pelas suas constituições e suas estruturas legais.

Diferentemente, em países como o Brasil, ainda não foi efetivado, se quer, os direitos e garantias fundamentais, registrados nos artigos iniciais da Carta Suprema – 1º ao 9º, com seus incisos e parágrafos – existente de 1988. Promessas de direitos que em breve completarão 30 anos sem que eles se realizem, uma vez que saúde, educação, habitação, segurança, profissionalização etc. etc. não estão chegando para todos, nem mesmo à maioria do Povo, pois, cotidianamente, a população clama por todos estes bens jurídicos, ou naturais (usando-se aqui a filosofia do jusnaturalismo), no entanto eles permanecem sendo de uso dos economicamente melhores, já que as rendas da maior parte dos brasileiros mal dá para garantir alimentos e habitação de qualidade.

É muito difícil acreditar que uma sociedade está preparada para discutir, fomentar, pensar, decidir sobre questões embrionárias, técnicas de reprodução humana, doação de material genético e temas do gênero, se ela, pelo que nos figura, nunca procurou tratar, cuidar, revolver e efetivar seus direitos constitucionais, há quase três décadas não materializados. Insegurança pública, declínio na saúde, colapso na educação, escassez na habitação são exemplos de direitos sociais, coletivos ou individuais, não desfrutados pelos cidadãos em geral, mesmo que se elevem os tributos, aumentem a arrecadação da Fazenda Pública, mas sem compensação social. Seria oportuno se tornar eficaz e verdadeiro, primeiramente, a realização das necessidades humanas, conforme supra exposto, da parte mais carente da conjuntura social, para depois se debater e resolver outras situações, secundariamente, isto sem negar que um embrião seja valorado, contudo que se resolvam as misérias ou infâmias dos que já estão pelejando nesta República.

Garantias por meio de normas legais são o que não faltam na estrutura legal pátria, mesmo que, tudo indica, não passe ficção, para incontáveis. São tantas que bastaria que se cumprissem apenas alguns dispositivos para se promover mais paz e justiça social, como, v. g., são os bens constitucionais elencados no Art. 6º da Carta Magna. Citemos, também, o art. 7º, inciso IV, que diz:

 

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender as suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;[10]

 

É interessante que se pode perceber que uma das teses que as religiões invocam para proteger e sacralizar o embrião, exigindo que os Estados editem normas sobre a matéria, é a noção de dignidade da pessoa humana, juntamente com outras teorias clericais (se é que se possa chamar de teoria), como a alegação de que a conjunção carnal afetiva deve, ou deveria ser, a única forma de procriação aceitável e posta por uma divindade.

Passemos a transcrever algumas poucas linhas do trabalho do doutor Élio Gasda, oriundas do seu artigo sobre a criopreservação e a reprodução assistida, quando da análise e exposição de dois argumentos da igreja sobre tais assuntos, no qual o autor diz:

 

Quanto ao segundo, o Magistério argumenta contra a moralidade das TRA com base no princípio da inseparabilidade dos significados unitivo e procriativo da relação sexual: a procriação humana exige uma colaboração responsável dos esposos com o amor fecundo de Deus; o dom da vida humana deve realizar-se no matrimônio, através dos atos específicos e exclusivos dos esposos, segundo as leis inscritas em suas pessoas e na sua união (DV 5b).[11]

A sexualidade e a reprodução estão confinadas ao matrimônio. E as TRA são métodos extra-coito de concepção, ou seja, separam o duplo significado (unitivo e procriativo) do ato sexual. Os dois argumentos aparecem no parágrafo 14 da Evangelium Vitae, conforme citado no início deste artigo. O Magistério argumenta que as TRA violam os relacionamentos conjugais, portanto, ameaçam e estabilidade da família.[12]

 

Na sequência do texto, E. Gasda, explicita outro “argumento” ou discurso defendido pelo Magistério, assim nominado pelo autor no decorrer do seu artigo, dizendo:

 

As técnicas de fecundação in vitro são contrárias à dignidade do ser humano própria do embrião e, ao mesmo tempo, lesa o direito de cada pessoa a ser concebida e a nascer no matrimônio e pelo matrimônio. Também as tentativas destinadas a obter um ser humano sem conexão alguma com a sexualidade, mediante fissão gemelar, clonagem ou patogênese, devem ser consideradas contrárias à moral por se oporem à dignidade tanto da procriação humana como a união conjugal. (DV 6ª).[13]

 

A questão é saber quantos seres humanos, brasileiros, ou não, que estão residindo e trabalhando neste País e vivendo com sua dignidade humana garantida, com um salário mínimo equivalente a menos de mil reais. Trabalhadores do comércio, da indústria, da zona rural, do agronegócio estão vivendo, ou melhor, sobrevivendo, com renda muito aquém daquilo que é necessário para se efetivar uma vida digna, com qualidade e satisfação. Os nascidos vivos, já com todas as suas estruturas desenvolvidas – física, psíquica, neurológica, intelectual, emocional – e projetos pessoais arquitetados não estão tendo, ainda, o princípio da dignidade da pessoa humana concretizado, pois, sua condição humana denota isto, diariamente. Como se falar, discutir e garantir o princípio da dignidade humana para os embriões, numa sociedade na qual as massas estão sobrevivendo, mesmo que produzindo riquezas, sem pão, sem habitação, sem instrução, sem profissionalização, sem saúde e lazer, sem representação, sem opinião nem opção?

 

3. Conclusão

A sociedade brasileira tem uma quantidade considerável de normas, constitucionais e infraconstitucionais, inclusive conflitantes entre si, e, pior que tudo, não cumpridas, de forma que o texto legal diz uma coisa e a realidade fática revela outra, porquanto que ainda não estão garantidos, sequer, os direitos fundamentais básicos de trabalhadores de todos os setores da economia – indústria, comércio, pecuária – e nem mesmo daqueles que deveriam estar assegurados por um sistema previdenciário qualificado. Com isto ela tem também, a população brasileira, problemas coletivos e individuais, que são vitais, saúde e educação públicas, por exemplo, não resolvidos, diferentemente de países mais organizados, ou desenvolvidos, ou mais ricos, ou, quiçá, com uma administração pública muito maior em justiça, honestidade, eficiência, moralidade e legalidade – no sentido de efetivar a redação das leis.

As questões sobre técnicas de reprodução humana assistida, maternidade de casais homossexuais femininos, uso de material genético – óvulo, oócitos, espermatozoides, embriões etc. – e outras temáticas já são tratadas na resolução nº 2.121, do Conselho Federal de Medicina, e outros instrumentos legais supracitados, de forma que se pode afirmar que existem preceitos reguladores da conduta de médicos, geneticistas, engenheiros genéticos, biomédicos, capazes de nortearem as práticas da TRA e outras condutas ou procedimentos médicos, necessitando-se, certamente, que sejam respeitados e postos em prática cada preceito “positivado”.

Sem dúvidas é importante zelar e valorizar as coisas, os bens, os conhecimentos – os prováveis, sobretudo (aqueles que não dependem de credo) – a vida, os seres. Contudo, também, é de suma importância identificar, analisar, conceituar, definir e separar com clareza umas coisas das outras, um fenômeno do outro, desta forma procurando-se evitar confusão de significados, de valor, de natureza, de conteúdo e, consequentemente, embaraços para o jurista, o legislador, o magistrado ou mesmo um profissional da área de saúde, não especializado em dados conhecimentos (técnicas de reprodução humana, e. g.) quanto ao entendimento do que algo é, de fato, e o que poderá vir ser, ou não, sem a imposição ideológica ou a ingerência de uma instituição, um poder, uma autoridade, que colocar seus “saberes” como infalíveis e acima de todos os outros.

Referências bibliográficas

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ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Et all. Temas de filosofia. 3ª edição, revisada. São Paulo: Moderna, 2005.

________, Filosofando: introdução à Filosofia. 4ª edição. São Paulo: Moderna, 2009.

CLÉMENT, Elisabeth; DEMONQUE, Chantal et. all. Dicionário prático de filosofia. Título original: Pratique de La Philosophie, de A a Z. Edição original: Hatier, Paris, 1994. Tradução: Manuela Torres; Madalena Bacelar et. all. 1ª edição portuguesa: Terramar, Maio de 1997.

DOS SANTOS, Mário Ferreira. Convite à filosofia e à história da filosofia. 4ª edição. São Paulo: Livraria e Editora Logos, 1966.

FRANCISCO, Caramuru Afonso. Estatuto da cidade comentado. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001.

GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito, 42ª edição, atualizada. Rio de Janeiro, Forense, 2010.

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KRISHNAMURTI, Jiddu. A primeira e última liberdade. Tradução: Vera Martins. Rio de Janeiro: Nova Era, 2015.

VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003 – (Coleção a obra-prima de cada autor).

 

Leis

Brasil. Constituição de República Federativa do Brasil, Brasília/DF, de 5 de outubro 1988, publicada no Diário Oficial da União em 5 de outubro de 1988 .

Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 3ª edição. Brasília: Secretaria de documentação, 2010.

Brasil. Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, Brasília/DF, publicada no Diário Oficial da União de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da terra).

Brasil. Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, Brasília/DF, publicada no Diário Oficial da União de 21 de dezembro de 1973 (Estatuto do índio). 

Brasil. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, Brasília/DF, publicada no Diário Oficial da União de 11 de julho de 2001 (Estatuto das cidades).

Brasil. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, Brasília/DF, publicada no Diário Oficial da União de 3 de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso).

Brasil. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, Brasília/DF, publicada no Diário Oficial da União de 6 de agosto de 2013 (Estatuto da juventude).

Brasil. Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, Brasília/DF, publicada no Diário Oficial da União de 28 de março de 2005 (lei de biossegurança).

Brasil. Resolução nº 2.121, de 16 de julho de 2015, do Conselho Federal de Medicina.

 

Revistaria

Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutiva. Revista Pistis Praxis, v. 7, nº 3, Curitiba, p. 635-661, 2015, disponível em https://www.2pucpr.br/reol/pb/index.php/pistis?dd1=15944&dd99=view&dd98=pbcapturado em 23/09/17.

Um estatuto para o embrião humano. Revista Bio&thikos – Centro Universitário São Camilo, Portugal, p. 274-284, 2010, disponível em https://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethicos/78/Art03.pdf, capturado em 02/10/17.

Bioética em reprodução humana assistida: influências dos fatores sócio-econômico-culturais sobre a formulação das legislações e guias de referência no Brasil e em outras nações. Physis Revista de saúde coletiva, Rio de janeiro, p. 31-47, 2014, disponível em https://www.scielosp.org/pdf/physis/v24n1/0103-7331-physis-24-01-00031.pdf, capturado em 02/10/17.

 

[1] Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutiva. Revista Pistis Praxis, Curitiba, v 7, n. 3, 2015, p. 654-655, disponível em https://www.2pucpr.br/reol/pb/index.php/pistis?dd1=15944&dd99=view&dd98=pb, capturado em 23/09/17.

[2] Aqui, por Deus, não estamos nos referindo a nenhum ser personificado, idealizado, nominado e  projetado por nenhuma ordem religiosa, mas sim aquele que tudo É desde o princípio – um Ser Soberano, sem nome, sem forma, não conhecido, princípio motor de todas as forças, seres, poderes e elementos, que nunca foi conhecido, sondado ou apreendido por nenhuma religião, sacerdote, rótulo ou ritual.

[3] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito, 42ª edição, atualizada. Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 67.

[4] Bioética em reprodução humana assistida: influências dos fatores sócio-econômico-culturais sobre a formulação das legislações e guias de referência no Brasil e em outras nações.Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, nº 1, 2014, p. 31, disponível em https:/www.scielosp.org/pdf/physis/v24n1/0103-7331-physis-24-01-00031.pdf, capturado em 02/10/17.

[5] Ibidem, p. 35.

[6] Um estatuto para o embrião humano. Revista Bio&thikos. Centro Universitário São Camilo, Portugal, v.4, nº 3, 2010, p. 276, disponível em https://www.sãocamilo-sp.br/pdf/bioethicos/78/Art03.pdf, capturado em 02/2017.

[7] Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutiva. Revista Pistis Praxis, Curitiba, v 7, n. 3, 2015, p. 647, disponível em https://www.2pucpr.br/reol/pb/index.php/pistis?dd1=15944&dd99=view&dd98=pb, capturado em 11/10/17.

[8] A anencefalia é uma má formação rara do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural nas primeiras semanas da formação embrionária, conforme conceito, ou definição, dado pelos editores da enciclopédia eletrônica Wikipédia.

[9] O Descrédito no sistema único de saúde (SUS), brasileiro, é tão grande, que há quem diga que a sigla SUS significa seu último suspiro.

[10] Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 3ª edição. Brasília: Secretaria de documentação, 2010, p. 414.

[11] É oportuno esclarecer que a sigla DV que aparece no texto de Estanislau Gasda significa “Donum Vitae”, do latim, que traduzido em português é “vida em casa”.

[12] Ibidem, p. 648.

[13] Ibidem, p. 649.