ESTADO DE MATO GROSSO

SECRETARIA DE ESTADO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE PONTES E LACERDA

DEPARTAMENTO DE LETRAS 

 

SOLANGE PAGLARINI CRESCENCIO

 

Como se configuram autor, narrador e personagem

na obra A hora da estrela de Clarice Lispector

 

Orientadora: Maria Inês Parolin

 

 

 

 

 

 

 

Pontes e Lacerda

2007

 

 

 

 

SUMÁRIO

 

 

 

INTRODUÇÃO...............................................................................05

 

1 - Percurso literário em A Hora da Estrela....................................07

 

2- As mazelas de  A Hora da Estrela e Vidas Secas.......................18

 

3- Considerações finais...................................................................24

 

4- Referências.................................................................................26

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Introdução

           

Não desconsiderando as diversas camadas semânticas que A Hora da Estrela (1978) de Clarice Lispector possui, e que fazem dela singular no meio literário, propomo-nos abordar aqui a constituição do narrador nesta obra, que se configura através de sua relação com o personagem e a própria narrativa. E como a mesma resolve esteticamente diante das questões postas pelo regionalismo brasileiro. Para tal percurso estaremos nos embasando na hipótese de Vilma Arêas.

 

Nossa discussão acerca da obra tem como primeiro ponto explorar a relação entre autor, personagem e narrador, pois percebemos que quando essas três categorias narrativas extrapolam os limites tradicionais das narrativas de até então, há questionamentos da ambigüidade entre ficção ou realidade.  Essa ambigüidade ocorre na obra quando o narrador se confunde com autor gerando dúvidas: quem narra é a autora? Simultaneamente esse jogo de identidade é o que alimenta a ficção da realidade social, gerando o sentido poeticamente engajado da obra.

 

 E como segundo ponto a proposta de trabalhar a tradição regionalista no romance brasileiro enfocando A Hora da Estrela que, na década de 70, Lispector cria uma personagem já emigrada, o migrante já não é mais descrito como retirante e sua história é contada a partir do lugar para onde emigrou. E Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos é uma obra que se insere no ciclo que, na década de 30, cria um personagem na condição de tema, de objeto da narração tratada como retirante.

 

 Esperamos trabalhar com as principais abordagens sobre a obra da autora em específico A Hora da Estrela. Para tal faremos um percurso que se insere em uma linha de estudos que toma corpo na fortuna crítica da autora como: Antonio Candido - No Raiar de Clarice Lispector (1943), Benedito Nunes - O Drama da Linguagem - uma leitura de Clarice Lispector (1995), Berta Waldman - A Paixão Segundo C.L. (1992) e Vilma Arêas - Clarice Lispector com a ponta dos dedos (2005).

 

Através deste percurso podemos dizer que a trajetória estética da autora resolve simbolicamente questões que, colocadas pela tradição literária brasileira desde a sua estréia com Perto do Coração Selvagem (1944), a mesma desenvolveu um tipo de ficção inconfundível. Em especial, A Hora da Estrela, que se assenta numa ruptura da tradição literária, no que diz respeito a algumas categorias narrativas, assinalada por novos procedimentos, como podemos perceber na obra, quando a escritora confunde os papéis do narrador por meio do personagem Rodrigo S.M..

E também não podemos deixar de mencionar que Guimarães Rosa em Vidas Secas renovou a tendência regionalista, através da criação poética de um sertão imaginário, a partir de vivências do homem da região centro-oeste do Brasil. E décadas mais tarde Clarice Lispector cria Macabéa que sai do sertão de Alagoas para o Rio de Janeiro e mostra-nos esse ser, que não sabe o quem é, o que a torna incapaz de impor-se frente a qualquer um. 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. Percurso literário em A Hora da Estrela

 

Candido, no século XX, soube através de seu olhar crítico, apostar no estilo de uma autora, até então desconhecida, após ler seu primeiro romance Perto do coração selvagem (1944). Segundo o crítico “(...) êste romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios poucos explorados.” (CANDIDO, 1943:127).

 

O crítico observou um elevado grau de investigação da linguagem no qual a constituição e o valor dado ao escritor moderno também é um dos enfoques dados por Clarice Lispector que, tece toda uma abordagem estética acerca do fazer literário e do ofício de escrever. Diante de “um certo conformismo estilístico” dos autores brasileiros da época, com exceção de alguns, Lispector  “soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêm mais do que sons ou sinais.” (CANDIDO, 1943:131) A autora desde sua estréia já demonstrava o famoso  “ritmo da procura”, segundo o que foi detectado pelo crítico.   

 

    Na década de 80 Nunes define Lispector como a autora de uma ficção “introspectiva”, na qual associa à palavra a condição humana e ultrapassa o limite do imaginário e, através da palavra, alcança o introspecto do universo da alma humana desde a sua estréia em Perto do Coração Selvagem (1944)Segundo o autor esse seria o canal para a:

 

(...) problematização das formas narrativas tradicionais em geral e da posição do próprio narrador, em suas relações com a linguagem e a realidade por meio de um jogo de identidade da ficcionista consigo mesma e com seus personagens. (NUNES, 1995:161)

 

            Nunes aborda a relação da estética com a ética tratando A Hora da Estrela (1978) como o princípio compositivo do jogo de transfiguração de identidades. Autor, narrador e personagem apresentam seus desempenhos constantemente intercambiados. O autor não se esconde por trás de um narrador, mas com ele se confunde. O narrador não se distancia da personagem para apreendê-la com neutralidade, mas nela se projeta, projetando sobre ela também o autor. A narrativa ficcional não é um espelho que devolve uma imagem que se pretende fiel à realidade. Na verdade, empreende um movimento refletor e questionador ao mesmo tempo, ou seja, especulação, sondagem da realidade na linguagem.

 Lispector constitui este intercambio entre autor, narrador e personagem de maneira que podemos segundo Nunes, observar três histórias que se conjuga em uma:

 

A primeira conta a vida de uma moça nordestina que o narrador, Rodrigo S.M., surpreendeu no meio da multidão. A segunda história é a desse narrador interposto, Rodrigo S.M., que reflete a sua vida na personagem acabando por tornar-se dela inseparável. E a terceira história – a história da própria narrativa. (NUNES, 1995:161, 162)

 

 

Estabelecem-se, assim, uma estreita ligação entre autora, narrador e personagem nesta obra. Eles se confundem, e ao mesmo tempo são diferentes. Observando sob o viés de Nunes, as três tramas imbricadas em A Hora da Estrela que foram citados, conduzem o material de reflexão oferecido pelo autor da fábula ao leitor: os vários caminhos do ser moderno, que é, por sua vez, representado pelo narrador Rodrigo S. M. Ele não se atém a uma idéia linear, mas provoca desequilíbrios por sua instabilidade na relação com a escrita e com a protagonista.

 

Segundo Nunes em A Hora da Estrela Lispector desvenda e revela artifícios do ofício de escrever, da arte literária e da palavra, partindo de uma tessitura que enlaça autor, narrador e personagem, que encanta e fascina. Apresenta como ponto principal o questionamento do ser, o estar no mundo, o intimismo, o estudo do ser humano, um jogo de antíteses marcado pelo “eu” e pelo “não eu”, o “ser” e o “não ser”.

 

O texto construído coloca o leitor, a todo instante, em contato com os desvios de rumo e esclarecimentos de Rodrigo S.M., expondo a uma elaboração detalhada. Movimento que nos remete a sua dificuldade de encontrar sua identidade.

 

 Característica que Candido classifica em termos de fortuna crítica como pertencente ao romance moderno: “O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais esse sentimento de ‘dificuldade’ do ser fictício, diminuir a idéia de esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção do romancista.” (CANDIDO, 2002: 59). 

 

Na década de 90 Waldman define A Hora da Estrela como a obra de Clarice Lispector que articula vários pontos de suas ficções de até então: o problema da representação e a impotência da linguagem para comunicar o essencial; a dificuldade de compreensão para falar de um sujeito de uma classe sendo de outra classe; o problema da fome e da miséria, das desigualdades sociais e as suas conseqüências, e também uma questão mais complexa, que é a da relação do escritor e a da literatura com o mercado e com a indústria cultural. “Este livro dialoga com todo o universo ficcional de Clarice, repontando, nele, questionadas, ironizadas e sofridas, as perplexidades da narrativa moderna em geral, e as de sua ficção em particular.” (WALDMAN, 1992:92). Há, portanto, uma complexidade estrutural e importante nesse pequeno livro, aparentemente tão simples.

 

 A autora começa por quebrar a ilusão da realidade da narrativa ao assinar “Dedicatória do autor (Na verdade, Lispector)” (LISPECTOR, 1992:09). Ao contrário da narrativa realista, que adotava estratagemas para disfarçar a voz do narrador e assim dar a impressão de que a narrativa se conta por si própria, Clarice não só inventa um narrador que expõe seu processo criativo, como também revela em algumas passagens que está por trás da escritura.

 

A sugestão de vários títulos foi inovadora. Podemos ler o livro sob a perceptiva de determinado título, e teremos um novo enfoque que pode ser dado à saga da nordestina, como menciona Arêas.  Vale mencionar que o título que sobressai aos outros treze títulos A Hora da Estrela, se faz presente em toda a obra: no começo do livro, onde os títulos estão dispostos de forma que lembram à ponta de uma estrela; quando o narrador menciona que a personagem sonha em ser uma estrela de cinema e no final, quando Macabéa é atropelada e morta por um carro Mercedes Bens, cujo símbolo é uma estrela.

 

 Longe de se disfarçar o tempo todo atrás de personagens ou das vozes narrativas, o narrador/autor em A Hora da Estrela se revela claramente, confundindo o leitor ao colocar em dúvida, logo no início da obra, a autoria da narração. Quem enuncia é o autor “na verdade Clarice Lispector”, ou o narrador/autor Rodrigo S. M.?  O narrador representa uma forma de ser e de escrever de Clarice.

 

No plano no discurso, as figuras do autor e narrador também se confundem. Ao contrário das dedicatórias tradicionais em que normalmente se homenageia em linguagem simples, pessoas queridas ou marcantes na trajetória do escritor, Clarice faz deste recurso também espaço de criação, cujo tom poético estabelece uma continuidade com as primeiras linhas do romance. “Clarice Lispector rompe com as regras do jogo. Ela tira a máscara de romancista e desloca-se para dentro do texto quando se declara idêntica ao narrador.” (WALDMAN, 1992:100).

 

A autora não esconde, dessa forma, que Rodrigo S.M. é uma máscara. E que ela busca uma capacidade de “ser o outro”, de despersonalizar-se para poder captar a existência do outro pelo exercício da linguagem. O escritor através deste reconhecimento consegue, pelo procedimento estético, expressar com veracidade a realidade humana.  Na dedicatória, Clarice assume: “Esse eu que é vós pois não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter em pé tão tonto que sou, eu enviesado (...)” (LISPECTOR, 1993:21). Esta é uma questão posta pela literatura moderna. Ela encena um dilema para a consciência moderna em geral: quem é o outro? Até que ponto eu o enxergo em si e não filtrado por mim mesmo?

           

Se na narrativa realista e romântica, a narração não costuma ser tematizada, neste romance, o ato de narrar sobressai-se como um tema, que se entrecruza com o que é narrado. Assim, A Hora da Estrela é um romance sobre uma imigrante nordestina, sobre um escritor no ato da criação e também, sobre o processo escritural.  E não apresenta solução, imediata ou conciliatória para a questão. Continua a noção dramática em Clarice, ou seja, ela não conta, não tematiza, coloca para ser encenado na obra. A autora tematiza o centro dos conflitos, para eles não traz soluções homogeneizadoras, antes trágicas. Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que  seja o que quer dizer ‘realidade’ .(LISPECTOR, 1999:17)

           

Ao contrário da tônica de grande parte da ficção da autora, na qual os fatos são pretextos para uma sondagem da existência interior, o narrador se diz apaixonado por fatos e propõe-se debruçar exclusivamente sobre eles. “Estarei lidando com fatos como se fossem irremediáveis pedras de que falei.” (LISPECTOR, 1999:17) Lispector opta, portanto, por desenvolver uma narrativa a partir de uma pessoa fixa, instaurando um jogo no qual assume, de maneira explícita, um fingimento que afirma a autonomia da literatura face à realidade.

 

A narrativa em sua totalidade é minuciosamente contada por um suposto narrador que atrás de si se esconde, mas deixa uma revelação da própria autora. Uma obra que revela uma vida em conflito consigo mesma, uma psicografia de Clarice Lispector e revela também, segundo Waldman, uma história em que se entrelaçam três: A da autora, que se declara presente na obra na dedicatória Dedicatória do autor ( Na verdade Clarice Lispector), o narrador que ao mesmo tempo que relata  a vida da nordestina , relata a sua própria. Desculpai-me, mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco, pois descobri que tenho um destino. (LISPECTOR, 1999:15) e a construção da própria narrativa.

 

Observamos que é quase impossível delimitar onde inicia a apresentação da autora ou das suas personagens: é nesse momento que podemos procurar enxergar uma incógnita na literatura clariciana. É o que Arêas coloca como jogo estético, isto se deve ao fato de a escritora fazê-lo personagens, tentando até mesmo se excluir como narradora, mas que por fim, acaba por se revelar, mostrando realmente quem era, além de narradora, também personagem na figura de Rodrigo (narrador - personagem criado por Clarice): Rodrigo que também às vezes se confundia com Macabéa, personagem criada por ele (e conseqüentemente por Clarice).

 

  O problema da pobreza e da marginalização das classes sociais oprimidas aparece de forma explícita, configurando na personagem central do romance, Macabéa, moça retirante nordestina que sobrevive em uma cidade onde tudo esta contra ela. Este é um problema que persegue a tradição literária desde a sua fundação. A obra apresenta uma solução para a figuração do pobre na literatura brasileira, uma obra prima da autora.

 

Esse conflito se configura inicialmente por longas reflexões e especulações do narrador sobre a possibilidade de escrever a história nas condições em que se encontra. Embora ache necessário e urgente escrever a história da nordestina, o narrador demonstra não saber como fazê-lo, dada a distância que o separa de Macabéa, e daí sua enorme dificuldade de se aproximar da moça. Então se cria uma encenação na obra, na qual o obstáculo inicial é a “inutilidade”, para contar a história da moça através do instrumento sofisticado que possui o narrador, seu saber acumulado de uma tradição erudita e clássica, sua linguagem e seu repertório literário diante de um material tão simples e pobre, uma vida vazia e que o narrador teme não conseguir dar ênfase: “(...) o que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo.” (LISPECTOR, 1993:33).

 

 E o escritor imaginário segue na sua tentativa de se aproximar e de se igualar ao nível da nordestina, buscando encontrar expressão à altura, adequada para narrar sua história.  Na sua discussão alongada o narrador parece ganhar tempo adiando o inicio de uma história que se sente incapaz de narrar. Só nomeada quinze páginas depois do início do romance, ela é previamente definida por Rodrigo S.M. como uma moça “tão antiga que podia ser uma figura bíblica”.

Ao contrário do que propõe o narrador Rodrigo S.M., a autora coloca em cheque, na estrutura da obra, a própria representação da realidade. A obra não pode ser sentida nem como expressão da subjetividade da autora, nem como expressão da autora, nem como tentativa de reprodução do real. A obra inventa a sua própria realidade, não em termos de cópia, mas de invenção de um mundo – o mundo da obra, que obedece ao seu próprio princípio compositivo.

Essa incapacidade do narrador em encontrar uma expressão mais adequada para narrar à história da nordestina sugere a dificuldade e quem sabe também a impossibilidade dos escritores brasileiros de falar do povo de maneira convincente.  A posição do intelectual face a pobreza é dramatizada por Clarice, que percebe esta distância e mostra em boa parte de sua obra o quanto é difícil alcançar com sua linguagem a expressão ou forma capaz de falar honestamente sobre o outro. E acrescenta Arêas:

 

(...) Clarice sabe o que procura: um modo verossímil de falar da pobreza – como assunto premente da literatura, ao qual o escritor não pode fugir, mas sente-se oportunista e fracassado por transformá-la simplesmente em ‘assunto’ (2005:81).

 

A autora tinha uma percepção muito clara e uma consciência muito aguda do papel e da situação contraditória do intelectual e do artista do seu tempo. Ela reconhecia o papel ambíguo do escritor, dividido entre os oprimidos, e ter de dar voz a quem não tem voz e dos que viviam em condição de dependência em relação à classe dominante e com certeza recebiam certos privilégios por transmitir certos valores e normas das classes dominantes. Ela redimensiona o realismo, enquanto estética engajada, no contexto da Ditadura Militar brasileira. A Hora da Estrela problematiza essa ambigüidade, essa condição contraditória e desconfortante do escritor.

 

Por enquanto quero andar nu ou em farrapos, quero experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem ter a hóstia. Comer a hóstia será sentir o insosso do mundo e banhar-se no não. Isso será coragem minha a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis.

Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual.  Além de vestir-me com roupa velha rasgada.  Tudo isso para que talvez eu tivesse que me apresentar de modo mais convincente às sociedades que muito reclamam de quem está neste instante mesmo batendo à máquina. (LISPECTOR, 1993:34).

 

            Os trechos encenam dramaticamente a ambigüidade da condição do escritor em meio aos problemas da sociedade de sua época. Para escrever a história de uma maneira mais convincente e honesta para o leitor, o narrador não tem dúvidas de que é preciso invadir o mundo da moça. E não basta apenas saber, é preciso sentir.

 

 E o narrador reconhece não poder penetrar a fundo neste mundo, pois tão separados e distantes se encontram um do outro. Apenas casualmente pode entrar no mundo de Macabéa, mas não pode e não quer nele permanecer, só enquanto escreve a ficção poderia fazer parte deste mundo sem conforto, sem expectativas, etc. Visto que seria muito difícil abandonar seus “sentimentos confortáveis.”

 

Clarice e o narrador sabem da necessidade de falar do diferente, do “feio”. No caso, da vida e do mundo de Macabéa, mas sabe que isso implica transgredir os códigos vigentes de determinada tradição literária brasileira para construir uma nova expressão. Desta forma, para falar da pobreza Clarice e Rodrigo S. M. encenam esta buscam de uma forma adequada, uma forma que não se pode mais avaliar pelas convenções da estética do belo e do bom gosto, mas sim através de uma nova estética, a do feio, mas, que não termina.

 

Como o material do escritor está na vida, esta deve ser retratada como é, e a vida nem sempre é bonita. A vida é crua, mas é bela para o escritor. Representar a feiúra também é belo e por isso retratar Macabéa é olhar para o real. Assim se estabelece entre Rodrigo S.M. e Macabéa uma relação de dependência, pois ela é considerada vital para ele e para sua obra, mesmo que subjugando todas as mazelas da vida. O narrador ama Macabéa, mas a retrata em sua totalidade feia. Também a odeia, pois precisa retratar toda sua fragilidade e sua condição marginal.

           

Na narrativa, a voz autoral se confunde com o próprio narrador-escritor. Por vezes parece que a própria autora se travest de homem no papel do narrador. A narrativa em primeira pessoa por um narrador – autor - escritor que em seus questionamentos discute e argumenta sobre o “fazer literário”, tem uma forte trajetória na qual a personagem é construída juntamente com a obra em si.

           

Rodrigo S.M., narrador-escritor, ao falar de como escrever sua obra, indica a forma como vai construí-la. Declara-se um escritor tradicional, que não gosta de ser modernoso, mas através de sua forma moderna de narrar se contradiz. Portanto, aquilo que o narrador se propõe afazer de início – contar fatos em uma história com começo, meio e fim, adotando para isso uma linguagem impessoal e sem grandes engenhos artísticos -, ele não o faz. O narrador confessa que o seu “material básico” não é realidade, e sim a palavra, E somente a palavra poética é capaz de expressar a verdade escondida no silêncio da nordestina. Os escritores tradicionais são tutelares e autoritários induzindo, assim como Rodrigo induz, explica a história ao extremo, intervém e vai dominando o leitor da mesma forma que domina a personagem Macabéa. Conversar o tempo todo com o leitor é ser moderno e até irreverente no escrever.

 

 Outro aspecto que se contrapõe ao tradicionalismo declarado pelo narrador: “Assim é que experimentei uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguindo de silêncio e chuva caindo”. (LISPECTOR,1993:27) é a falta de linearidade na construção do texto, inovando a forma de narrar a história, sem começo, meio e fim precisos.

 

            A questão da representação, ou mais precisamente da representação do elemento nacional popular na literatura é um ponto importante da obra. Para enfatizar a condição da moça, ou seja, a pobreza, sem parecer artificial e tendo em vista que é quase impossível o narrador descer ao nível da nordestina, Clarice fala do pobre e de sua relação com classes favorecidas, de modo que se não elimina a artificialidade, ela consegue nivelar as personagens pelo viés da comicidade.  Arêas (2005) faz uma observação sobre a inspiração circense de Clarice em A Hora da Estrela, mostrando que há certa atenuação das diferenças (ou uma redução da distância) que separam as personagens, uma vez que todos no romance ganham uma configuração cômica, inclusive o narrador:

 

Dele também participa Rodrigo S.M., explícito travesti de Clarice Lispector, introduzindo em linha dupla no texto o desempenho do ‘régisseur’, o mestre-de-cerimônias circense. Sua pontuação exagerada e os floreios de linguagem, que buscam mais o efeito brilhoso do que coerência ou bom senso, se explicam pelo lugar a ele(s) atribuído no elenco de personagens. (2005:107)

 

            Não só Macabéa, mas todos os outros personagens do romance apresentam traços cômicos: Glória, loira oxigenada, colega de trabalho de Macabéa e que lhe rouba o namorado, Olímpico o namorado que quer ser deputado e vê em Glória um bom partido, a cartomante que lhe prevê um futuro brilhante. Traços que não os deixa muito acima da personagem principal.  São caracterizados pela total falta de qualidade e apreço, e apesar de serem um pouco mais espertos, não são muito acima da nordestina.

 

A fusão entre personagem e narrador se dá no desejo de uma linguagem simples e do escritor de se fazer de pobre a ponto de deixar a barba crescer, dormir pouco, etc. Assim, personagem e narrador dão seu grito de resistência em busca da vida.  A resistência de Macabéa pode ser representada, por exemplo, quando sorri na rua para pessoas que nem a vêem; a resistência do narrador está na busca da palavra cheia de sentidos secretos e que quando não existe deve ser inventada. Tanto Macabéa como a palavra envolvem questões difíceis que devem ser trabalhadas. A palavra será mediadora entre o narrador e o leitor, e entre o leitor e Macabéa, pois é por meio dela que conheceremos a história da personagem.

 

            É através da literatura que podemos vivenciar o sabor das palavras e Clarice Lispector soube muito bem como usar esta faceta. Ela instaura uma dicção totalmente nova para sua geração: fala de literatura e problematiza o real a partir da construção literária, ou seja, transforma o tema em estrutura. O romance instaura, desse modo, um grande círculo aonde as respostas conduzem sempre a mais perguntas, convidando o leitor a participar do jogo que o texto lhe propõe. Diante de um narrador cuja identidade é cambiante e de uma narrativa que questiona a si mesma o tempo todo, o leitor é instigado a dialogar com a obra e assim formular a sua verdade, de acordo com a singular verdade do texto.

 

            Assim, A Hora da Estrela assume a inventividade artística como metáfora da própria aventura existencial da ficção. Uma aventura renovada pelo leitor a cada novo ato de leitura. Fazendo da narrativa um jogo que incorpora a voz do outro, a transfiguração de identidades, que pareceria à primeira vista tão somente um processo estético da composição romanesca, encena, em última instância, um compromisso ético alcançado pela arte.

 

Lajolo e Zilberman em A formação da leitura no Brasil (1998) abordam a incorporação da figura do leitor pelos textos literários. Seja na forma de personagem, que revela suas preferências de leitura, seja na forma de um interlocutor necessário para um narrador que, ávido por ser lido e compreendido, estabelece um diálogo com o suposto intérprete de seu texto.  Vestindo o leitor com uma dessas roupagens, os narradores via de regra buscaram dar forma a procedimentos de leitura em um país em que os códigos e os meios materiais dessa prática são raros. Perseguindo o leitor implícito em diferentes momentos de nossa produção literária - de Manuel Antonio de Almeida a Clarice Lispector, flagram as nuanças que diferenciam a etiqueta que rege a relação narrador leitor ao longo dos tempos.

 

Inicialmente, antes da metade do século XIX, os escritores deveriam dar conta de um público pouco sofisticado, que a qualquer instante poderia desestimular-se da leitura, o narrador manifesta-se paternalista em relação ao leitor, bancando o sedutor e garantindo orientação e esclarecimentos quanto aos rumos do enredo. Cuidadoso para não romper a comunicação, evita, ao mesmo tempo, dar a impressão de que o leitor está sendo subestimado, é o caso de Iracema (1865) de José de Alencar. Mais à frente, e já incluindo o conhecido sarcasmo dos narradores de Machado de Assis, o narrador ridiculariza os maus hábitos de leitores imaturos (e mais especificamente leitoras), cujas limitações intelectuais impedem a adequada fruição de textos que porventura de afastem do cânone em vigor.

 

No século XX, as relações narrador-leitor parecem, de acordo com as análises de Lajolo e Zilberman, mais cordiais: paternalismo, arrogância e desprezo por parte do narrador seriam substituídos por certa “parceria”. No caso de Paulo Honório, de São Bernardo (1934), essa confraternização confere segurança, já que o personagem-narrador confessa-se incapaz de estruturar o enredo e acertar o tom da narrativa; por isso, mantém continuamente um apelo para que o leitor aceite sua escritura com tudo que ela possa ter de imperfeição.

 

 Por fim, já nos anos 70, sob influência de uma tensa configuração social e de um embate ideológico radicalizado, o narrador assume a tarefa de formar o leitor em outro sentido: não mais quanto à competência de leitura propriamente dita, mas em relação à postura frente à realidade político-social do país, como faz o narrador Rodrigo S. M. em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. O narrador nesse caso não aceita o alheamento e insensibilidade que os leitores, entenda-se a elite letrada do país, adotam face a situação dos menos privilegiadas. O narrador nesse caso confia na competência interpretativa do leitor, mas não aceita o alheamento e insensibilidade que os leitores de elite letrada do país, adotem face à situação dos menos privilegiados.

 

Ao contrário dos narradores que o antecederam, contudo, Rodrigo não busca a solidariedade do leitor, recusando as estratégias de cumplicidade de que alguns eram mestres. Pelo contrário hostiliza-o abertamente, na hipótese de que o leitor não está preparado para a matéria que vai apresentar. (LAJOLO e ZILBERMAN,1998: 54).

 

 

Portanto entende-se que o leitor histórico, peça sempre cambiante porque submetido às injunções do tempo e da sociedade, requer uma formação constante por parte dos autores e narradores.  Nesse sentido, o caráter não concluído da formação do leitor transforma em uma propriedade ligada a literatura, que deve continuamente produzir seu interlocutor – consumidor e o faz, muitas vezes , incorporando esse leitor histórico nas linhas do próprio texto.

 

Não mais tutelado, nem mais parceiro menor a ser seduzido, mas agora efetivamente cúmplice, o leitor persegue seu périplo de aprendizagem, pois a sempre novos ensinamentos à sua espera, no avesso dos novos narradores.(ZILBERMAN e LAJOLO,1998:57)

 

Lispector eleva a reflexão sobre a linguagem e o ato de escrever, ao nível da protagonista da narrativa, possibilitando então que a crítica social e política, inseridas na obra, sejam percebidas como críticas também da linguagem. Ao trazer para sua própria linguagem a tensão política da época ela modifica os valores narrativos até então proclamadas, ela transfere ao texto as dificuldades do escritor contemporâneo diante das feridas brasileiras.

 

 

 

 

 

 

2- As mazelas de A hora da estrela e Vidas Secas

 

A Hora da Estrela é a única obra de Lispector que se enquadraria na estética regionalista e enfoca questões que de certo modo foram abordadas em outras obras, porém com uma diferença fundamental: aqui o problema da pobreza e da marginalização das classes sociais oprimidas aparece de forma explícita, configurado na personagem central do romance, Macabéa, moça retirante nordestina que sobrevive “numa cidade toda feita contra ela.”.

 

Vidas Secas (1938) é o último romance de Graciliano Ramos e trata do sertão e de seus problemas sociais, como fizeram os romancistas de 30, ele vai destes se distinguir pela intenção e o alcance mais universal dos dramas de que suas obras tratam o que causava grande interesse na época: o desvendamento social, ou seja, o romance mostrou um Brasil que estava invisível. Uma família de retirantes em busca de um lugar para sobreviver.

 

  Arêas menciona o fato de Lispector dar início à narrativa no momento em que Graciliano Ramos termina a sua.  “Não deixa de ser curioso que Clarice comece sua história no momento em que Graciliano, quatro décadas antes, em Vidas Secas, finaliza a sua, com seus personagens rumo à cidade grande”. (Arêas, 2005:75) Em Vidas Secas a personagem é tratada como retirante e o ambiente é sempre o sertão. A partir de A Hora da Estrela, a personagem já está emigrada, como já dissemos.

 

 Macabéa anda pelas ruas do Rio de Janeiro. Nesse ponto ela não é denominada como retirante, isto é, no nordeste a palavra “retirante” significa aquele que vai para o sul em retirada, no sul à palavra “retirante” adquire uma carga negativa e se transforma quase em um xingamento.

 

Embora elaborem obras bastante distintas, esses autores pertencem ao a um mesmo paradigma, pois não só equilibram elementos da tendência anterior as suas, o romance realista e social dos anos 30, como também lançam mão de um novo recurso, talvez só presente nas  obras de maturidade de Mário  de Andrade,  a capacidade de expressar a  dialética da paixão humana e desmedida de sua hybris, sem procurarem, como os romancistas dos anos 30, tomar uma perspectiva regional e especifica como base de sua critica social. Se Graciliano Ramos, por exemplo, trata do sertão e de seus problemas sociais, como fizeram os romancistas de 30, ele vai destes também se distinguir pela intenção e o alcance mais universal dos dramas que suas obras tratam. O mesmo acontece com a obra de Clarice Lispector, e desta se pode mencionar como exemplo a personagem Macabéa de A Hora da Estrela.

 

Creio que o que pretendi dizer se clarifica se pensarmos que, ao lado de toda uma capacidade de captar esse elemento regional, presente em Fabiano e Macabéa, Graciliano e Clarice estavam também interessados em discutir, de modo meta-ficcional, o ato romanesco que torna essa imagem do nordeste possível, bem como nos permite ir além dessa dimensão regional ou mesmo nacional, o que os leva a produzir uma obra na qual a discussão ora do processo narrativo, ora do próprio ato da linguagem em si mesmo, ocorre em nível bastante forte.

 

 Graciliano Ramos trabalha a questão do regionalismo com toda a sua força expressiva. José Conde, em um depoimento citado por Arêas, mostra esta intenção de falar do regionalismo de forma diferente do que é propagado. Assim com, a visão da presença de elementos sociais na produção literária de Lispector que não minimiza seu valor estético, antes amplia o entendimento da luta permanente da escritora com o signo lingüístico e com as estruturas narrativas na tradição literária brasileira.

 

É certo que a obra clariciana assenta-se numa ruptura de tradição literária, no que diz respeito a algumas categorias narrativas, como podemos ver em A Hora da Estrela, onde a escritora confunde os papéis do narrador por meio da personagem Rodrigo S.M. Além disso, a linguagem é vista por Clarice como um elemento intrínseco ao ser humano e, por isso mesmo, complexa e paradoxal.  Clarice  observa e põe em questão a vida real do ser humano representado, por exemplo, pelos protagonistas Rodrigo S.M. e Macabéa. Sem dúvida Clarice, com sua sensibilidade estética, desenvolveu um olhar peculiar sobre as estruturas sociais que cercam o ser humano, mormente a mulher, no contexto da realidade brasileira da segunda metade do século XX.

 

Os protagonistas Fabiano e Macabéa têm uma relação complexa, ambígua, às vezes até hostil, com a palavra e com o silêncio. Em diferentes graus, os personagens demonstram dificuldades em articular um discurso conexo para se comunicar consigo próprio, com suas famílias, com o mundo a sua volta e, mais especialmente com as estruturas de poder. Não conseguem usar a palavra adequadamente às suas necessidades ou a seus anseios. Em oposição sempre existe o campo do silêncio que pode ser usado como tática de esconderijo ou porto seguro. Conforme diz Almeida:

 

O admirável da realização ficcional de Graciliano Ramos em Vidas Secas está em ter logrado colocar, em um nível de reflexão perfeitamente compatível com a rusticidade e o intuitivismo dos caracteres, uma questão tão complexa quando da relação homem-linguagem-realidade. (1980:257-258).

 

Em Vidas Secas a voz do personagem é subalterna à voz do narrador de terceira pessoa, além de, no nível da matéria narrada, estar quase que reduzida a sons e interjeições gruturais que produzem uma linguagem monossilábica e gaguejada. Tempos depois em A Hora da Estrela a conquista da voz do personagem não evolui. A nordestina é atropelada pelas vozes da autora e do narrador e finalmente pela grande cidade. Portanto na década de 70 a personagem toma posse de um eu ainda não tão consolidado.

 

A ficção narrativa existente na A Hora da Estrela mostra a autora deixa evidente os problemas de seus personagens dentro da sociedade, os preconceitos, a pobreza, os maus tratos, a fome, a discriminação, a morte deixando bem claro uma marca que percorre não somente esta obra, mas em todas as obras claricianas.

 

   Vidas Secas, obra clássica da literatura brasileira,  tem uma visão que ora se identifica com a do personagem ora se afasta. O narrador não favorece nem a linguagem do dominado, que é descrita na sua debilidade, nem a linguagem do dominante, que é denunciada. O autor constrói uma narrativa na qual há a problematização de sujeito e objeto, o narrador não pode ser simplesmente descrito como pessoa ilustrada que representa a condição subalterna. O narrador e o subalterno se aproximam e se afastam. A aproximação se dá em momentos de desconfiança da cultura letrada como instrumento de dominação. Lembre-se do capitulo “contas” ou da relação de Fabiano com seu Thomas da Bolandeira. O afastamento acontece quando a visão desiludida e desencantada do narrador ultrapassa as ilusões consoladoras de Fabiano, como no último momento da narrativa em que Fabiano sonha com a vida no sul enquanto o narrador diz que para uma terra desconhecida e civilizada onde ficariam presos.

 

A Hora da Estrela  apresenta um prefácio que já problematiza a autoria da obra quando aparece na dedicatória do autor, entre parênteses a expressão “ Na verdade Clarice Lispector”  que traz para dentro do texto uma entidade que rivaliza com o narrador. É uma narrativa de primeira pessoa, mas que tem um narrador construído como terceira pessoa e que nessa condição, medeia a interação entre a autora, que custa se esconder nos parênteses, e a personagem, que é descrita na sua inabilidade de se expressar.  

 

Espelho dessa condição dupla de narrador, o texto é construído a partir de duas instâncias discursivas, a da narrativa na qual o narrador se debate numa reflexão sobre o processo da escrita que está desenvolvendo e sobre o qual lança constantes dúvidas. O principal problema da narrativa é da identificação de como narrara história de uma personagem com a qual o narrador não se identifica.

 

Dentro deste contexto de inter-relações note-se como Macabéa interpreta sua vida a partir de frases feitas: “quem cai não passa do chão, quem espera sempre alcança”, achando aí um tipo de consolação, como também fazia Fabiano, se constituindo como sujeito subalterno quando se consolavas com frases feitas do tipo apanhar do governo não é vergonha ou quem é do chão não se estrepa.

 

Rodrigo S.M. empreende a pertinente exploração da classe social do leitor, de si mesmo e da personagem, que o faz concluir que, ao escrever aquela história que está ao alcance de todos, mas que é de difícil elaboração e importuno, desinteressado e importunando o narrador, ele opera com se fosse uma válvula de escape da classe média, ou seja, como se construísse uma ilusão consoladora pra o problema social.

 

Vidas Secas e A Hora da Estrela são dois textos que apresentam o binônimo clássico intelectual – subalterno. Nos dois, o subalterno não fala, mas também o sujeito que fala é extremamente problematizado, tanto em Ramos com suas aproximações e afastamentos, quanto em Lispector com a criação da terceira pessoa, que enuncia todos os problemas que a não identificação entre personagem e narrador, por causa da classe social, impõe.

 

As Macabéas e o Fabianos trazem no corpo as marcas de um viver à margem, seja dos códigos instituídos que não dominam, seja pela destituição das condições básicas de sobrevivência e de cidadania. A linguagem que usam faz-se parceira de sua forma andarilha de viver, de forma que o traço migrante configura o corpo e a alma.

 

Se a oposição que se estabelece em Graciliano, como já dissemos da ordem de uma polêmica entre duas esferas complementares o destino trágico e a consciência humana, em Lispector a tensão binária encontra-se rasurada, pela quebra tanto da concepção linear de tempo, quanto pela ruptura com a linearidade do que se vai ler. A narrativa de A Hora da Estrela é estruturada como se fosse uma dobradiça: a construções das peripécias de Macabéa debruça-se sobre o solilóquio do narrador, que indaga como e por quem o relato deve/ não deve ser contado.

 

A série de cogitação sobre a morte de Macabéa é uma outra dobra no texto, a complicar e delinearizar o desenrolar da ação. O narrador hesita em matar sua personagem, parodiando forças do destino: as das fatalidades e as óperas que subterramente se refere, tecendo o caminho em que Macabéa nasce e morre na trajetória da escrita e não mais através da concepção de que o ato de narrar possa transcrever um mundo que o antecede. Como menciona Gollib As histórias desdobram-se (1995:468)

A dimensão do herói problemático ganha outra dimensão nesta personagem que segundo Arêas tem o seu tanto de universo circense.

 

            Produzida na fronteira dos anos 70 para os 80 Macabéa, que perambula pela cidade grande e ouve a Rádio Relógio Federal transformada numa comovente fonte de sabedoria inútil é de um tempo em que a estrutura do capitalismo há muito deixou seu estágio primitivo e agora da cartas de modo bem mais sofisticado. Diferente do estilo reto de Ramos, em que um mundo real se revela pela força contundente de aridez de uma escritura em que a sociedade se move como rolo compressor sobre o corpo dos oprimidos, no texto narrado por Lispector a realidade desliza movediça entre o ato de narrar e ode seu questionamento. Expulsos de lugar, os personagens de Ramos são, em Lispector, iguais na penúria, cães sem pluma dos quais tiraram até o que não têm embora em conteúdo e forma sejam também muito diferentes.

 

            Vidas Secas há um acento mais vinculado ao modernismo, na subterrânea utopia da revolução social que redimiria Fabiano do desconcerto e da injustiça; e na A Hora da Estrela exista um aceno mais próximo da modernidade  ta tardia, que faz com que a conceituação do sujeito e da subjetividade seja tratado de modo mais pulverizado, como um processo de significação de natureza instável.

 

A Hora da Estrela diferencia de Vidas Secas ao trabalhar Macabéa focalizando  o individuo,o sujeito e a subjetividade como instâncias  que se dimensionavam pela dramaturgia da linguagem: o modelo da intervenção heróica , seja porque as  sociedades  se afastam dos ideais , que impulsionam o heroísmo, e que ainda alimenta a concepção de Fabiano como herói no próprio doublé de intelectual, o narrador Rodrigo S.M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Ao estudarmos a obra A hora da estrela, notamos que Clarice Lispector utiliza-se de um trabalho diferenciado no campo lingüístico, utilizando-se de um jogo de transfiguração. O uso desse recurso resulta em um engajamento poético, não percebido em suas obras anteriores.

            Com essa nova maneira de escrever a autora condiciona-se a realizar uma crítica mais ampla da realidade social e o drama vivido pelas camadas desfavorecidas da sociedade. Para evidenciar essa denúncia, a escritora cria a personagem Macabéa, que personifica uma classe de pessoas excluídas socialmente, pertencentes a uma pobreza irreversível. Pobreza física, desencadeada pela fome, pobreza cultura, pobreza material, pobreza na comunicação e na falta de identidades. Macabéa representa também um grupo de pessoas controladas pela classe dominante.

 

            De todas essas informações, resta dizer que A hora da estrela é marcada pela fala de Rodrigo S.M., que, vez por outra, abre espaços no agora da obra para inserir a história. Esta, começando pela metade, avança, construindo fases não lineares da existência da personagem principal. A infância, por exemplo, é relatada quando Macabéa é adulta, alterando a ordem dos acontecimentos. Há, também, a preocupação com o tempo do homem moderno refletindo-se na ansiedade do narrador (...) deveria caminhar antes do tempo e esboçar logo o final? (...) devo caminhar passo a passo de acordo com um prazo de terminado de horas (...) apesar da impaciência que tenho em relação a esta moça. O final da narrativa aponta para o presente não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Nesse ponto, o narrador desvincula-se da memória e retorna a sua história, ao seu ser e ao seu tempo, que pretende estar em sintonia com o momento do leitor tempo de morangos. O narrador surge no início para relatar a vida de Macabéa quando ela desaparece, ele aponta para a saída do romance, ele acena para a vida além da ficção com a imagem sedutora de uma fruta fresca, impregnando a obra de uma indicação de futuro: a vida transcende a literatura.

 

            Clarice Lispector faz parte de uma geração cuja preocupação principal estava além das questões políticas e sociais que tanto influenciaram a década de trinta, período marcado pelo paradigma marxista. Este paradigma via na arte um espaço de consciência política e explicação da realidade, procurando ressaltar nela as bases econômicas da sociedade. Nesse sentido, a arte deveria ser destituída de todo irracionalismo, de toda inconsciência ou senso estético que obscurecesse a razão e levasse à incompreensão por parte das massas. A literatura deveria tratar, pois, das elaborações sociais do país, denunciando a fome e a miséria do homem, da injustiça e da barbárie capitalista que mutila o individuo do meio urbano e do meio rural, este, ainda vitimizado pela seca, sairia retirante na busca de um lugar de terras e águas fartas, um lugar de trabalho e vida menos dura.

 

A literatura no Brasil esteve desde o século XIX presa ao discurso ideológico e as ciências sociais que constituíam elementos centrais na cultura da época. E é somente durante a década de quarenta, a chamada geração de 1945, que as obras ficcionais se voltam para as questões formais, acentuando uma importância maior com a linguagem mais do que com o conteúdo. Lispector e Rosa são exemplos que romperam com os modelos tradicionais através de uso constante de imagens, metáforas, símbolos, sonoridade, etc., fundindo prosa e poesia e, assim rompendo os limites da crítica sobre as estruturas literárias. Portanto, a linguagem não pode ser qualquer uma, ela tem que captar o sentido e a delicadeza da obra. Uma vez que o material básico do escritor é a palavra, esta deve garantir o significado secreto que ultrapassa as frases, devendo estar bem localizada, dentro de tempos/espaços exatos, para que o efeito desejado seja alcançado. Assim muitas vezes o literário tem que vencer a tentação do palavreado rebuscado, recorrendo à fala simples, o que não significa empobrecer o texto, mas usar de estratagemas literários para criar quadros imagéticos.

 

Podemos perceber a importância, não só do conteúdo, mas também da forma, de produção e reprodução da realidade através de Graciliano Ramos que na década de trinta usa uma linguagem seca, para exprimir a penúria nordestina e o Nordeste como lugar de pobreza através das palavras.  A autora de A hora da estrela se preocupa igualmente com a palavra, com o figurativo: Rodrigo S.M. expõe a necessidade de usar termos que fossem fiéis à história que seria contada. Lispector não trata do espaço Nordeste em si, como foi feito por Graciliano, mas de uma nordestina que do sertão chega numa cidade toda contra ela. A autora na verdade, com seu modo diferenciado cria e reproduz uma idéia do sertanejo pertencente aos intelectuais e escritores brasileiros da geração anterior.  

 

 

 

REFERÊNCIA

 

ALMEIDA. J. M.G. A tradição regionalista no romance brasileira (1857- 1945). – Rio de Janeiro: Achiamé, 1980.

 

ARÊAS, V. Clarice Lispector com a ponta dos dedos – São Paulo, Companhia das Letras, 2005.

 

BRAIT, Beth. A personagem. 4 edição . Editora Ática, 1990.

 

CANDIDO, A. A personagem do romance in A personagem do Romance. 10ª ed. São Paulo. Perspectiva, 2002.

 

_________ No raiar de Clarice Lispector In Vários Escritos. Livraria duas cidades. São Paulo. 1970.

 

GOLLIB, N. B. Clarice – uma vida que se conta. S.P.: Ática, 1995.

 

LAJOLO e ZILBERMAN. M. e R. A construção do leitor in  A formação da leitura no Brasil . 1998.

 

LEITE, L. C.M. O foco narrativo. 8ª edição. São Paulo: Ática, 1997.

 

LISPECTOR, C. A hora da estrela. 22 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1993.

 

NUNES. Benedito. O drama da linguagem – uma leitura de Clarice Lispector. Editora Ática. 1995.

 

RAMOS, G. Vidas Secas. 93ª. – Rio, São Paulo: Record, 2004.

 

WALDMAN, B. Clarice Lispector: a paixão segundo C.L. 2ª ed. São Paulo: Editora Escuta, 1992.