COMO O SOL DA TERRA

Observando o comportamento, os olhares, a desenvoltura ou insegurança das pessoas, registram-se relampejos de um acumulado de saberes, de experiências e de lições que, aos poucos, foram moldando o jeito de ser, o jeito de ver, o jeito de reagir, o jeito de enfrentar, o jeito de fugir de cada um. Como o resultado de um longo processo de aprendizagem que marcou as relações entre aquele que de nada sabia mas precisa saber e aquele que, mesmo sem saber se o que sabe é o melhor, passa adiante o seu conhecimento. Essa passagem se dá, como a transferir possibilidades, ampliar horizontes, criando oportunidades, formando opiniões e construindo pontes para que os extremos de uma vida seja o mais coerente possível.

Esse processo se dá espontaneamente, como se faz a cultura. Sem que nenhum dos dois, o que ensina e o que aprende,  precise ser doutor no que faz, mas que seja mestre no que transmite. Isso é para sempre. Ou pelo menos, até que outras lições, fundamentadas em valores mais humanos e consistentes venham a persuadir os agentes desse processo a mudarem o caminho porque há horizontes  mais próximos e mais seguros. Isso é avanço.

Percebe-se que à medida que o tempo passa e tudo fica mais moderno, muitas coisas se tornam artigos de museu. Nem sempre na mesma proporção que “androides” povoam o imaginário perceptível de pessoas que têm acesso ao novo. Antigo e novo, como ajustá-los?  É por isso que uma criança de dez anos vai achar estranho se nos curvarmos diante de uma outra pessoa, em reverência. O que é curvar-se?  O que é reverência e a quem está reservada?, por exemplo.

Mas como os objetos, as palavras, os hábitos, as pessoas, os ritmos, a vestuária, costumes, tradições, profissões, a vida que se tornam obsoletos. Se por um lado hoje existe a profissão de analista de redes sociais, já foi necessária interseção de uma telefonista para fazer um telefonema simples. Onde estaria o influencer digital nesse quadrante? Do acendedor de lampiões, ao robô inteligente; do analfabeto que levava sua ordem de desterro e a entregava ao  seu algoz, sem conhecer o conteúdo da missiva, estudante que mantém em “hd” externos seus preciosos conteúdos acadêmicos, tudo nos leva a refletir, quão sábias eram as pessoas que conduziam os processos de transmissão de conhecimentos e experiências cultuais visando à formação de pessoas altruístas, críticas e socialmente responsáveis.

A obsolescência que se instalou nos pulmões da sociedade tida como de consumo parece estar tentando afrontar as bases dessa mesma sociedade que adotou a tecnologia como aliada a fim de encurtar a vida útil dos objetos dando lugar ao novo, ao lançamento que com a velocidade da luz é impositivo que se descarte em nome da vida, da evolução e da sociedade.

Dir-se-ia que há  uma tendência de que tudo que é novo é mais importante do que é mais antigo e que precisa ser descartado, ainda que não se saiba que destino será dado ao que ficou “no passado”, mesmo que tenha sido importante em algum tempo. No campo material, no aspecto tecnológico e na função evolutiva que tem motivado o homem moderno, há explicações para o que se justifica em nome da melhoria da qualidade de vida, do conforto e do bem estar social.

Caso o objetivo final não seja o mais adequado para uma sociedade que  se supera a cada invento, que se descobre a cada pesquisa, que avança a cada momento, muda-se o rumo dos projetos e dos programas. Mas, em se tratando da emoção do aprender, da sensação do amar, da necessidade de se buscar a realização pessoal, por meio dos seus feitos, o que fazer se forem perdidos os elos que compõem a corrente da vida?

“A porta principal, esta é a que abre sem fechadura e gesto. Abre para o imenso. Vai- me empurrando e revelando o que não sei de mim e está nos Outros.  Carlos Drummond de Andrade”.

A porta principal é a que nos leva a um objetivo previamente anunciado por meio de exemplos e de ensinamentos que comprovam o valor dos valores que valorizados e que deram bons resultados. Para que ela se abra no momento exato do passo dado, sua fechadura é o passaporte para a segurança de que ela jamais será impedimento para o avanço, ou que represente frustrações por falta de conhecimento prévio. O exemplo nos mostrou o que foi feito bem  feito e até que ponto pode ser imitado, sem risco de dar errado.

A fechadura que poderia ser a catraca do não saber, o impedimento da falta de oportunidade que muitas vezes tem sido cerceada pela falta de quem, de fato, assuma a orientação a formação, o aprendizado e o sucesso daquele que, enquanto criança, precisa da mão do adulto.

A porta, a fechadura, o gesto. Palavras emitidas com nexo, com objetivo, com foco: as portas da evolução que nos trazem a era digital facilitam o ir e vir, pelo simples toque, o que antes parecia distante, hoje está ao alcance dos olhos; o que demandava tempo, hoje é simultâneo, imediato, prático e confortável. O gesto, movido à emoção e à consciência parece nos guiar em direção ao contraste: age, ultrapassa limites, mas não pensa, não sente a não ser o vazio da competência temperada com o rigor que faz justiça, da firmeza que orienta, dos limites que ensinam, dos caminhos que se abrem, da vida que se faz. “Vai me empurrando, revelar o que não sei de mim e está nos outros”, Esse parece ser o mister do querer fazer diferente, mantendo o que precisa ser mantido.

Reportar-se à expressão de um pensador que manteve sob seu comando, gerações que leram e sonharam com dias melhores para as novas gerações é o mesmo que evocar impressões que nos levam a refletir as dificuldades que existem entre o comportamento de pais que agiram com firmeza em nome do amor que nutrem pelos filhos, e aqueles que longe de saberem o que querem para os seus filhos, terceirizam a condução do currículo que precisa ser montado para perpetuação da espécie reconhecida como “racional”.

O mestre responde: vai filho, segue o teu rumo ,faz a tua história, constrói o melhor que sabe, o melhor que pode. O aprendiz reage mediante o que melhor lhe cabe: sim mestre. Não mestre, faço como sei, foi assim que aprendi, poderia ter sido diferente, mas foi assim. Ora, se tem mestre, tem aprendiz; se tem os dois, tem lições; se tem lições é preciso haver aprendizagem. Tem alguém aprendendo o que com quem.  A quem cabe manter o fio da meada que conduz o homem a novos rumos?  Os novos pais trazem em si o que seus ais lhes passaram. Mas os novos pais estão indo, estão passando o bastão que a gestão moderna nos impõe. E como agirão os jovens de hoje, pais do amanhã? Em que escolas eles estão sendo formados?

Voltando às fábulas que nos remetem a reflexões que fazem da vida, um caminho menos complexos, recorrem-se às forças da natureza, com um texto fantástico sobre o que faz da natureza a base da motivação humana na teoria da evolução a que o humano se debruça.

Houve tempos em que as crianças eram criadas com limites definidos, direitos negociados e deveres rigorosos. Quais os deveres de uma criança? Ouvir, aprender, obedecer e seguir. Se lhe caísse um pedaço de alimento no chão, mesmo com terra, elas o apanhavam e comiam sem nenhum pudor, sem nenhum medo, sem nenhum constrangimento. Afinal, essas palavras não existiam no seu vocabulário. Nem por isso, elas ficaram indefesas, menores, incapazes.

 A criança não tem a decisão em suas mãos, não sabe de perigos, de maldades, do ódio. Não sabe que existem pessoas com más intenções. Ela é apenas criança.  Ah, mas nos dias hoje, as crianças sabem muito bem sobre tudo isso, sobre todos os males da humanidade... Saber não é o xis da questão: como souberam e como vão enfrentar tudo isso é que vai preencher o formulário da fatura a ser paga logo ali, no amanhã que se avizinha. Quem as preparou, o fez ouvindo, antes de oferecer conselho? O fez por meio de exemplos? O fez com a necessária paciência que a situação requer,  já que se trata de uma relação afetiva entre um adulto e uma criança (mestre e aprendiz)? A verdade foi dita validando sentimentos que permeiam os laços entre pais e filhos?

Abordou-se a “terra” como elemento-base para o lidar com a vida.O pisar forte em um chão seguro, uma base para sonhos e projetos, materializados pelo direito de estar, de ocupar, de cuidar, de viver. A terra é um dos elementos mais importantes da estrutura social de todos os tempos. Como o adulto de hoje, no caso específico dos pais, tem lidado com a terra enquanto base para a sobrevivência das espécies? Estariam aí as raízes para o respeito pelo trato de um solo como elemento natural do meio ambiente que precisa ser tratado com o respeito e a responsabilidade social que a sociedade moderna tanto discute? A criança que sucederá o adulto de hoje no comando do planeta está sendo cuidada e preparada para defender ideais que fazem parte de anais históricos em efetiva desativação? Sim, porque lições de vida são como membros de um corpo atuante: parou de movimentar, atrofia. Livros fechados são locais de mofo, educação pela educação, sem exemplo, não modelos arcaicos que muitas vezes, nós adultos, achamos que a criança moderna, de tão avançada, não precisa do passado.

“Seja terra”, disse o mestre. “Porque a terra recebe os dejetos de homens e animais e não é perturbada por isto; muito pelo contrário, transforma as impurezas em adubo, e fertiliza o campo.”

Que sejam vistos como “impurezas” o tempo perdido diante de uma tela eletrônica, que não conduza a um aprendizado, que não seja utilizado como caminho para uma metodologia ativa, onde o menor-aluno-aprendiz seja protagonista, de fato, dos seus atos e do quanto aprende. Mas quem decide o que vai ser ensinado é educador, seja ele pai, professor, orientador, irmão mais velho, tutor, avô, vizinho... Para que a criança seja agente do seu aprendizado não lhe cabe decidir o que fazer, quando fazer, como fazer, porque fazer. Faz. As crianças não devem ir para lojas, escola, lanchonetes, usar “uber” ou equivalentes, sozinhas sob alegação de que precisam aprender; não ficar no

carro enquanto o adulto vai ali rapidinho; irmãos mais velhos ou parentes afins não têm obrigação de cuidar de menores. Podem até querer e poder; podem até suprir uma carência, mas não desempenha com a firmeza necessária e exclusiva dos pais. Sob pena de submeter-se, amanhã a resultados pouco consistentes do ponto de vista da formação plena de um ser capaz, crítico, maduro, seguro, por inteiro.

            Seguindo a metáfora do elemento da natureza “terra”, vamos ao fogo. O fogo que gera calor, gera queimaduras; Não distante, vamos à água. A água que sacia a sede, que alimenta a terra, afoga aquele que naufraga, que se debate, que impede a vida. Temos ainda o vento que movimenta as ondas dos mares e aplaca o calor do sol e seca a umidade deixada pela água, cobra dos outros elementos, o destino onde devem ser depositados todo o conteúdo de sua caminhada, a rajada de vento que desfaz cabeleiras e limpa os prados.

Nesse emaranhado de elementos fortes e decisivos fica aquele que nada sabe sobre, aquele que ainda não teve a oportunidade de aprender coloca-se à deriva do vir a ser. Percebe-se a distância que existe entre as pontas do saber: o analógico e o digital; o acumulado de ensinamentos e o que fazer com tudo isso. O conhecimento chega à criança moderna. Não se discute se está sendo ou não trabalhados os conteúdos necessários para o avanço da sociedade. O que se pauta é que homens estão sendo preparados para lidar com a honra, com a verdade, com o respeito, com a vida, com o outro.

“Se tivermos a paciência da terra, a pureza da água, a força do fogo, e a justiça do vento, seremos livres.”

Se optarmos por cuidar do broto para que a vida nos dê frutos, precisamos estar vigiantes à educação que estamos propiciando às nossas crianças. Não se discute o que as escolas estão realizando em nome da educação, dos ensinamentos e das lições. Não se estar pondo em discussão se as metodologias aplicadas estão corretas. Há todo o crédito e respeito por aqueles que, sendo pais ou educadores, estão cumprindo, da melhor forma, o seu papel. As propostas são saudáveis, modernas e eficientes. O que se grita é pelo que se está fazendo com a pessoa da criança. Aquela criança que vem de casa, ou em tese, deveria vir, pronta para ouvir, aprender, discutir, respeitar e por em prática, um projeto de vida que leve consigo, o amor, a compreensão, a tolerância, a fé na vida, no homem e no futuro de modo livre pela liberdade de ser.

  • Sebastião Maciel Costa