Coisas Do Destino
Publicado em 14 de dezembro de 2006 por João S. Magalhães
COISAS DO DESTINO
Romance de João Magalhães
Rio de Janeiro, maio de 1955
Quando Alzira engravidou, aos 18 anos, e a tia Maria disse que ela teria de ir embora, ela não suplicou para ficar, não se lamentou, pediu apenas que não contasse nada a Pedro, seu irmão.
Se ele perguntasse porque ela tinha voltado para Boa-Vista, que lhe desse uma
desculpa qualquer, que o pai estava doente e precisava dela.
Fazenda Anhaçu, Boa-Vista, maio de 1963.
A cascavel deu o bote e Carminho correu para Alzira, gritando. Foram duas horas de agonia e dor. Finalmente, apertando o rosto da mãe contra o seu, ele fechou os olhos.
A fazenda Anhaçu fica a um dia de Boa-Vista. É bonita de ver. Um mundo de igarapés a circundeia. Ao longo de seus campos sempre úmidos pelas chuvas, crescem imensos buritizais.
Alzira gostava daquele cheiro de mato. Sentia-se radiante quando saía a cavalo, com Carminho na garupa.
A mágoa, o rancor, a culpa, o medo, todos os pesadelos que a atormentavam noite e dia,
desfaziam-se enquanto ela galopava sem rumo certo pelos confins de Anhaçu.
Somente nesses instantes esquecia o passado: os anos felizes de sua pré-adolescência no Rio de Janeiro e o tempo cruel em que ficou no baixo meretrício de Boa-Vista, durante quase toda sua gravidez.
Alzira vivia em Anhaçu há dez anos. Nela, Carminho nasceu.
Foi um momento de muito pânico, mas também de gratidão, quando o bebê deslizou por
suas pernas e, estapeado pela água fria do riacho, choramingou. Alzira olhou para as árvores ao seu redor, elevou as mãos para o céu e agradeceu. A Natureza tinha feito seu parto.
Carminho cresceu como um caboclo. Aos sete anos, conhecia cada pedaço de chão de Anhaçu e das terras vizinhas. Era um menino esperto, inteligente.
Olhos castanhos, grandes, iguais aos da mãe. Há duas semanas, Alzira tinha feito planos. Ia levá-lo para Boa-Vista. Lá, ele faria o primário e o ginásio.
Depois, ela daria um jeito de mandá-lo para o Rio segundo grau, faculdade. O garoto, pensou, seria publicitário, como o ai.
- Como ele é, mãe?
Carminho pensava no pai como um homão alto, moreno, forte. Como um anjo de guarda a lhe proteger dos perigos da mata. Como um amigo com quem poderia esclarecer suas dúvidas e afugentar seus receios.
Em seu delírio de morte, o garoto viu o pai chegando de mansinho, sorrindo-lhe. Me beija, pai. E sentiu o carinho daquela figura desconhecida, por quem tantas vezes tinha chamado.
- Mãe, está tudo escuro. Mãe...
Alzira ficou sem ação. Fez de tudo o que podia para salvar o filho. Chupou-lhe o veneno entranhado na perna, deu-lhe as beberagens dos caiapós, bezuntou-o com ungüento de tripa de macaco e aplicou-lhe a reza das bezendeiras.
Por fim, deitou-o no chão e soltou um grito tão terrível, que os porcos, galinhas, a meia dúzia de cabeças de gado e o alazão de Carminho deram de correr feito loucos, como se o estampido de um trovão anunciasse o fim do mundo.
Horas mais tarde, quando o primo Alcides apontou no portal da fazenda, Alzira tinha acabado de abrir a cova e fincar na terra uma cruz meio torta, feita com dois pedaços de lenha velha.
- Meu Deus! O que houve, prima? - perguntou Alcides, apeando apressadamente do cavalo.
- Olha, ele... Ele se foi.
- Mas, como...
- Picada de cascavel, Alzira contou, sem saber direito o que falava.
- Meu Deus! Venha, vamos para a cidade, disse Alcides, sabendo que a prima não sairia dali tão cedo.
- Não. Só arredo o pé daqui pra me juntar a ele. Vá avisar os parentes.
Alcides fitou Alzira por uns minutos. E viu o rosto do desespero, da revolta daquela moça sofrida, que desde os 18 anos enfrentou todo tipo de adversidades para criar o filho. Alcides saiu a galope, sem acreditar ainda na morte estúpida de Carminho. Alzira ficou sentada num toco de mangueira, a cabeça entre as pernas, recordando o dia
- Eu vi um saci, mãe. Ele me apareceu, gargalhando, no redemoinho de poeira levantado por uma ventania. Ele me disse que logo, logo, eu ia para o reino dele. Que lá era muito divertido.
Eu fiquei assustado. Será que vou morrer cedo, mãe?
- Cala a boca, menino! Você vai crescer, ficar um moço bonito e se formar. Eu juro que assim será.
O dia se apagou de vez
A maior de todas, a preferida de Carminho, brilhava mais do que nunca. A muito custo, Alzira levantou-se. Foi até a pequena cozinha, olhou para o prato ainda cheio de farofa de míudos e dois ovos fritos o almoço de Carminho e, então, somente então, chorou.