Claudene

 

 

“Ela é tão pequena e já peguei barriga de novo...”.

Mainha, fica com ela só um pouco é tão pequena. Só durante minha quarentena. Tá difícil. Fica mainha...

A quarentena acabou e a netinha ficou. Os pais não se importaram muito. Outros filhos vieram..

E assim os anos foram passando, passando e ela ficando, não querendo voltar para a mãe que quase não conhecia. Trocar o certo pelo duvidoso? Sentia medo só em pensar. Muito medo em ter que voltar para um lugar que nunca foi seu... Afinal, o que aconteceu não foi sua culpa, e isso ela não entendia, não queria, não precisava entender. Se a deixaram... Que a deixassem. E pronto. Ela era feliz.

Dinheiro? Era tão pouco, mal dava para comer. Comprar roupas nem pensar. Estudar então... Era tão difícil e coisa de homem, segundo seu voinho...

Mas ela sonhava, deixava seu pensamento solto ao vento e ele ia longe... Ia para um mundo tão bonito, um mundo que ela sonhava conquistar.Trabalhando.

Mas um dia, sentiu-se órfã, abandonada mais uma vez. Vómainha partiu para nunca mais voltar.. Foi pro céu. Ela chorou a dor da perda, a dor do nunca mais...

Continuou a morar com o “vôpainho” e o tio, o sempre criança. Não queria deixá-los sós. Ele não queria que ela se fosse. O que fariam sem ela? Era cômodo para todos que ela ficasse. Alguém teria que cuidar dos,dois enquanto os outros... Ora os outros. Ela ficaria e pronto. A carga seria dela. Afinal  não dizia que ele era seu “vôpainho?” Mais que pai, mais que avô. Então...

“Que comida mal feita. Ainda não sabe fazer nada... Falta sal. Ô coisa ruim de comida. Todo dia  mesma  coisa. Hoje está muito salgada. Você não sabe fazer comida diferente? Todo dia sempre igual, sempre igual.”

Ela já tinha decorado todas essas palavras, pois as ouvia desde pequena. Só que cansou, virou a mesa e ele passou a respeitá-la. Afinal, ela não era a doce vómainha. Tinha personalidade. Sabia se impor. Ô se sabia.

Vez por outra visitava Mariá, sua mãe, a que foi sem nunca ter sido. Se passasse das oito horas da noite, o “bicho pegava”. A porta da casa fechava  e pronto. Só que a esperta deixava a janela do quarto encostada. Mas ele descobriu. Mais uma vez ela virou a mesa: “quer que eu derrube essa porta no peito, ou vai abrir?” Nunca mais. Nunca mais implicou com horário. Também, oito horas da noite é tão cedo, dizia ele.

“Lava roupa todo dia... Lá vai Maria, lá vai Maria...” Lavar, passar, cozinhar, limpar a casa, economizar cada tostão, cuidar do vôpainho que tanto amava, mas que muitas vezes dava nos nervos e ela sentia vontade de sumir. Quando ele bebia... Ah, quando ele bebia... Mas também era tão bonzinho. De cada coisa que ganhava, dividia por três: para ele, para ela, para o sempre criança. Ele a amava e ela sabia disso. Tinha certeza. Era um amor não dito por palavras.

Vamos para São Paulo, prima. Eu ajudo você.

Tão novinha... Ela tinha o mundo pela frente e o vôpainho já tinha vivido a vida dele. Noventa anos. Ela beirava os vinte e só conhecia aquele mundinho de nada, sem perspectivas de melhoras. Ela protagonizava uma história sem expectadores.           

Vontade de ir, mas e a coragem? Como deixar seu vôpainho? O que ele pensaria?O que os outros falariam? Ah esse controle coletivo, tão pleno de julgamentos, de olhos a seguir passo a passo a vida do outro,mas sem nunca querer trocar de lugar com ele... Pois se trocassem, de quem falariam? Deles mesmos?

Inapta para tomar essa decisão, continuava presa  a uma vida que não lhe oferecia futuro algum. O primo dizia, vamos que eu ajudo você.

Em sua consciência, culpa e vontade de decidir sua vida, estavam cada vez mais presentes.

Depois de algumas hesitações, resolveu que o melhor seria fugir, para não ter que explicar nada a ninguém .Uma das conseqüências “do ficar a qualquer preço” são as moléstias psicossomáticas , diria Gaiarsa. Então...”.

Hora de dormir. Abraça vôpainho com carinho, faz um afago demorado no sempre criança, passeia pela casa e tatua no coração cada detalhe, cada momento em que ali viveu, para que nela fique para sempre. Ad eternum.

Uma sacola de plástico, uma troca de roupa, nem um centavo no bolso e “simbora pra São Paulo”, com o coração apertado,dolorido. Dor doída de doer...

Vida difícil. Comeu o pão que o diabo amassou para ela, que era forte, corajosa, sabia a que veio e foi em frente, comendo pedaço por pedaço, sentindo o gosto da vitória que em breve chegaria.

Se ela era feliz? Certamente o era.

Mas a saudade do vôpainho aumentava a cada dia...

Dois anos se passaram e lá foi ela rever aquele que deixou sem explicação alguma.

Abraços de saudade, a compreensão do vôpainho, o cuidar dele de novo, o depois de alguns dias ouvir as mesmas palavras de sempre, mas com uma visão diferente, que só se consegue a distância. 

E à hora de voltar, a mesma dor doída de doer.

 

 

Heloisa/ 2 de abril de 2010