Pois é, e quem não tem lá as suas manias, seus desejos ou sonhos secretos? Todo mundo tem dessas coisas bem escondidinhas, lá no fundo de seu coração. E o José K. Mundongo, mais conhecido na pequena cidade por Zeca Mundongo, tinha dois sonhos: o primeiro era poder participar de uma procissão todo paramentado, segurando com as duas mãos uma cruz bem grande ou um castiçal, um ostensório ou até mesmo um defumador espalhando fumaça de incenso pelas ruas da cidade.
Não era religioso, mas ia a tudo que era procissão e ficava de olho vidrado vendo aquela fila de beatos e padrecos, aqueles seminaristas iniciantes, quase meninos ainda, vestidos com roupas brancas cheias de rendas, usando meias roxas e conduzindo aquelas peças douradas da igreja, a coisa mais linda deste mundo. E voltava pra casa curtindo uma tremenda frustração. Daria tudo na vida para ter sido convidado a estar no meio deles, naquela procissão. Bem que a sua avó tanto queria e quase lhe dera o nome de Bento, para que ele fosse sacerdote. Só que ele não se chamou Bento, nunca foi coroinha, nem ajudante de missa, nem sacristão como o Cirineu, seu maior amigo, e muito menos padre. E guardava em silêncio o seu enorme desejo, para que ninguém o levasse no deboche.
Então, cabisbaixo ele dizia para si mesmo:
- Ainda não foi dessa vez Zeca, mas não morrerei sem antes realizar os meus sonhos.
O outro desejo do Zé, cruzes! Era de um mau gosto de dar arrepios. É que ele adoraria segurar a alça de um caixão, ajudando a levar algum delfino até o portal do outro mundo. Ia a tudo que era enterro da cidade, mas também não era lá tão fácil a concretização desse seu mórbido desejo, porque sempre acontecia que na justinha hora H, em que o de cujos ia dar no pé, havia uma turminha de parentes e amigos mais chegados que já haviam combinado o "serviço" e mesmo que ele já estivesse ali coladinho no pacote de pau, com a maior boa vontade estampada na cara, e até mesmo esboçando um disfarçado sorriso amarelado, logo aparecia alguém que lhe dava uma cutucadinha no ombro, indicando que a vaga já fora preenchida, e ele se afastava desanimado, enquanto o cara botava a mão na sua tão cobiçada alça do caixão.
- Ainda com o sorriso amarelo, dizia para os seus botões:
- É... ainda não foi dessa vez não Zeca, fica pra a próxima. Mas não morrerei sem antes realizar os meus sonhos.
- O que Zeca, perguntou um companheiro de cortejo; você disse alguma coisa?
- Hãa..., não, não. Falei nada não. E saía de fininho.
Certa tarde durante uma procissão o sacristão, seu amigo, segurando uma das hastes do andor que sustentava o santo, sentiu-se mal. Pressentindo que ia desmaiar, olhou em volta e deu de cara com o Zeca. Fez um sinal para que o acudisse e rapidamente passou-lhe a haste, para que a procissão não parasse. E a procissão prosseguiu, com o Zeca realizando o primeiro dos seus grandes sonhos, não cabendo em si de contentamento e sustentando orgulhosamente uma perna do andor, mesmo sem os devidos paramentos, por força da circunstância.
Terminada a procissão lá se foi correndo o Zeca ver o amigo, e abraçando-o, trêmulo e com os olhos ainda cheios de lágrimas dizia:
- Obrigado Ciri; meu amigo, obrigado; você não sabe o quanto lhe sou grato, Deus lhe pague.
O amigo, sem saber a razão de tanta gratidão respondeu:
- Obrigado lhe digo eu, você me quebrou o maior galho, cara. A dor na boca do estômago foi tão grande que eu ia era cair ali durinho desmaiado, o andor ia se desequilibrar e o santo ia se espatifar no chão. Se não fosse você...
- Não, não, não meu amigo. Se não fosse você, dizia o Zé, eu não teria acabado de realizar um dos meus maiores desejos, um dos meus maiores sonhos, Cirineu! Nem tenho palavras para lhe agradecer. Agora só falta um. E lhe contou, pedindo que guardasse como segredo de amigos, quais eram os seus dois grandes sonhos, na vida.
O amigo, muito surpreso lhe disse:
- Poxa, fico feliz por isso, mas quanto ao seu outro sonho, ah, esse não. Conta comigo não. Qual é, Zé! Você não tinha aí um sonhosinho mais levesinho pra sonhar não? Isso aí é um pesadelo, cara, me desculpe...
- Bom, bem, te contei em confiança Ciri, por favor...
- Não amigo, segredo de sacristão é quase segredo de confissão; a coisa morre aqui. E amigo, como você sabe, é para todas essas coisas; é ou não é?
Passaram-se muitos anos, até que um dia o antigo sacristão, já idoso, homem alto e de físico bastante avantajado, sem mais nem menos adoeceu, e de um dia para o outro bateu as botas. Foi dessas mortes assim quase repentinas em que todo mundo fica atordoado. Desolado o Zeca Mundongo correu à casa do amigo que acabava de perder, e muito abatido abraçava a viúva e os filhos, prontificando-se a ajudar no que lhe fosse possível, mas cadê coragem para pedir o que tanto desejava pedir? Seria uma oportunidade única, mas não ficaria bem, com certeza a mulher do amigo iria acha-lo importuno, inconveniente.
Já no cemitério, o Zeca muito aflito via toda a família do falecido rodeando o ataúde, e quando já se aproximava aquela triste hora H, em que o de cujos vai ter que se mandar mesmo, de repente viu a viúva se levantar e debulhada em lágrimas, falar em alto e bom som:
- É o seguinte: o meu marido, já quase sem poder mais falar, me pediu que lhe trouxesse o seu caderninho de capa preta e um lápis, e também quase sem poder, escreveu alguma coisa nele e me devolveu o caderno, que eu nem tive mais condição de ler, porque logo depois que escreveu, ele morreu. Só agora é que eu pegando um lenço na bolsa (e caía em pranto), encontrei o caderninho, esse aqui, aonde está escrito assim:
E abrindo o dito caderninho de notas leu:
- "Rosilda, o meu último desejo é este: que o meu amigo José Kirino Mundongo, o Zeca, segure a alça da frente do lado direito do meu caixão, até eu chegar na minha última morada. Faça isso como sem falta. Cirineu".
Quase não se agüentou de pé. Respirou fundo, suou frio, a boca secou, o coração disparou, ficou mais esverdeado que o próprio defunto e pediu um copo d´agua. Bebeu a água e encaminhou-se emocionado em direção ao caixão, para realizar o último pedido do amigo e também o último dos seus sonhos.
Alguém lhe perguntou:
- Zeca, você vai agüentar? O homem é pesado!
Nem deu resposta. Coração aos pulos, fez a última vontade do falecido, levando-o até lá no fundo do cemitério, no alto do morro.
- "Dessa vez foi. Agora sim, bem que eu sempre disse: não morrerei sem antes realizar os meus sonhos; obrigado, meu grande amigo Ciri, pela segunda vez" ? falou para os seus botões.
- O que? Você disse alguma coisa, Zeca?
- Hãaa.., eu? Se... se eu falei alguma coisa?
- Ó homem, estás tão pálido... Tu viu alguma alma do outro mundo por aqui nessas catacumbas?
- Tô só cansado, disse o Zeca.
Pois é, dia seguinte, o médico ao constatar o óbito falou:
- O Zeca sabia que seu coração não agüentaria que pegasse qualquer peso; nem de dois quilos.

Júnia - 2010