CIRCE: MITOLOGIA, FICCÃO E PARÓDIA

 

Ms. Rozelia Scheifler Rasia - UPF

Mitos, crenças e expectativas se entrelaçam a episódios que se desenrolam nas obras Odisseia, de Homero (século VIII a.C) e Ulysses, de James Joyce (1914), que em distantes milênios repetem os símbolos do cotidiano de hoje e de sempre. Na complexidade das obras delimitadas como universo de Circe, encontram-se as características da mulher como sede da conquista e da realização do erotismo.

Mais de dois milênios separam as narrativas em estudo, nas quais a presença de Circe, o mistério do feminino originado na magia e no fascínio, transita no universo literário do poema X da Odisseia protagonizada por Ulisses, em sua épica volta a Ítaca após a Guerra de Tróia. A mítica figura da mulher sedutora e ardilosa, também, destaca-se nos cenários do bordel que Bloom visita no capítulo XV de Ulysses, narrativa de Joyce, onde os personagens vivem rotinas comuns no início do século XX.

A tematização transversaliza conceitos e reflexões sobre a construção da parodia mitológica de Circe, que ao lado de Ulisses protagoniza significativos episódios e permeia o universo narrativo da Odisseia, cujos cenários, enredos e personagens foram reinterpretados por James Joyce, em Ulysses.

A compreensão dos fragmentos das obras em estudo envolve a apreensão do mito que protagoniza a narrativa grega de Homero e a interpretação da Odisseia realizada por Joyce, que decorre do substrato da mentalidade europeia anterior às grandes guerras. Além das transformações ocorridas nas concepções sociais, religiosas, políticas e culturais impressas no decorrer dos milênios emerge o sobremito de Ulysses como texto inacessível.

A Odisseia estrutura-se em vinte e quatro poemas interligados conforme os estatutos da epopéia, na qual deuses, heróis e homens comuns lutam pelos valores mítico-religiosos e pelos ideais construídos coletivamente. Em Ulisses de Joyce, o texto flui sob a forma de romance e progride pelas ações das personagens que protagonizam a saga humana frente à adversidade da vida cotidiana e dos conflitos que se perpetuam pela distinção de papéis entre homens e mulheres, pelas relações de produção e consumo, pelos (pré)conceitos sobre ética e  questionamento sobre os mitos e os mistérios.

O tempo enunciado na Odisseia transcorre durante a volta de Ulisses de Troia a Ítaca durante dez anos, dos quais convive um ano com a sedutora feiticeira Circe na isolada ilha de Aca de onde parte para encontrar sua fiel esposa Penélope. Em contrapartida, em Ulysses, a aventura e desventura de Bloom transcorrem em dezoito capítulos, que se desenrolam em 18 horas, a partir das oito da manhã do dia 16 de julho de 1904, no qual ele se deleita no bordel entre 23 e 24 horas. Segundo Houaiss (1984), este átimo de tempo representa um dia na vida da humanidade.  

Embora Joyce tenha começado a traçar as linhas iniciais de Ulysses em 1914, sua concepção volta a 1906, desde que tencionara criar um personagem para rivalizar com o clássico grego Odisseu. No romance, cada capítulo, apresenta-se sob uma forma narrativa diferente; ao capítulo XV Joyce imprime o teor do drama em uma estrutura teatral independente, mas não isolado dos demais capítulos, onde o mito de Circe passeia na noite de Bloom que visita o bordel de Bella, o qual é descrito com ninfas e cascatas. Estes elementos cênicos permitem que se estabeleça relação com a ilha de Aca, onde vivia Circe.

Em Ulysses, no prostíbulo de Bella em Dublin, as prostitutas visitadas por Bloom e Stephen representam a mulher que faz da sedução um modo de viver e, por isto, são excluídas e consideradas pela maioria dos segmentos da sociedade como seres inferiores, entretanto são criadas e multiplicadas pelo regramento social que as pune pelo fascínio da transgressão. 

Leopold Bloom, homem de meia-idade, como Ulisses na Odisseia, sabe que sua mulher, a cantora Molly, que em nada se parece com Penélope, o trai com um empresário. Resignado, o protagonista percorre ruas, bordéis e bares. No caminho, encontra o jovem Stephen Dedalus, que representa Telêmaco, filho de Odisseu.

Após algumas horas distante de casa, Bloom revive os acontecimentos passados e se prepara para a volta ao lar, onde sua mulher - reverso de Penélope e espelho falso de Circe – aguarda-o para a continuidade da farsa conjugal. Seria a infelicidade no casamento, a tempestade enfrentada por Bloom?

Ulisses, na ilha de Aca e Bloom, no bordel, vivenciam experiências que desnudam a intimidade, as convicções, os sentimentos e o caráter de cada um. O herói épico e o protagonista do romance assumem características de homens reais da época da construção das narrativas, como traços da verossimilhança entre personagens, enredo, espaço-temporal e realidade extraliterária.

Na Odisseia, o próprio Ulisses narra de forma indireta e retrospectiva suas aventuras aos feaces - povo mítico grego que o acolhe e, posteriormente, conduzem-no a Ítaca. Ele relata a partir do desfecho, durante a assembléia dos deusesem que Zeus decide sua volta ao lar, após o enfrentamento de múltiplas adversidades provocadas por Posseidon, que dificulta o curso de vida que projetara para si. Em oposição, a proteção da deusa Atena lhe permite encontrar soluções às intempéries durante a viagem de 10 anos para voltar ao lar e compartilhar a maturidade com a esposa Penélope, o filho Telêmaco e o pai Laerte.

Na trama de Homero, os previsíveis infortúnios do encontro de Ulisses com Circe são evitados pela interferência de Hermes que o alerta e lhe recomenda o uso de uma erva que neutralizaria a magia da feiticeira, que já havia transformado seus companheiros em porcos e, antes deles, outros homens sofreram degradantes transformações.

Como afirma Pinheiro (2005, p. 873) in Ulysses, “a bestialidade das vítimas de Circe é parodiada por Joyce através do ambiente sórdido do bordel de Bella”. As fantasias eróticas de Bloom e a tentativa de Stephen para esquecer a morte da mãe são dramatizadas em um misto de sentimento de culpa, desejo de poder e erotismo.

No poema X da Odisséia, Circe antecipa episódios que aconteceriam no capítulo XXI, ao alertar Ulisses sobre os perigos que enfrentaria na descida ao Hades, Reino dos Mortos, onde falaria com sua mãe, que se suicidara e também veria vários heróis mortos em batalhas, ouviria as instruções do sábio Tirésias sobre como proceder para atravessar o mar bravio e passar ileso pelas sereias, que atraiam os homens com seu canto e os devoravam.

Ao revelar artimanhas para Ulisses chegar aos infernos e buscar pistas para seu retorno ao livre comando do próprio destino e a transmissão de seu exemplo ao filho e a todos os homens em todos os tempos, Circe abdica do exercício do poder e concede ao herói a oportunidade de buscar sua liberdade. A ela, Adorno e Horkheimer (1985) atribuem a ambigüidade, por aparecer na ação como corruptora e benfeitora.

  Ulisses alertado por Circe, em alto mar, veda os ouvidos de sua tripulação e amarrado ao mastro fica impossibilitado de sucumbir ao canto sedutor de Cila e Caribde. A hipótese de sedução de Ulisses pelas míticas sereias causar-lhe-ia a morte, assim nunca teria relatado sua aventura ao rei Alciono, portanto inviabilizaria a existência do poema chamado Odisséia, como refere Todorov (1971) em sua obra Poétique de la prose.

Houaiss (1984) lembra que o herói Ulisses - em suas façanhas épicas - reaparece transformado desde a antiguidade grega, projetando-se nas Idades Média, Moderna e Contemporânea em poemas, narrativas, dramas, óperas etc., que simbolicamente representam ciclos literários, como na obra de Joyce, ou na vida cotidiana de um sujeito, que pode ser qualquer pessoa de qualquer nacionalidade ou classe social.

A paródia - originária do grego para-ode é uma ode que reverte o significado de outra - é um dos recursos literários utilizados por Joyce para renovar e atualizar a ancestral narrativa atribuída de Homero.

O romance do século XX restringe espaços à magia, ao sobrenatural, porém a cumplicidade, a representação e a simulação são palpáveis nas cenas onde Bloom, após ingerir uma substância alcoólica deixa-se induzir por suas fantasias eróticas, como um homem que compra o prazer como um produto de fugaz consumo.      

Morte e erotismo são tematizados nos capítulos destacados das obras abordadas, como o encontro de Ulisses com sua mãe suicida no reino dos mortos e a menção ao funeral da mãe de Stephen; o relacionamento entre o herói épico e Circe e as fantasias vividas por Bloom com as prostitutas. Eros e tanatus revelam fragilidades e ilusões dos protagonistas, porém não lhes diminuem o estímulo de ambos para voltar para suas casas.

A luta de Ulisses para voltar ao lar é obstaculizada por forças de Possêidon, mas ele vence pela obstinação e pelo auxílio de Atena. Estes seres sobrenaturais extrapolam a cientificidade atual e se chocam com noções cristãs sobre a divindade e a supremacia do homem em livre arbítrio. Aliás, princípios da cristandade são contestados por Joyce, ao inserir intertextos com alusão à fala de um personagem judeu da obra de Flaubert, que conta a Santo Antônio como Maria teria ficado grávida de um soldado romano e teria dado à luz a Jesus.

Na Odisséia, Circe é a caracterização da mulher como personificação da sedução, da paixão, da irracionalidade e metáfora do transitório prazer dos sentidos. Ela detém a eterna força que transforma os homens em animais e usa truques para aprisioná-los em um universo de ilusão. Em oposição, Penélope, a esposa de Ulisses, é fiel e perseverante na conservação ética da sociedade instituída, ela ama e confia no amado, pois por vinte anos resistiu à corte dos pretendentes e esperou o herói.

Pelo exposto, Circe, personagem de Homero não encontra remissão nas personagens femininas em Ulysses; pois Molly, a esposa de Bloom o mantém cativo por seus encantos, enquanto as prostitutas, excluídas pela pobreza e marginalizadas em consequência da política de estratificação social, conhecem a abrangência de seu poder de sedução sobre o corpo dos homens e os limites de sua influência sobre a consciência deles.

As faces e contrafaces de Circe se projetam através da paródia de cenários, mitos, costumes, heróicos guerreiros, épicas batalhas, crenças sobrenaturais, viagens e estratagemas vividos ou revividos por Odisseu, que foram selecionados, transformados, metaforizados e inseridos na narrativa de Ulysses através de pessoas comuns que vivem um cotidiano compatível com os saberes, a moralidade e a transformação do indivíduo em produto da sociedade retratada por Joyce, onde por vezes, ao contrário da trama de Homero, a aparência é humana, mas a consciência é de animal domesticado em uma selva, na qual presa e predador dividem os mesmos espaços.

                  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max . Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1985.

HOMERO. Odisséia. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2006.

HOUAISS, Antônio. Notas de tradução In Ulisses, Lisboa, Círculo de Leitores, 1983.

JOYCE, James. Ulisses. Trad. Bernardina da Silveira Pinhriro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

PINHEIRO, Fernando. O que é teatro? São Paulo: Brasiliense,1985.

PINHEIRO, Bernardina da Silveira. Notas de tradução In Ulisses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

TODOROV, Tzvetan,  Poétique de la prose. Paris: Édtions du Seuil, 1971.