Cidadania Luso-Brasileira (Introdução)
Por Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo | 15/10/2010 | Filosofia1. Cidadania Luso-Brasileira
(Introdução)
"Os direitos e deveres comuns a todos os homens são também os direitos e deveres de todas as nações" (FERREIRA, 1834b:511)
Constitui um dever indeclinável da humanidade em geral e de cada indivíduo em particular, envolver-se, seriamente, numa melhor e continuada formação pessoal, na medida em que nunca é demasiado tarde para o homem se aperfeiçoar, nem a sua personalidade poderá dar-se por concluída, muito menos a situação mundial pode deixar tranquilas as pessoas, não só no que se refere à segurança e integridade territorial, mas também, e principalmente, quanto aos valores, princípios e atitudes que, no Homem-Cidadão do futuro, serão exigíveis, quaisquer que sejam os papéis e estatutos de cada um.
Na verdade, não parece suficiente, ainda que necessária, a acção dos especialistas nos domínios das designadas ciências positivas, para se poder desfrutar de uma sociedade moderna, compatível com a mais profunda dignidade humana.
Com efeito, é necessário defender, sem hesitações, todos os meios legítimos, legais e adequados à construção de formas de convivência, que privilegiem qualidades naturais humanas individuais e que, cumulativamente, possam ser desenvolvidas e aplicadas em benefício do colectivo. As boas-práticas para consolidar as melhores qualidades são uma boa metodologia a seguir.
O mundo carece de cidadãos com personalidade baseada em valores, em atitudes, carácteres que sirvam de paradigma a todo e qualquer indivíduo que, voluntariamente, deseje contribuir para a sociedade global, porque é com bons carácteres que se constituirá um futuro verdadeiramente digno da condição humana: "Um bom carácter (?) é aquele que obedece a princípios reconhecidos como justos, que continua fiel às noções de amor, justiça, bondade e integridade" (TIÈCHE, 1982: 9)
O homem é, natural e simultaneamente, o problema e a solução da maioria das situações que vive na terra e, como tal, tem a obrigação de saber o que pode e não pode fazer, como deve e não deve comportar-se, para que possa ser produtor e produto da sociedade que lhe é específica.
Nesse sentido e porque está dotado de inteligência e vontade, será capaz de produzir o bem e rejeitar o mal, basta, para tanto, usar em cada momento as suas boas capacidades, inatas e adquiridas, começando por se estruturar com uma personalidade que, paulatinamente, vai melhorando ao longo da sua vida e, sem esperar que a morte biológica o surpreenda, transferirá para os seus semelhantes mais novos, toda a riqueza espiritual e sabedoria que acumulou durante o seu percurso terrestre.
A riqueza da humanidade há-de resistir e aumentar consoante o contributo de cada um, independentemente de barreiras sociais, étnicas, políticas, económicas, etárias, culturais, religiosas, profissionais ou quaisquer outras. Todos serão poucos para construir a sociedade digna da superior condição humana, no entanto, esta tarefa começa em cada um e acaba no colectivo.
A formação deste homem que se pretende venha a ser o cidadão do futuro, deverá, em consequência, iniciar-se individualmente, enquanto elemento constituinte de uma matriz comum que é a língua, na circunstância, a língua portuguesa e os povos que nela se comunicam, se solidarizam e se compreendem na vida quotidiana.
É consabido que o homem está dotado de múltiplas dimensões, que ele próprio tem vindo a ampliar, através da sua cultura, da educação, do estudo e do trabalho, buscando e construindo sínteses que lhe permitam compreender o mundo que o rodeia, todavia, nem sempre se tem esforçado no sentido de se conhecer e compreender a si próprio, muito embora e quando se recua no tempo da sua história conhecida, tal interrogação se lhe coloque. Socraticamente: "Quem sou?"
Passa-se a vida a avaliar uns aos outros, a criticar, quantas vezes pela negativa, a tudo fazer para que não se seja impedido, por qualquer modo, na caminhada que, egoísta e solitariamente se pretende prosseguir, frequentemente contra tudo e contra todos, violando os mais elementares direitos humanos, não olhando a meios para atingir os fins, indiferente aos correspondentes direitos dos seus iguais e até da própria natureza, da qual, deseje-se ou não, todos fazem parte integrante e com igual dignidade.
No vasto conjunto das dimensões que caracterizam o homem, hão-de abordar-se algumas delas nesta tese de defesa da necessidade de formar um novo cidadão para o futuro e, como todos se integram num espaço ecuménico no qual não só se ocupa um lugar de destaque, mas também e principalmente pelos valores que ao longo dos séculos têm sido defendidos, torna-se interessante dar mais um contributo para que outros povos, outras culturas, outros valores se congreguem neste objectivo.
Por isso, a Comunidade de Povos de Língua Portuguesa defenderá, na formação do cidadão luso-brasileiro do futuro, alguns dos mais destacados direitos do homem, designadamente e, a par do direito à vida: a felicidade, o direito à liberdade e nesta, a liberdade de consciência que, aliás, é símbolo, hoje comprovado, de grandes e prósperas nações: "Foi o desejo de liberdade de consciência que inspirou os peregrinos a enfrentar os perigos da longa jornada através do mar, a suportar as agruras e riscos das selvas e lançar, com a bênção de Deus, nas praias da América, o fundamento de uma poderosa nação. Entretanto, sinceros e tementes a Deus, como eram os peregrinos não compreendiam ainda o grande princípio da liberdade religiosa." (WHITE, 1981: 235)
O cidadão do futuro não pode prescindir desta maravilhosa dimensão humana, porque sem ela o seu caminho não será iluminado suficientemente e a formação que se pretende ficará prejudicada, quanto mais não seja pelo facto de não ser capaz de compreender e aceitar, justamente, aqueles que a recusam o que, provavelmente, poderá originar alguns conflitos a diversos níveis e escalas.
Além do mais, é perfeitamente compatível com o progresso científico e tecnológico este aprofundamento e recolhimento religioso, até porque em nada prejudica, mesmo que alguns defendam que também em nada os beneficia, o certo é que sente-se uma necessidade muito grande para explicar certos fenómenos naturais e, por isso mesmo, e em última instância, de quando em vez, volve-se o pensamento, os desejos, as angústias para um Ser Supremo porque se sente a impotência e, simultaneamente, a esperança numa resolução divina: "Esta necessidade faz-nos falta no Ocidente. Estamos deformados pelo progresso exagerado. Embora sem preconceitos contra a Civilização e a Ciência, somos bem obrigados a verificar que uma e outra nos fazem perder de vista o elemento espiritual da vida. O que nos faz falta é uma presença espiritual. Não queremos dizer uma presença etérea, impessoal, vagamente fluídica, mas uma presença real ou noutros termos, uma pessoa." (TIÈCHE, 1982: 318)
Uma outra dimensão humana que, pela experiência da existência de cada um em particular e de quase todos em geral, se deve ter em atenção é a que se prende com a Cultura. O conceito de Cultura será desenvolvido no seu sentido antropológico e não na perspectiva elitista, da acumulação e exibição de conhecimentos, qual enciclopédia humana.
Todo o homem tem a mesma dignidade como qualquer outro seu semelhante e, como tal, não pode ser inferiorizado por esta ou aquela dimensão, apenas se podem abordar em perspectivas diversas porque, como é sobejamente entendido, não há culturas superiores ou inferiores, mas sim culturas diferentes que, afinal, até se complementam e enriquecem a espécie humana, permitindo uma melhor compreensão uns dos outros.
Precisamente porque muitos dos cidadãos de hoje não foram e não estão preparados para um entendimento igualitário da condição humana, no respeito pela diversidade bio-cultural que ela encerra, é que surgem imensos conflitos a nível local, regional, nacional e internacional. Conhecem-se os problemas multiculturais resultantes de exacerbados preconceitos rácicos, xenófobos, étnicos, religiosos ideológico-politicos, históricos e muitos outros.
Não se resolvem os problemas quando se invoca apenas e tão só um de tais preconceitos e, quando o fazem estarão, sub-repticiamente, a encobrir outros nos quais, intimamente, se incluem mas que não querem revelar-se.
Quantos, elitistamente, se consideram cultos, letrados, ilustrados e importantes, procurando aceitar o seu semelhante humilde, analfabeto e desconhecido, quando transmite os seus conhecimentos, os seus hábitos, costumes, tradições, pensamentos e formas de agir? Como se ridicularizam aqueles que dominam uma verdadeira e genuína cultura antropológica, isto é, o pacato homem bom, cidadão da paz e da humildade!
Verifica-se que o problema da cultura é, também, uma questão de mentalidade, porque: aquela adquire-se muito gradualmente e é comum; esta é uma coisa que não se pode ensinar, pois é resultado das convicções mais profundas de cada um.
Por isso a cultura se manifesta na forma de agir, sentir e pensar que vão sendo apreendidas. Traduz a totalidade de um modo de vida de um povo, transmite-se pela tradição oral e/ou escrita, ritual e/ou monumental. A cultura é uma actividade que diz respeito ao homem individual (domínio do subjectivo) e que contém intrinsecamente a ideia de transformação no sentido do melhor, propagando-se ao colectivo, ao qual engrandece e enobrece.
A dimensão cultural do homem vai-se enriquecendo ao longo da vida, de geração em geração, e a sua consolidação é tanto maior quanto mais firmes forem os valores em que ela assenta. Naturalmente que ao longo da história da humanidade o sistema de valores tem variado, assim como é diverso entre as várias culturas existentes, todavia, valores existem que, ao longo do tempo, resistem e se mantêm nos dias de hoje: Justiça, Paz, Dignidade, Amor, Liberdade, entre outros.
Não significa isto, porém, que na sua caminhada, a sociedade organizada, não procure criar novos valores, secundarizar outros, ignorar ou mesmo eliminar aqueles que não são considerados compatíveis com uma determinada cultura, ou com um conceito mais restrito do valor, no decurso de uma época ou na vida de um povo, ainda que mais tarde, possam ser recuperados em novos contextos: por exemplo, o valor Vida, em certas sociedades, é sacrificado em benefício do valor Justiça, quando se entende esta como algo que deve ser realizado de forma dita exemplar, invocando-se aqui o recurso à pena de morte, para punir a prática de certos crimes em determinadas sociedades, por estas considerados hediondos e, portanto, inaceitáveis
Entretanto, com as alterações profundas da educação e das inter-relações sociais, o sistema de valores vai-se modificando. O homem transforma-se, paulatinamente, ao longo da História e, ao fim de séculos vividos de várias formas, sob diversos sistemas, enfrenta hoje um mundo que evoluciona vertiginosamente. Alguns valores fundamentais que ao homem dizem respeito enquanto pessoa de direitos e deveres não estão irremediavelmente perdidos mas antes, preconceituosamente, esquecidos.
A capacidade de reflexão pode desenvolver-se em nostalgia ou projecto. O pensamento só vale na medida em que a aplicação material o prossegue, o que significa que algumas questões se colocam, quais sejam: em que medida, reflexão e acção se perseguem, se condicionam, se corrigem e se interdizem? Ou ainda, em que medida, revolução e cultura se podem articular, ou seja, haverá a revolução da cultura ou a cultura da revolução? Muitas e diversas podem ser as interrogações; respostas para todas, nem sempre são encontradas pelo homem e, quando o são, revelam-se, posteriormente, não servirem os objectivos que, elas próprias, pretenderiam atingir.
Sendo a cultura uma condição fundamental para a compreensão das realidades que envolvem o homem, a dimensão social deste constitui um outro aspecto essencial na formação do cidadão do futuro, considerando desde logo que o homem tem absoluta necessidade de estabelecer comunicação com outros seus semelhantes, transmitir-lhes experiências e receber informações, enfim, envolver-se vivencialmente.
A sociabilidade do homem é uma tendência para ele viver com os outros, partilhar com outros as emoções, sentimentos e também discutir o poder, estabelecer as normas, aplicar as sanções, punindo ou premiando. O Homem interage com os seus semelhantes, mas também se relaciona com outros animais, outras espécies, enfim, com a própria natureza de que ele é parte interessada, porque sempre vai dependendo dessa mesma natureza.
A sociabilidade, que pressupõe interacção, implica a criação e funcionamento responsável de mecanismos e de instituições mais ou menos estáveis, associações que promovam o dinamismo social no sentido da convivência organizada e, maioritariamente, cumpridora das regras politicamente estabelecidas.
O processo de socialização do homem é demorado, complexo e nunca absolutamente concluído: demorado porque o homem, quando nasce, é um dos seres mais frágeis e durante muitos anos carece da protecção dos seus semelhantes: da Família, depois da Escola, da Igreja, da Sociedade e do Estado; complexo na medida em que aumentando a diversidade cultural.
Também a dimensão da sociabilidade do homem se alarga, praticamente sem limites, porque não existem barreiras físicas para a expansão da cultura, aliás, é já frequente afirmar-se que todos são cidadãos do mundo, embora inacabados na medida em que através da investigação, da descoberta de novas culturas, e/ou de culturas milenares que, tendo sido extintas, foram substituídas por outras, por processos de aculturação/inculturação por formas mais ou menos pacíficas, sabe-se da existência de outros modos de vida, de ser, pensar e agir.
Os aspectos focados sobre a sociabilidade constituem uma nova complexidade que envolve não só o agir como também o ser, ao ponto de a sociedade, do século que recentemente se iniciou, poder assumir proporções que serão difíceis de controlar, pelo menos no domínio privado, porque: "Os fundamentos da sociabilidade humana, e a tendência humana para ultrapassar a solidão na ordem do ser e do agir, podem considerar-se sob o aspecto dos constitutivos intrínsecos do próprio ser do homem, ou da sua estrutura essencial, e podem considerar-se a partir da situação humana dentro do universo total da realidade." (SILVA, 1966: 75)
A sociabilidade humana, na perspectiva do cidadão do futuro, não pode ignorar um corpo organizado que lhe sirva de suporte e de grandes referenciais de valores políticos para o sentido da vida corrente e, nesse contexto, torna-se muito importante aperfeiçoar o sistema político, sem quaisquer preconceitos, sem dogmas, sem relativismos. O pragmatismo, quando utilizado para o bem-comum, pode ser uma atitude salutar, um princípio a observar, por que não uma nova prática política? Um pragmatismo que não deixe ninguém de fora do sistema, que utiliza estratégias inclusivas
A organização social tem implícito um conjunto de normas e de regras que suportam, também elas, a actividade política do homem que, de resto, desde sempre vem exercendo, sejam quais forem os regimes, porque o sistema político define e conduz quais e como se devem processar as diversas políticas da sociedade e a organização em que deve assentar o seu funcionamento. Nem de outra forma se poderia desenvolver o exercício da cidadania responsável, a qual pressupõe uma ampliação da intervenção participativa, no quadro de uma sociedade civil moderna, humanista e eficiente no que respeita ao nível e qualidade de vida dos seus concidadãos.
Bibliografia
BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2002). "Silvestre Pinheiro Ferreira: Paladino dos Direitos Humanos no Espaço Luso-Brasileiro" Dissertação de Mestrado, Braga: Universidade do Minho, Lisboa: Biblioteca Nacional, CDU: 1Ferreira, Silvestre Pinheiro (043), 342.7 (043). (Publicada em artigos, 2008, www.caminha2000.com in "Jornal Digital "Caminha2000 ? link Tribuna"); (Exemplares nas: Universidade do Minho, ISPGaya; Bibliotecas Municipal do Porto e de Caminha; Brasil ? Campinas SP: UNICAMP, PUC, METROCAM, UNIP; PUC, Municipal Prefeitura de Campinas)
BATOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2009). Filosofia Social e Política: Especialização: Cidadania Luso-Brasileira, Direitos Humanos e Relações Interpessoais, Bahia/Brasil: FATECBA ? Faculdade Teológica e Cultural da Bahia, Tese de Doutoramento. Exemplares Portugal na Biblioteca Municipal de Caminha; Brasil: Bibliotecas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas-SP, Metrocamp ? Universidade Metropolitana de Campinas-SP)
FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1834b) Manual do Cidadão em um Governo Representativo. Vol I, Tomo II, Introdução António Paim (1998b) Brasília: Senado Federal.
SILVA, António da, S.J. (1966). Filosofia Social, Évora: Instituto de Estudos Superiores de Évora.
TIÈCHE, Maurício (1982). Guia de Formação Pessoal, Trad. A. Dias Gomes, 7ª Ed., Sacavém: Publicadora Atlântico, SARL.
WHITE, Ellen G., (1981). O Grande Conflito, 7ª. Ed., Sacavém ? Portugal: Publicadora Atlântica, SARL
Venade ? Caminha ? Portugal, 2010
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
bartolo.profuniv@mail.pt
Mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea
Universidades: Minho/Portugal; Unicamp/Brasil
Doutor em Filosofia Social e Política
Faculdade Teológica e Cultural da Bahia -Brasil
Professor-Formador