Cidadania Ambiental

O Legado da Pedagogia:

A poesia foi a primeira matriz de conteúdo pedagógico de nossa civilização. Durante trezentos anos, os povos gregos educavam seus jovens com base nos poemas de Homero, a Ilíada e a Odisséia, e Hesíodo, Teogonia e O Trabalho e os Dias. De seus versos saiam as palavras e os conceitos com os quais construía-se a idéia de um ser e de uma cultura. Moral, religião, ética, guerra, paz, amizade, respeito, amor, emoções, retórica, história, violência, civilização, universo, vida, morte, traição, beleza, bondade, justiça, deuses e musas, poesia e música, são exemplos dos valores trabalhados nestes poemas fundadores. Não só sabia-se de cor os versos, como também eram recitados em canto e prosa na prática cotidiana. Nada poderia ser mais sintomático do que a pedagogia começar pela poesia, pois ela representa o primado das emoções e do emocionar como a capacidade cognitiva primeira dos seres vivos em geral e dos humanos em particular, em aprender com o operar biológico desencadeado pela consciência e reflexão de suas próprias emoções e do poder de emocionar o outro. É deste ciclo virtuoso entre pedagogia, poesia e emoções que os gregos inventaram a idéia de civilização.

As leis foram a segunda matriz da pedagogia. Primeiro em Esparta, com Licurgo e depois em Atenas, com Simon. Em ambas elas resultam da invenção da palavra dike por Hesíodo, ao reclamar por justiça frente aos bárbaros e suas selvagerias. A lei surge como resposta do projeto civilizatório para coibir aqueles cujo comportamento ofendiam a cultura estabelecida e praticada por todos. As leis tratavam das excepcionalidades, e eram voltadas para os infratores. Daí a exigência de sua aplicação com equidade, ou seja, com relevância do contexto e do histórico da ofensa, para não causar injustiça na aplicação da justiça. E como não havia advogados, todos precisavam conhecer as leis para melhor aplica-las, ou delas defenderem-se. E assim, a Paidéia grega incorpora à poesia, as leis.

Cidadania é a terceira matriz de conteúdos a conformar a origem da pedagogia. Ela vem marcada pela idéia de soberania sobre um território e de uma sophrosyne no exercício deste poder, ou seja, de uma liberdade com limites. Incluía o estudo da história, a reverência às leis e aos ancestrais e o convívio civilizado na polis e com os outros povos. A perda da cidadania significava a escravidão, daí porque a forte formação física e militar dos jovens para a defesa de sua cultura e de seus territórios.

A evolução deste legado nos últimos 2.500 anos:

A posia e o emocionar são excluídos gradativamente dos projetos pedagógicos, homogeneizando-se uma visão racionalista, materialista e utilitarista da educação. A finalidade maior da educação reduz-se a capacitação do jovem em habilidades específicas. A formação  do ser e sua inserção num projeto nacional e civilizatório desapareceu ou é deturpado pelas ideologias totalitárias ou servis. Esta predominância do racional sobre o emocional inicia-se dentro da própria Paidéia grega, com o advento da filosofia e do império da razão. Depois de Sócrates, nenhum outro estilo pedagógico baseado na cognição dada pelas emoções foi criado ou utilizadfo pela pedagogia. Quando os romanos chegaram à Grécia, o poder inspirador das musas já havia cedido lugar ao poder reducionista da ciência. A poesia, o canto e o teatro, matrizes primeira da Paidéia grega, foram empurrados para gavetas especializadas e sobrevivem até hoje em seus guetos. Junto com a poesia, exclui-se também a visão yin de mundo e a pedagogia moderna, apesar de assumida quase que exclusivamente por mulheres, nos legou um modo essencialmente yang de ver, sentir, interpretar e construir o mundo.

As leis também foram expulsas do projeto pedagógico da modernidade. A cultura do direito romano, que subjaz ao arcabouço constitucional do Estado de Direito, não incorporou os sentidos e significados da palavra grega sophrdosyne, liberdade com limites, nem a equidade como exigência de justiça na consideração do contexto para a aplicação do texto da lei, nem tampoco a educação do povo para o domínio das leis, que em seu nome eram criadas. O estado de direito ficou sendo uma especialidade de iniciados, os bacharéis e juizes. Criou-se a anti-lei das leis, a de que a ninguém é dado o direito de alegar o desconhecimento de uma lei. Como se leis fossem informações genéticas impressas em nossas biologias e não criações culturais dos humanos. Consolida-se a idéia de que a lei disciplina a convivência, determinando aspunições para as transgressões. A busca do melhor para cada um e a proteção de cada um ou de coletivos prejudicados é o padrão que liga os espíritos das leis específicas e especializadas da modernidade. Não há nenhuma relação privilegiada com a formação da cidadania.

Grécia e Roma utilizaram a idéia de cidadania para substituírem os mercenários em suas intermináveis guerras. Durante a Idade Média esta idéia foi abandonada pelos pequenos feudos e reinos e somente com as Revoluções Americana e Francesa é que novamente tem-se a utilização do conceito em sua plenitude. Na era moderna a cidadania perde sua relação com a soberania e adquire a idéia de direito ao consumo de bens e serviços. O conceito de mercado ascende o de sociedade e a pedagogia vê-se mais uma vez reduzida com uma cultura que já não liga fenômenos entre si, que já não facilita estruturas cognitivas, neurológicas e lingüisticas, para um projeto civilizatório do humano. Aprende-se o fundamental pela metade e o importante pela rotina. É a pedagogia do enfado.

O Advento da Educação Ambiental:

A poesia como matriz do primeiro projeto pedagógico nos esclarece sobre o primado das emoções, e dentre elas o amor, na constituição do humano. Não andamos em pé somente por termos uma biologia vertical. Tampouco flamos por termos uma biologia da fala. Sequer amamos por termos um coração que bate descompassado. Tudo o que somos e do que jeito que somos aprendemos no operar em conjunto com os outros humanos. Ser humano e não selvagem é resultado de um aprender, de uma pedagogia que educa, de um projeto que norteia. Sem projeto e sem pedagogia transformamo-nos em seres humanos quaiquer. A Educação Ambiental permite o convencimento de que a degradação da natureza e da sociedade é resultado de uma racionalidade adquirida, na qual o humano desliga-se da natureza e de si mesmo com os outros. A EA propõe, através da etapa inicial de sensibilização, o emocionar com fundamento epistêmico de uma biologia do conhecimento, abrindo a perspectiva de uma racionalidade sustentável.

A proposição de leis para coibir a selvageria e promover a justiça e sua utilização como objeto na formação da cidadania, consolida-se parcialmente ao lado das demais artes e ciências, como o conteúdo do projeto pedagógico dos humanos. A Educação Ambiental abriu a possibilidade, nestes últimos dez anos, da necessidade de um novo tipo de leis, não mais voltado para coibir a selvageria, mas sim para a construção do que é melhor para todos. Estas novas leis, que a todos dizem respeito, é diferente daquelas que se aplicam somente aos que transgridem os valores culturais vigentes. A anti-lei do desconhecimento já não se justifica por si só, pois se trata de construir um conhecimento com uma nova ética, conceitos que revelam novas realidades e idéias que permitem a reconstrução de velhos problemas e conflitos. A Educação Ambiental surge como a facilitadora desta pedagogia do amor e da lei.

A cidadania deve ser entendida como um processo cultural permanente de formação e capacitação dos humanos para o exercício qualificado da soberania. E esta é a finalidade maior de todo projeto pedagógico. Od educadores, sejam pedagogos ou não, e atuando em qualquer nível da educação formal e não formal, não podem perder este foco jamais. Com a Educação Ambiental surge uma transcendência deste conceito de cidadania, no qual ao território político objeto da soberania é agregado conceitos difusos tais como ecossistemas, espécies naturais, bacias hidrográficas, unidades de conservação, cidades, qualidade de vida, pobreza, violência, poluição, diferentes níveis de realidade, complexidades, entre outros e ao exercício individual de direitos e deveres é somado a ação civil pública, exercida de forma representativa, participativa e qualificada, em prol do que é melhor para todos. A esta nova forma de participação cidadã, chamamos de cidadania ambiental.

Contribuição do Brasil:

Em levantamento realizado em 1.997, para a I Conferência Nacional de Educação Ambiental, constatou-se que 85% dos projetos de EA iniciavam com dinâmicas de sensibilização. Desde a década de 70, a Educação Ambiental consolida um projeto pedagógico no qual o religare do humano com a natureza e consigo mesmo tem seu ponto de partida na capacidade cognitiva das pessoas em emocionarem-se com a beleza da natureza e com a efetividade dos relaacionamentois humanos, de modo a provocar a abertura de seu espírito para a construção de uma nova racionalidade civilizatória, capaz de mediar sua inserção no mundo com o emprego de novos padrões éticos e estéticos na construção de uma sociedade sustentável. Sensibilização, Capacitação e Gerenciamento. Esta parece ser a primeira síntese da contribuição da EA brasileira para construção da Cidadania Ambiental.

A CF/88 e a participação cidadã nos preparativos dos textos para a ECO’92, são os fundamentos e a epigênese das quatro principais leis brasileiras que tratam da construção do que é melhor para todos. São elas: a Lei Federal 9.433, de janeiro de 1.997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, a Lei das Águas; a Lei Federal 9.795, de abril de 1.999, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental; a Lei Federal 9.985, de julho de 2.000, que institui a Política Nacional de Conservação da Natureza e a Lei Federal 10.257, de julho de 2.001, que institui a Política Nacional Urbana, o Estatuto da Cidade. Estas quatro leis estão baseadas no dispositivo constitucional do direito difuso, aquele que diz respeito ao interesse de todos, e na prerrogativa da participação cidadã, através das organizações representativas da sociedade. O padrão que liga estas leis é o fato de que agora o planejamento e o gerenciamento da água, da conservação da natureza e do desenvolvimento das cidades, devem ser realizados com e pela participação cidadã, tendo na educação ambiental a abordagem pedagógica de capacitação comum a todos estes processos. Esta é a parte decisiva do legado dos legisladores brasileiros para a segunda grande contribuição do Brasil na construção da cidadania ambiental.

A terceira contribuição deste legado é o amplo, intenso e fecundo processo de aprendizagem que a sociedade brasileira está realizando neste momento, ao criar e participar do gerenciamento dos Comitês de Bacias, das Unidades de Conservação e dos Fóruns de Cidades. Estamnos literalmente, como diz a canção, aprendendo e fazendo uma nova lição , onde a negociação entre o que é melhor para cada um cede lugar à mediação do que é melhor para todos. O novo papel do cidadão brasileiro no exercício de sua soberania está passando pela Educação Ambiental, que se consolida também como uma proposta pedagógica transdisciplinar de gerenciamento, facilitadora do diálogo entre os técnicos e representantes dos setores público, privado e social, todos com seus diversos saberes, valores e interesses, que caracterizam as ações governantes de um fenômeno, cujo resultado final deve, necessariamente, ser melhor para todos e não apenas para cada um.

Bibliografia

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: UnB, 2001.

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.

CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia.São Paulo: Cia das Letras, 2002.

JAEGER, Werner. Paidéia, Die Formung des Griechischen Menschen. México. Fondo de Cultura Económica, 1957.

HAMILTON, Edith. O Eco Grego. São Paulo: Landy, 2001.

MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

NASAR, Sylvia. Uma Mente Brilhante. Rio de Janeiro: Record, 2002.

VIDAL Naquet, Pierre. O Mundo de Homero. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

SILVA, Daniel J. Uma Abordagem Cognitiva ao Planejamento Estratégico do Planejamento Sustentável. Tese de Doutorado. UFSC/EPS, 1998.

_______________. O Paradigma Transdisciplinar: uma perspectiva metodológica para a pesquisa ambiental. In: PHILIPPI, Arlindo Marin Cecilia Focesi ((Ed.)). Educação ambiental: desenvolvimento de cursos e projetos. São Paulo: USP, Faculdade de Saúde Pública, Signus, 2.000.

_______________. O Método da Educação Ambienta. In: PHILIPPI, Arlindo, Interdisciplinaridade em Ciências Ambientais. São Paulo: Signus, 2000.

SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. São Paulo: Perspectiva, 2001.

Colaboração: FRC Ir.: Germano Brandes