Celina

 

 

Há tanto tempo ela se foi, mas em minh lembrança sempre estará. Fez parte de minha vida.

Eu me lembro dela com os cabelos presos por uma tiara, uma bolsa segura pelas duas mãos, na frente do seu corpo. Luiza, ela dizia. Luiza era eu, Heloisa.

Celina, moça menina. Menina no seu pensar, no seu sonhar, no seu querer. Moça, quando se punha a cuidar da casa, como se dela fosse. A se preparar para quem sabe um dia...

A família toda se preocupava com ela, que tinha muita vontade de namorar e casar. Uns namoradinhos até que teve, mas daí a casar... E esses namoros já estavam ficando meio que perigosos. Era melhor acabar com essa história de namoro, não daria certo. Mas como? Como acabar com tudo sem magoá-la? Sem feri-la?

Em uma reunião de família, alguém teve uma brilhante idéia: arrumariam um namorado fictício para ela. Todos se puseram a pensar nessa idéia maravilhosa que foi dada. Mas o que fazer? Como? Quando?

Mas conversa vai, conversa vem, chegaram a uma conclusão: o noivo seria americano, médico e seu nome seria Nelson. Por que Nelson? Ninguém sabia explicar por que, mas era esse o nome e ponto final.

Novamente puseram a cabeça para funcionar e logo chegaram à seguinte conclusão: um brasileiro que a muito morava em Los Angeles, esteve em São Paulo, foi fazer uma visita para a família. Fotografou a todos, inclusive Celina. Quando ele mostrou a foto a seu amigo, ele apaixonou-se perdidamente por ela.

Mas e ele, como seria? Moreno, loiro, bonito, feio, gordo, magro? Melhor que ele tivesse todas as qualidades possíveis, pois ela era exigente. Resolveram então que o noivo seria... Seria Paul Newman. Certamente esse seria de seu agrado. Como se possível fosse não sê-lo.

Mas como dizer a ela, como explicar que tinha alguém em outro país apaixonado por ela, em plenos anos 60? Como?

Resolveram que seria através de uma carta. E foi o que aconteceu.

 “Quando o carteiro chegou e o seu nome gritou com uma carta na mão...”

Ela olhava aquela carta como se pudesse ler que era a ela que estava endereçada. Seu coração batia forte, uma onda de felicidade nunca sentida a invadiu. “Dona Cota, dona Cota é para mim. Leia, por favor.”

Há essa hora, muitos já se encontravam na sala à espera da leitura da carta.

“Minha querida Celina, beijo-te as mãos.

Meu nome é Nelson, sou americano, médico e tenho 35 anos. José, nosso amigo em comum, mostrou-me uma fotografia sua e eu, imediatamente apaixonei-me por você. Penso em você dia e noite. Gostaria de ir ao seu encontro, mas como você sabe, médico trabalha muito e por enquanto não será possível, mas gostaria que você aceitasse ser minha namorada. E blá blá blá blá blá... A carta sempre foi escrita por tia Cota. Diziam para ela escrever tudo que gostaria de ouvir. E ela escrevia. Apaixonadamente. Escreveu por anos a fio.

Celina, a que foi sem nunca ter sido, ditava e alguém escrevia a carta para seu amor. Antes de colocá-la no envelope ela a segurava e muitas das vezes seguia com mancha de suas lágrimas. As cartas ao seu Nelson, ao doutor Nelson. Ela exigia que assim o chamassem. Afinal, seu noivo era doutor. Ou não? Ele era muito importante. Que o respeitassem. Ele merecia.

A troca de correspondência durou anos a fio, até que ela se foi. Eram seu alento, sua razão de viver. Cartas apaixonadas, permeadas com juras de amor eterno. Sonhavam com um casamento bonito. Filhos estavam nos planos. Teriam poucos. Afinal ele trabalhava demais.

E os telefonemas então? Eram semanais, pois não era nada barato e eles precisavam guardar dinheiro para o casamento. Quem estivesse disposto, ligava para ela, em nome dele. Falava com uma voz empostada. Conversavam muito, mas nunca o bastante para matar a saudade.

Quando Celina via um prédio em construção, dizia que era o dr Nelson que havia mandado construir para eles. Afinal, iriam precisar de dinheiro...

Quando passava um avião, costumava dizer que seu noivo, muito ciumento, mandava que a vigiassem, para ver o que ela fazia. E sonhava... E vivia para ser feliz.

Todos da família colaboravam para seu enxoval e ela se orgulhava dele. Era tão bonito!

Certa vez, um irmão da tia Cota, aquele que não fazia nada, nadinha sem ajuda, chamou-a várias vezes e a esperta da Celina fingiu-se de morta. Ficou bem quietinha em seu quarto. Talvez até dando algumas risadinhas...

Mas acontece que ele resolveu dar o troco. Arrumou a mesa com a louça mais bonita, fez café, sujou as xícaras, colocou migalhas de bolo nos pratinhos e ficou esperando a esperta. Lá pelas tantas, chega a Celina, que ao ver a mesa posta, pergunta quem é que esteve lá. “A mãe do doutor Nelson, sua sogra, e a filha. Vieram vê-la. Eu a chamei várias vezes e você não respondeu. Pensei que tivesse saído.”

Ela ficou brava, ficou triste e nunca esqueceu esse dia. Coisas que acontecem...

Eu me lembro também, que ela nunca envelhecia, só os outros. Os que eram casados, já eram mais velhos que ela e os que se casavam, passavam a sê-lo. Ela era sempre novinha... Internamente.

Quando seu cabelo crescia e ela não queria cortar, lá vinha carta do noivo, a dizer que a moda agora era de cabelos mais curtos e que ele achava muito bonito. Aí ela pedia que a levassem ao cabeleireiro. E rápido, pois ele poderia chegar de surpresa e aí...

Qualquer coisa que precisasse ser feita e ela, teimosa, não concordasse, logo chegava uma carta do Dr. Nelson sugerindo o que deveria ser feito. Pronto. De bom grado ela concordava. Afinal, era para agradar seu eterno noivo, não era? Então...

Sempre que se aproximava o Natal ele escrevia que viria vê-la. Ela ficava feliz, contava prá todo mundo, fazia planos. Mas de repente alguma coisa acontecia e ele muito triste ligava pedindo desculpas e prometendo que da próxima vez... Ela aceitava tudo, pois não tinha noção de tempo. Não sabia precisar o tempo que o tempo demora em chegar. Mas o presente chegava. Sempre era uma jóia muito bonita, que ela, orgulhosa, mostrava para todos.

Tinha sempre em sua carteira a fotografia dele, pois talvez,quem sabe, precisasse mostrar para alguém. Ela também dormia olhando para seu amado, cuja fotografia estava em um porta retrato em seu criado mudo. Era ele que via a cada amanhecer.

Ela foi feliz. Muito. Amou, foi amada.

Se ela pudesse, de onde quer que esteja, agradeceria a todos que tornaram a sua vida um sonho a ser vivido.

Celina, menina...

 

Heloisa