DO CASAMENTO PUTATIVO

Deve-se fazer, introdutoriamente, uma rápida conexão do tema em apreço com o princípio da boa-fé, eis que este é o princípio que norteia o tratamento jurídico dispensado ao casamento putativo. Miguel Reale[1], com a sabedoria que lhe é peculiar, preleciona que a boa fé consiste em “uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito”, e complementa Caio Mário[2] acerca da boa-fé eminentemente ligada ao campo matrimonial que

"a boa-fé deve entender-se aqui, em sentido jurídico, isto é, com o caráter de elemento negativo, como em sua conceituação genérica, já consistindo na ausência de má-fé ou ausência de culpa na causa anulatória, sem se cogitar da acepção ética correspondente à honestidade, retidão, etc. Diz-se então, que a boa-fé conceitual do matrimônio putativo é a ‘ignorância da causa de sua nulidade’, o que é matéria de fato, como seja a ignorância do casamento anterior, ou a ignorância do parentesco, etc."

Para a maior parte da doutrina, a boa-fé se caracteriza simplesmente com a ignorância, antes do casamento, da causa determinante da invalidade. Portanto, tem-se que o casamento putativo[3] é aquele que foi contraído de boa-fé por um ou por ambos os nubentes, a despeito do qual o legislador quer dar especial proteção, embora seja um matrimônio eivado de nulidade absoluta ou relativa. Sobre o tema Alípio Silveira[4] conceitua o casamento putativo como sendo

 "aquele nulo ou anulável, mas que, em atenção à boa-fé com que foi contraído por um ou ambos os cônjuges, produz, para o de boa-fé e os filhos, todos os efeitos civis até passar em julgado a sentença anulatória. Ainda é certo, por outro lado, que alguns efeitos se perpetuam, como os relativos à legitimidade dos filhos havidos durante o período de validez. A essência do matrimônio putativo, está, assim, na boa-fé em que se encontram um ou ambos os cônjuges no momento da celebração do matrimônio." 

Apesar de o casamento putativo ter sido criado nos idos do direito romano, foi no direito canônico que ele se fixou, porquanto o matrimônio era elevado à condição de sacramento, sendo, então, o casamento putativo uma forma de se aproveitar dos efeitos desse casamento fulminado de nulidade. Sem tal instituto, estariam prejudicados, além dos cônjuges, a prole gerada, que não poderia ter o status de filiação legítima.[5]

O artigo 1.561 do Código Civil dá legitimidade ao casamento que foi contraído com infração a alguma causa de nulidade ou de anulabilidade. O legislador quer, com este dispositivo, preservar os efeitos civis decorrentes deste matrimônio se, ao ato de sua celebração, os nubentes, ou apenas um deles, estiver de boa-fé. A principal característica, portanto, do casamento putativo, é a ignorância dos cônjuges, ou de um deles, a vícios dos quais, se possuíssem conhecimento anterior, não teriam realizado o matrimônio.

 A doutrina, para efeitos de estudo, divide essa ignorância como decorrente de erro, que pode ser um erro de fato ou de direito. O erro de fato diz respeito a uma ignorância de evento que impede a validade do ato nupcial, a exemplo do que ocorreria caso duas pessoas que são irmãs e, sem o conhecimento do fato, convolam matrimônio. Já o erro de direito advém de ignorância da lei que impede o ato matrimonial; é o que ocorre, no exemplo dado pela maioria da doutrina do tio e da sobrinha que convolam núpcias sem realizar o exame pré-nupcial que é exigido por lei. Vale lembrar que a ignorância pode recair sobre qualquer tipo de impedimento, vício ou até mesmo recair sobre a incompetência do celebrante.

Acerca dos efeitos e das consequências jurídicas que se produzem ao ser reconhecido judicialmente o casamento putativo, destacam-se as mais relevantes como sendo os efeitos que se aplicam aos cônjuges de boa-fé e aos filhos gerados. Pode ser declarada a putatividade do matrimônio de ofício pelo Magistrado, não sendo necessário o requerimento das partes interessadas na ação declaratória de nulidade ou anulabilidade. A sentença produzirá efeitos ex nunc respeitando-se em relação aos cônjuges os fatos jurídicos ocorridos anteriormente. É de se destacar que com a declaração da putatividade, o casamento não deixará de ser nulo ou anulável, mas serão válidos apenas os efeitos gerados no que tange aos cônjuges de boa-fé (ambos, ou um só, sendo necessário a existência de pelo menos um dos cônjuges de boa-fé).

A Lei Civil tenta proteger ao máximo o cônjuge de boa-fé, conforme o disposto no artigo 1.561, dando-lhe benefícios como o direito a alimentos até a sentença, o direito à herança havida antes da sentença, o direito às doações propter nuptias que não serão devolvidos, entre outros. Porém, ao cônjuge de má-fé não caberá nenhuma vantagem, e se ambos os cônjuges estavam de má-fé os efeitos civis somente aos filhos aproveitarão. Acerca do tema, Carlos Roberto Gonçalves[6] faz interessante análise, afirmando que:

"quanto aos cônjuges, os efeitos pessoais são os de qualquer casamento válido. Findam, entretanto, na data do trânsito em julgado. Cessam, assim, os deveres matrimoniais impostos no artigo 1.566 do Código Civil (fidelidade, vida em comum, mútua assistência etc.), mas não, porém aqueles efeitos que geram situações ou estados que tenham por pressuposto a inalterabilidade, como a maioridade, que fica antecipada pela emancipação do cônjuge inocente de modo irreversível." 

Portanto, cessam os deveres matrimoniais após a sentença anulatória e a emancipação permanece à aquele que estava de boa-fé. O direito a herança também prevalecerá até a sentença, mas se a morte ocorre após sua declaração, não lhe assiste direito sucessório. Quanto a questões patrimoniais, apenas o cônjuge culpado perderá para o outro as vantagens econômicas, não podendo requerer meação perante o patrimônio com que o cônjuge de boa-fé dispôs durante o período da vigência conjugal. Ao cônjuge culpado também cabe o dever de fornecer alimentos à família e ao cônjuge inocente, se este necessitar, lembrando que esta obrigação se extingue com a prolação da sentença anulatória, não existindo mais a condição de cônjuge.

Os filhos serão protegidos impreterivelmente, não sendo tolhido nenhum direito, nem quanto à legitimação, nem quanto a direitos sucessórios. A Lei nº 6.515 de 1977 estabelece que a caracterização da boa ou da má-fé em nada implica aos filhos, assim como reforça a Constituição Federal, no seu artigo 277, §6º, a não discriminação entre filhos legítimos ou ilegítimos.

Com relação a terceiros, o casamento putativo consolida os direitos adquiridos por eles, pois os efeitos da sentença não retroagem, tendo o casamento putativo todos os efeitos de um casamento válido.

Em suma, tem-se que o casamento putativo é uma alternativa de que dispõe o legislador para proteger os que agiram com boa-fé, pois se presume, já que é necessário provar a má-fé, estarem ignorantes diante de fatos que impediriam o casamento, ou que estavam ignorantes perante a própria lei, porém, não é o objetivo da lei punir  os que agiram com boa conduta.



[1] REALE, Miguel. A boa fé no Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm>. Acesso em: 08 fev. 2013. 

[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, v.1, p. 156.

[3] A palavra putativo vem do vocábulo em latim “putare” e significa imaginário.

[4] SILVEIRA, Alipio. Conceito do casamento putativo no código civil. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1958. p. 43.

[5] OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed., 1990. p. 267-268.

[6] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume VI. Direito de Família. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 110.