Carta do Banco

 

- Néia, veja o que peguei lá na venda do seu Dinho! Chegou pelo correio!

- Ele esteve outra vez na cidade? O que diz essa carta?

- É do banco...

Dulcinéia, entre assustada e apreensiva, olha para o esposo. Esperando que os olhos de Anóbio respondam sua pergunta. Sabem que cartas do banco nunca trazem notícias boas. Depois de dois anos de colheitas fracassadas, a dívida estava desesperando o casal de agricultores...

- Aqueles parasitas! Toda hora tem que mandar novo aviso? Será que eles não sabem que a gente já tá sabendo que tá devendo? Eles pensam que a gente não paga por que não quer?

Uma ponta de desespero transpassa os olhos e a voz de Néia. Pergunta mais por indignação que em busca de resposta.

- Você já não falou com o gerente, Anóbio? Já não explicou prá eles que a colheita foi prejudicada? Será que eles não entendem que sem chuva no tempo certo não tem lavoura?

- Falar eu falei, Néia! Mas eles não podem se valer da minha palavra. Eles têm que receber o o financiamento. Eles sabem das dificuldades dos agricultores, mas eles não podem perder...

- Eles não podem perder? E nós? Nós podemos perder? Como a gente vai pagar se não deu pra colher nada? E nos outros anos, quando dá alguma coisa, na hora de vender não tem preço! Eles não podem perder, mas e nós como vamos viver, perdendo sempre? Nós estamos perdendo Anóbio!

Anóbio sabe que não tem resposta. Abre a boca para falar... A indignação também está desenhada em seu rosto. Antes que ele diga algo Néia continua:

- Primeiro falta chuva, depois vem a geada. Até parece que nem Deus ajuda. É sempre assim com os pobres!

Anóbio consegue soltar a voz:

- Calma, Néia. Não fique pensando que eu tô alegre com a situação. Apenas tentei olhar o lado deles...

- O lado deles, Anóbio? E o nosso lado quem vai olhar? O gerente do banco, o dono do Banco...O governo? Tudo isso é gente rica. Eles nem precisam desse dinheiro que a gente tá devendo. Mas nós, Anóbio? Nossas crianças? Já faz mais de três anos que não compro roupa nova. Ó o jeito que tá este vestido! E as tuas calças, todas se mantendo na base do remendo? Quem pensa em nós, Anóbio?

Néia chora. Num gesto terno Anóbio a abraça beijando-lhe os cabelos desalinhados pelos afazeres de dona de casa.

O envelope, ainda fechado, escapa-lhe das mãos.

Cai ao chão feito sonho desfeito...

Ele fecha os olhos com uma cachoeira de lágrima escorre pelo seu rosto. Com os olhos da lembrança se vê abraçado à jovem donzela, linda, bem vestida, cheia de vida, cheia de projetos... abre os olhos e vê a esposa soluçando, agora mal vestida, envelhecida, não pelo tempo mas pelos dissabores e dores do dia-a-dia. Tenta uma palavra de conforto, mas a voz não cabe na garganta apertada.

Anóbio sabe que ela tem razão. Embora tente acalmar a esposa, sabe que ninguém está preocupado com o agricultor. E menos ainda com o pequeno agricultor!!!

Foram vários avisos do banco, mais do que comunicando o vencimento de uma dívida que ele não tem como esquecer, pedindo uma solução para o problema. Várias cartas com cobranças acintosas, dirigindo-se ao trabalhador como a um caloteiro ou desocupado; como se ele estivesse deixando de pagar por malandragem. As cartas simplesmente diziam que a instituição não podia perder. O financiamento fora feito e precisava ser quitado.

Mais calma, enquanto limpa os olhos com o dorso das mãos, Néia pergunta:

- E o que diz a carta, Anóbio? É mais uma daquelas cobranças?

- Não sei, Néia. Ainda não abri. Não tive coragem! Peguei o envelope lá na venda do seu Dinho! Ela vinha me queimando as mãos e o coração. A angústia era maior do que a curiosidade e preferi deixar para abri-la junto de você, pois coisa boa não é!

- O que dói, Anóbio, não é a cobrança. Nem é tanto a insistência em nos lembrar a dívida. Afinal não tem como negar que estamos devendo. O que dói é saber que o mesmo banco que fica o tempo todo cobrando de nós, pequenos produtores, permite que os fazendeiros continuem sem pagar. Eles cobram dos pequenos como se só nós devêssemos carregar este país nas costas. Por que os grandes não pagam?

Agora Néia não está mais chorando. Seu olhar é duro. É de indignação! É a expressão de uma trabalhadora que sabe estar cumprindo seu papel. A lâmina do seu olhar fita o marido que, sem resposta, comenta:

- Não podemos contar nem com nosso avalista. O compadre Zico também teve que vender o sítio para pagar suas dívida. A situação dele está pior do que a nossa.

- A comadre Dorva disse que o compadre anda falando de ir embora prá Rondônia. Diz que lá tem terra de graça. Falou que ele tem uns conhecidos lá num projeto de colonização. Um tal de Rolim de não sei o quê. Diz que é terra boa. Dá de tudo.

- Acho que ele não vai não.

Enquanto fala, Anóbio senta em uma cadeira de palhinha, furada pelo tempo de uso. Pega o envelope do chão e olha para o logotipo do Banco. E continua:

- A terra de lá é de graça. Mas e a viagem? Como ele vai pagar a viagem da mudança? Ele também não conseguiu colher...

- Paiêêêê!

O grito de Jorge interrompe a frase do pai

- Paiê, padrinho viu você chegando e mandou avisar que sai amanhã cedo. Vai prá Rondônia com o povo dos Alemão, prá ver umas terras!

A estupefação toma conta do casal. Enquanto se entreolham o envelope escorrega das mãos de Anóbio caindo. Caindo agora sobre a antiga cadeira de palha. E os três se olham, sem saber o que falar. Imobilizados pela situação desconcertante.

Até o momento calada, enquanto brincava com umas espigas de milho, Lúcia se levanta, começa a caminhar:

- Mãnhê! Vou ver minha madrinha.

Quando termina de falar, Lúcia já está correndo para a casa de Dorvalina. E, como se esse fosse um ato ensaiado os três falam numa só voz:

- Vamos lá!!!???

Esquecido sobre a cadeira o envelope vê os quatro se distanciando, em direção à baixada. Em direção a uma casinha coberta de palha, do outro lado do riacho...

 

Neri de Paula CArneiro

Mestre em educação, Filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO