Carcereiros - refletindo

O livro Carcereiros foi escrito pelo médico Dráuzio Varella, publicado em 2012 pela editora Companhia das Letras, retratando as histórias dos funcionários do sistema penitenciário. O autor possui mais de 20 anos de experiência no trabalho com detentos, trabalhou durante 13 anos como voluntário na Casa de Detenção Carandiru, que deu origem ao livro Estação Carandiru, e, após começou a atender na Penitenciária Feminina da Capital, no estado de São Paulo. Na obra o autor nos leva a conhecer o cotidiano daqueles que tem o dever de vigiar os detentos das prisões, por meio do convívio diário adquirido em seu trabalho. Drauzio Varella criou laços de amizades com os funcionários, passando a conhecer detalhes das histórias narradas no livro, contando ainda, sobre a sua própria experiência neste trabalho.

O livro retrata em 36 capítulos e 232 páginas, a vida no interior de um presídio, nos faz acompanhar uma rebelião, atos de heroísmo, os vínculos de amizade, a descoberta de um plano de fuga, enfim, toda uma realidade que normalmente não conhecemos.  

A primeira história é contada por Seu Araújo retratando a invasão da PM no pavilhão 9 do Carandiru em 1992, que se tornou a maior tragédia coletiva da história dos presídios brasileiros. Retrata-se como os responsáveis pela guarda do pavilhão 8, vizinho ao 9, contiveram seus 1756 condenados reincidentes por meio da conversa franca e aberta, esclarecendo o que estava ocorrendo, para que não houvesse invasão da PM no pavilhão.

Seu Araújo conta do momento em que subiu ao quinto andar do pavilhão, aquele considerado o mais problemático da cadeia inteira para conversar com os detentos e explicar a situação, tentando convence-los a trancar as celas para evitar maiores tumultos. Em certa passagem conta que os homens dali estavam encapuzados e armados com diversas facas, os ânimos estavam alterados, todos falavam ao mesmo tempo, sem um líder para negociar. Após um tempo, na mira das armas e sendo ameaçado por alguns, seu Araújo consegue convencer os moradores daquela andar a entrar em suas celas para que fossem trancadas. O carcereiro relata a sensação de medo e de sentir pela primeira vez, durante toda a carreira, que poderia acabar em uma poça de sangue na galeria. No final, vemos que o pavilhão 8 não foi invadido, e tudo transcorreu com calma naquele local. Entretanto, o que viram no pavilhão 9 após encerrar a invasão da PM foi uma tragédia, destacando a fala de seu Araújo “ vi sangue ser puxado com rodo na galeria”.

Em seguida vivenciamos na leitura o relato do autor sobre sua entrada no presídio, sua fascinação desde pequeno pelos filmes de cadeia, a atenção para histórias policiais. Draúzio Varella foi levado ao Carandiru em 1989 pela primeira vez, a fim de gravar um vídeo sobre AIDS. A excitação que tomou conta dele, fez com que, retornasse para falar com o diretor, momento em que acertou o início do trabalho voluntário. O Carandiru, na realidade já chamada de Casa de Detenção de São Paulo, era o maior presidio da América latina.

Até a implosão em 2002, por 13 anos, Drauzio vivenciou o cotidiano do local, enfrentando dificuldades iniciais, principalmente de relacionamento com os funcionários por conta da desconfiança, relatando da seguinte forma “quando me aproximava, mudavam o assunto, trocavam olhares enigmáticos e frases ininteligíveis ou desfaziam a rodinha, nas mínimas atitudes demonstravam estar diante de um corpo estranho”. Vê-se que enfrentou por tempo a desconfiança por ser um novato ingênuo no universo prisional, onde aqueles que vivenciam diariamente já sabem a importância da interpretação e do olhar cauteloso da experiência.

Mais adiante no livro, o autor nos mostra a solidariedade que é construída entre os carcereiros, onde todos sabem que a vida de um está na mão dos outros. Destaca-se a importância do equilíbrio emocional para essa profissão, onde se convive diariamente com seres enjaulados, vivendo normalmente em condições subumanas, um grupo formado por sequestradores, ladrões, assassinos, estelionatários, enfim, que tem a vida humana como moeda pouco valiosa.

Conforme a história, desde logo o carcereiro, aprende a desconfiar de tudo, a desacreditar, comportam-se “como montadores de quebra-cabeças a encaixar peças soltas”.

O livro mostra ainda uma figura importante para o decorrer do trabalho diário: o informante.

O carcereiro que faz diferença na imposição da disciplina e na manutenção da ordem nas galerias é aquele capaz de antecipar-se aos acontecimentos inusitados. No entanto, como adivinhar quem prepara um plano de fuga, destila pinga, suborna um funcionário para que traga celulares, drogas ou faça vistas grossas à entrada do revólver que causará a próxima tragédia, sem contar com a colaboração do informante, figura-chave nas cadeias do mundo inteiro? Sem ele não existem bons guardas de presídio. (VARELLA, 2012, p. 41)

          Os carcereiros criam com seus informantes uma relação interesseira, onde é necessário averiguar muito bem os fatos trazidos, levantando a veracidade sem despertar desconfiança entre os investigados.

Ao retratar a última história do livro o autor mostra um dia de trabalho seu, começando pela documentação de um óbito no pavilhão 4, onde o corpo estava nu, no banheiro, com a cabeça desengonçada por conta de um corte profundo. A facada, a morte brutal, era a marca do “Partido”, da facção que viria a dominar o poder nas prisões paulistas. Percebemos que atender diversos pacientes num mesmo dia, por horas seguidas, exigia determinação psicológica.

Conforme o autor, a pessoa que está doente e procura a ajuda médica espera não só o receituário, mas demonstrações de que o profissional que está na sua frente é seguro, competente, compreensivo e quer resolver o seu caso. Para tanto, é necessário determinação e energia para consolar e motivar, é preciso conviver com suas próprias emoções, sua sensibilidade.

Um dos desafios constantes é a falta de profissionais da área da saúde dispostos a trabalhar nos presídios, onde filas enormes se formam em minutos. Dráuzio nos conta em detalhes que neste dia, após os diversos atendimentos feitos, teve que dispensar uma fila de detentos, pois não havia mais tempo para tantos atendimentos. A noite, ao jantar com seus amigos, percebeu uma sensação de alheamento ao que estava ocorrendo ao seu redor. Sentia no presídio vontade de ir embora, mas também não tinha vontade de estar na festa. O autor nos remete a refletir sobre a ambiguidade que o persegue desde que começou a trabalhar no presídio.

A reflexão em cima de coisas que para nós parecem banais, afinal todos tem uma cama quente para deitar ao final do longo dia, enquanto dentro do presídio seres humanos se amontoam no chão, úmido, frio e lotado. Dormem do jeito que dá, apertam-se não se entende como, alinhando-se próximos um do outro.

“O homem é o conjunto de acontecimentos armazenados em sua memória e daqueles que relegou ao esquecimento”. Sim, a expressão do autor deixa claro que tudo aquilo que passamos constrói nossa vida, nos trás maturidade, faz transparecer clareza e adquirir percepção do cotidiano. Em contrapartida o autor esclarece que toda essa experiência muitas vezes precisa ficar em segredo, a fim de não contaminar as relações sociais, o que o tornou mais solitário. Para ele, o mesmo ocorre com os carcereiros, que convivem muito mais tempo com aquela realidade, correm diariamente risco de vida, guardando para si muito do que vivem, poupando amigos e familiares do drama diário do trabalho no cárcere.

Ao finalizar, o autor conta a falta de treinamento que esses profissionais recebem ao iniciar, começaram a trabalhar em um período em que bater em preso era política institucional, foram colocados em contato direto com a violência, com indivíduos que a sociedade renega e não quer ter contato, o que fez com que cada um deles, fosse agindo de seu jeito, da forma que parecesse mais sensata.

O livro todo relata as diversas histórias daqueles que tem a missão diária de controlar a massa carcerária que existe em nosso país. Sim, pois mesmo que o livro relate a história de carcereiros de São Paulo, essas histórias são as mesmas vividas todos os dias pelos profissionais responsáveis em vigiar os presídios.

A partir de tantos relatos, é impossível não se chocar com a falta de condições para que esse trabalho seja desenvolvido com segurança. Quem já entrou em um presídio sabe que muito do que se consegue é por meio da cooperação entre detentos e os agentes responsáveis pela guarda, os acordos, as trocas, os benefícios são discutidos e realizados como meio de controlar a situação. A população carcerária não para de crescer, e o Estado não garante condições de trabalho com segurança. Para preservar suas vidas é preciso a cooperação dos detentos.

Parece irônico, mas na maioria dos presídios os responsáveis pela guarda não entram na galeria para fechar as celas, sendo esse trabalho realizado pelos próprios presos em razão da segurança. Cada vez mais fica evidente que é impossível não perceber que precisamos de uma reforma no sistema penitenciário. Para a sociedade é cômodo jogar os infratores dentro de uma cela e trancafiar esses cidadãos como se fossem animais, esquecendo que um dia irão sair dali, e voltar a conviver na sociedade. Como vão sair? E enquanto estão lá dentro, quem é responsável por sua vigilância? Oferecemos aparato suficiente para que esses profissionais possam trabalhar em segurança?

Não é preciso pensar muito para responder essas perguntas, os noticiários mostram diariamente às rebeliões, as condições carcerárias brasileiras, à morte de agentes em trabalho, a revolta dos presidiários por conta das condições dos presídios. Enfim, Carcereiros, mostra o outro lado, o lado daqueles que diariamente arriscam suas vidas em um mundo de ódio, corrupção, incertezas, sujeira, garantindo que a sociedade esteja “protegida” de seus “restos” humanos.

Varella, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.